Encontro de bioética discute relação entre ser humano e conhecimento
Unifesp. 2009.
"Não aceitamos mais a idéia de uma ordem real e estabelecida da natureza", diz Roberto Romano, da Universidade Estadual de Campinas
Luiz Ribeiro
A relação entre o ser humano e a produção do conhecimento norteou os debates no I Encontro de Bioética, no dia 6 de dezembro, na Unifesp. O evento foi promovido pela Comissão de Bioética do Departamento de Pediatria da universidade - criada em junho de 2000 - e apontou rumos a serem tomados pela comissão.
As palestras ressaltaram a necessidade de avançar as discussões sobre os aspectos legal e filosófico da produção científica. "É uma preocupação ética para que o conhecimento não agrida o ser humano", explica Benjamim Kopelman, presidente da comissão. Participaram os professores Celso Lafer, da Universidade de São Paulo; Roberto Romano, da Universidade Estadual de Campinas; e Marcos de Almeida, da Unifesp.
Novo paradigma
"A ética não é mais uma relação entre os seres humanos na duração previsível de suas vidas. Ela agora se projeta para o futuro." Essa frase é a síntese da palestra proferida por Celso Lafer. Ele enfatiza a necessidade de reflexão sobre as conseqüências dos novos conhecimentos, para que se desenhe um consenso ético que possibilite a existência de uma legislação específica para o assunto.
"Quando erramos na construção de carros, basta fazer um recall, mas não se pode recolher pessoas nem desmontar populações", diz Celso Lafer, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Lafer explica que houve uma mudança de paradigmas que exige transformações éticas, as quais rebatem no direito. Segundo ele, a quebra da noção de imutabilidade da natureza, com a transposição de barreiras tidas como naturais, implica novas discussões éticas sobre o alcance do conhecimento.
Como exemplos disso, citou a possibilidade de mulheres virgens engravidarem ou viúvas serem fertilizadas pelo sêmen de seu marido falecido. Em sua opinião, esses fatos modificam a distinção entre o que é dado (natural) e o que é construído (feito pelo homem). O ser humano passa a poder intervir naquilo que era natural. "Quando erramos na construção de carros, basta fazer um recall, mas não se pode recolher pessoas nem desmontar populações", frisa Lafer.
Problema político
Marcos de Almeida, da Unifesp, fez questão de afirmar que o problema do abuso do conhecimento é político, não necessariamente dos cientistas. "Não podemos ter receio de avanços no conhecimento enquanto não temos as respostas. O abuso não invalida o uso", coloca. Ele lembra que a manipulação genética, que pode causar inquietação moral se usada como bioarquitetura gênica, é moralmente irrepreensível na forma de terapia genética para a cura.
Nesse sentido, reforça a necessidade de as pessoas refletirem de acordo com sua própria moral. "A resposta que cada um dá às perguntas essenciais orientará as ações futuras", diz.
Marcos de Almeida, da Medicina Legal e Bioética da Unifesp, afirma que "a resposta que cada um dá às perguntas essenciais orientará as ações futuras"
Consciência moral
Para Roberto Romano, "como a natureza não é mais uma instância normativa, é preciso redobrar a capacidade de pensar, refletir e pesar as coisas. O ser humano atualmente teme a solidão, não tem coragem de assumi-la e de construir a sua dimensão moral". O professor da Unicamp acredita que, sem esse espaço de solidão e reflexão, a liberdade futura dos indivíduos estará comprometida.
Romano diz que, como não se aceita mais a idéia de uma ordem real e estabelecida da natureza - sua função normativa -, a moral deve ser resultado de uma elaboração feita a partir da percepção dos cinco sentidos. E a ética - definida como as normas que regem as pessoas - é o resultado do consenso entre as dimensões morais individuais.
A perda da liberdade ocorre quando não se desenvolve a dimensão moral, aceitando normas que podem tolher a liberdade. "As normas devem ser observadas, mas deve-se refletir acerca delas", coloca. Para Romano, a perda da dimensão moral está acontecendo tanto na vida política quanto na acadêmica. "Muitos amigos comentaram que foram objeto de plágio e de apropriação de idéias", afirma.
Mais grave ainda, ele diz que se tem de conservar o espaço de solidão e construção da moral individual para que se consiga operar o conhecimento gerado. "Não podemos nos tornar instrumento do conhecimento. Até que ponto temos consciência plena de que somos fonte do conhecimento?" Essa pergunta está no cerne das discussões sobre a ética na medicina.