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Inédito
 
Silêncio ensurdecedor 
A corrupção acadêmica e a crise financeira
 
RESUMO 
A série de inéditos que a Folha adianta em primeira mão traz texto de 
Charles Ferguson, vencedor do Oscar de melhor documentário de 2010 por 
"Trabalho Interno". Em livro homônimo, recém-lançado no Reino Unido, ele
 aborda conflitos de interesses de acadêmicos com prometidos com governo
 e empresas privadas.
CHARLES FERGUSON 
TRADUÇÃO CLARA ALLAIN
 
MUITAS PESSOAS QUE viram meu documentário "Trabalho Interno" 
(2010) acharam que a parte mais perturbadora é a revelação sobre amplos 
conflitos de interesses em universidades e institutos de estudos e entre
 pesquisadores acadêmicos. Espectadores que assistiram às minhas 
entrevistas com eminentes professores universitários ficaram 
estarrecidos com o que saiu da boca deles.
 
Mas não deveríamos ter ficado surpresos. Nas duas últimas décadas, 
médicos já comprovaram de modo substancial a influência que o dinheiro 
pode exercer num campo supostamente objetivo e científico. De modo 
geral, as escolas de medicina e os periódicos médicos vêm reagindo bem, 
aderindo às exigências de transparência.
 
Os cursos de pós-graduação em economia, as faculdades de administração, 
as de direito e as de ciência política vêm reagindo de modo muito 
diferente. Nos últimos 30 anos, parcelas importantes do mundo acadêmico 
americano foram deterioradas, convertendo-se em atividades do tipo "pay 
to play" (pague para participar).
 
Hoje em dia, se você vir um célebre professor de economia depondo no 
Congresso ou escrevendo um artigo, são boas as chances de ele ou ela ter
 sido pago por alguém com grande interesse no que está em debate. Na 
maior parte das vezes esses professores não revelam esses conflitos de 
interesse. Além disso, na maior parte do tempo suas universidades se 
fazem de desentendidas.
 
Meia dúzia de firmas de consultoria, vários birôs de palestrantes e 
diversos grupos de lobby de setores diferentes mantêm grandes redes de 
acadêmicos de aluguel, com o objetivo de defender os interesses desses 
grupos em discussões sobre políticas e regulamentação.
 
Os principais setores envolvidos são energia, telecomunicações, saúde, 
agronegócio e, sem dúvida, o setor de serviços financeiros.
 
Alguns exemplos: o economista Glenn Hubbard virou reitor da Columbia 
Business School em 2004, pouco depois de deixar o governo George W. Bush
 (2001-09), no qual trabalhou no Departamento do Tesouro e foi o 
primeiro presidente do Conselho de Assessores Econômicos do presidente, 
entre 2001 e 2003.
 
Boa parte de seu trabalho acadêmico é dedicado à política fiscal. Num 
resumo justo de suas posições intelectuais, pode-se dizer que ele jamais
 viu um imposto que tenha gostado de ver aprovado e em vigor. Em 
novembro de 2004, ele escreveu um artigo espantoso em coautoria com 
William C. Dudley, então economista-chefe do banco de investimentos 
Goldman Sachs.
 
O artigo em questão, "Como os Mercados de Capitais Elevam a Performance 
Econômica e Facilitam a Geração de Empregos", merece ser citado. Vale 
lembrar que estamos em novembro de 2004, com a bolha já bem encaminhada:
 
"Os mercados de capital têm ajudado a tornar o mercado imobiliário menos
 volátil. 'Arrochos de crédito' do tipo que, periodicamente, fecharam a 
oferta de recursos aos compradores da casa própria [...] são coisas do 
passado."
 
Hubbard se negou a dizer se foi pago ou não para escrever o artigo. E se
 negou a me fornecer sua declaração mais recente de conflitos de 
interesse financeiros com o governo, documento que não pudemos obter de 
outra forma porque a Casa Branca o destruiu.
 
Hubbard recebeu US$ 100 mil para depor na defesa criminal dos dois 
gerentes do fundo hedge (de alto risco) Bear Stearns, processados por 
envolvimento com a bolha; eles foram absolvidos. No ano passado, Hubbard
 se tornou assessor econômico sênior da campanha presidencial de Mitt 
Romney, o pré-candidato republicano à Presidência dos EUA.
 
RABO PRESO Outro economista, Larry Summers, já ocupou quase todos
 os cargos governamentais importantes na área econômica. Secretário do 
Tesouro sob o presidente Bill Clinton (1993-2001), em 2009 ele se tornou
 diretor do Conselho Econômico Nacional na administração Barack Obama.
 
Embora seja sensato em relação a muitas questões, Summers cometeu uma 
sucessão bem documentada de erros e concessões. E seus pontos de vista 
sobre o setor financeiro dificilmente seriam distinguidos dos de, 
digamos, Lloyd Blankfein (chefe do Goldman Sachs) ou Jamie Dimon 
(presidente do banco JPMorgan).
 
A maior parte de nossas informações sobre Summers vem de sua declaração 
obrigatória de conflitos de interesse, exigida pelo governo. De acordo 
com a declaração dada em 2009 por Summers, sua fortuna líquida estava 
calculada entre US$ 17 milhões e US$ 39 milhões. Seus recebimentos 
totais no ano antes de ingressar no governo chegaram a quase US$ 8 
milhões. O Goldman Sachs pagou a Summers US$ 135 mil por um discurso.
 
Larry Summers é um homem com o rabo preso, que deve a maior parte de sua
 fortuna e boa parte de seu sucesso político à indústria de serviços 
financeiros e que esteve envolvido em algumas das decisões de política 
econômica mais desastrosas da última metade de século. Na administração 
Obama, Summers se opôs à adoção de medidas fortes para punir banqueiros 
ou limitar a receita deles.
 
A universidade de Harvard ainda não exige que Larry Summers divulgue 
seus envolvimentos com o setor financeiro. Tanto Harvard quanto Summers 
negaram meus pedidos de informação.
 
O problema da corrupção acadêmica hoje está tão profundamente 
entrincheirado que essas disciplinas e essas universidades importantes 
estão gravemente comprometidas, e qualquer pessoa que pensasse em se 
opor à tendência ficaria racionalmente muito assustada.
 
COMEDIMENTO Considere a seguinte situação: você é estudante de 
doutorado ou um membro júnior do corpo docente que estuda a 
possibilidade de fazer pesquisas sobre, digamos, as estruturas de 
pagamento aos profissionais que assumem riscos nos serviços financeiros,
 ou sobre o impacto potencial das exigências de divulgação pública de 
informações sobre o mercado de "credit default swaps" -instrumentos 
financeiros que funciona como um seguro contra calotes. O reitor de sua 
universidade é... Larry Summers. O chefe de seu departamento é... Glenn 
Hubbard.
 
Ou você está no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e quer 
estudar o declínio dos pagamentos de impostos de pessoas jurídicas. A 
reitora do MIT é Susan Hockfield, que faz parte do conselho de direção 
da General Electric, uma empresa que vem conseguindo evitar o pagamento 
de quase todos os impostos corporativos há vários anos.
 
Até que ponto essas forças de fato afetam as pesquisas acadêmicas e as 
políticas das universidades? As evidências das quais dispomos sugerem 
que o efeito é grande.
 
Os comentários sobre a crise financeira proferidos por economistas na 
academia têm sido bastante comedidos. É verdade que existem algumas 
exceções notáveis. Na maior parte do tempo, porém, o silêncio tem sido 
ensurdecedor.
 
Como é possível que um setor inteiro seja estruturado de modo que 
funcionários sejam encorajados a saquear e destruir suas próprias 
firmas? Por que a desregulamentação e a teoria econômica fracassaram tão
 espetacularmente?
 
O lançamento do documentário "Trabalho Interno" claramente mexeu com 
sensibilidades que foram tocadas por essas questões. Fui contatado por 
estudantes e docentes em grande número, e houve debates em grande 
número.
 
Algumas escolas, incluindo a Columbia Business School, adotaram exigências de divulgação de informações pela primeira vez.
 
Mas a maioria das universidades ainda não faz essas exigências, e poucas
 ou nenhuma impõem qualquer limitação à existência de conflitos de 
interesse. O mesmo se aplica à maioria das publicações acadêmicas.
 
Repórteres de jornais são proibidos terminantemente de aceitar dinheiro 
de qualquer setor econômico ou organização sobre o qual escrevam 
matérias. O mesmo não acontece no mundo acadêmico.
 
Houve um avanço positivo importante. No início deste ano, a Associação 
Americana de Economia passou a exigir uma declaração de conflitos de 
interesse para os sete periódicos que edita.
 
Mas a maioria das instituições ainda se opõe à divulgação de mais 
informações, e, quando eu estava fazendo meu filme, se negou até mesmo a
 tratar do assunto.
 
 
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