A geração perdida
Homicídios e trânsito são os maiores responsáveis por morte de jovens entre 15 e 24 anos no país
Os
anos 1990 foram marcados pela explosão da violência nas grandes cidades
do Brasil. Os números de homicídios em algumas regiões foram comparados
aos registrados em países com histórico de guerra civil ou com altos
índices de criminalidade à época, entre os quais Porto Rico e Colômbia.
Morria-se muito pelas chamadas “causas externas”, que se contrapõem às
demais que levam o indivíduo a adoecer e morrer, de acordo com a
Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesta guerra sem nome próprio, foram
aproximadamente 400 mil pessoas mortas em uma década no país.
Morria-se muito em razão da violência e, pior, morria-se muito jovem. Na
faixa entre 15 e 24 anos, o número de homicídios para cada cem mil
habitantes saltou de 35,2 para 52,1 ao longo dos anos 1990. Em meados
desta década, a pesquisadora Tirza Aidar, com formação em estatística,
ingressou no doutorado em Demografia, interessada em estudar as
interfaces entre a saúde, a população e a mortalidade.
Uma
das indagações de Aidar era como a população estava morrendo e de que
maneira as mudanças sociais e demográficas impactavam no perfil da
mortalidade entre as crianças, os jovens, os adultos e os idosos. Foi
quando deparou com as altas taxas de mortalidade de jovens por causas
violentas, objeto de extenso trabalho de investigação que continua até
hoje e que envolve especialmente a Região Metropolitana de Campinas,
(RMC). De lá para cá, Tirza constatou que após a explosão de homicídios,
na mesma região, houve uma queda na década seguinte, até 2010, e uma
reaproximação dos patamares de antes de 1990, muito embora no restante
do país se verifique ainda o aumento de homicídios. Pesquisa coordenada
por Tirza, revela, por exemplo, que no Paraná algumas cidades como
Cascavel e Foz do Iguaçu vivem agora situação semelhante à registrada na
RMC nos anos 1990 em relação aos homicídios. No Brasil como um todo,
houve um acréscimo de 14,5% no número de mortes por homicídios no País,
que passou de 45 mil em 2000, para 52 mil em 2010. Por outro lado, os
registros mais recentes da RMC revelam que, se uma parcela dos jovens
tem conseguido “escapar” dos homicídios, outra, não menos significativa,
tem morrido sobre duas, ou quatro rodas.
Desde
o doutorado, Tirza, que hoje é pesquisadora do Núcleo de Estudos de
População (Nepo) Unicamp e também coordenadora do curso de pós-graduação
em Demografia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), se
preocupa com as relações entre as questões de desigualdade,
vulnerabilidade social e mortalidade. O trabalho envolve alunos da
graduação, pós-graduação e pesquisadores do Nepo e de outras
instituições, entre as quais a Seade (Fundação Sistema Estadual de
Análise de Dados) e Universidade Nacional de Córdoba.
A
RMC, com seus 19 municípios e mais de 2,6 milhões de habitantes, foi
constituída como unidade regional somente em 2000. Porém, desde a década
de 1970 seus problemas de moradia, desemprego e empobrecimento da
população vêm se agravando em razão do avanço na posição de pólo
econômico. A exemplo do verificado no país, os jovens pagaram o alto
preço do desenvolvimento: entre 1991 e 2000, a variação da taxa de
mortalidade por homicídios entre 15 e 24 anos foi de impressionantes
174%, passando de 56,9 para 156,3 mortes para cada 100 mil.
Uma
constatação curiosa de um dos estudos realizados pela equipe coordenada
por Tirza: a avaliação dos dados socioeconômicos e demográficos do
Censo 2000 (IBGE), do Sistema de Informação de Mortalidade
(SIM-Datasus), do Ministério da Saúde, e do Banco de Óbitos de Campinas
(Secretaria Municipal de Saúde) contrariou o senso comum quando se trata
de associar diretamente desigualdade social, pobreza e violência
urbana. Para a RMC, os municípios com maior desigualdade não eram
necessariamente os mais violentos no início dos anos 2000. No período
investigado, os números variaram de algo em torno de 100, (em 1980) 300
(em 1990) a 900 homicídios (em 2000). Na virada do milênio, os
municípios com as maiores taxas dessa modalidade de crime por habitantes
eram Hortolândia, Sumaré, Campinas e Monte Mor, sendo os dois primeiros
aqueles que apresentavam, na época, os menores índices de desigualdade
socioeconômica, mas os piores indicadores relativos à pobreza e
oportunidade educacional para os jovens. “É importante ressaltar que
tais problemas sociais devem ser tratados em sua complexidade,
considerando o dinamismo e sinergia entre os municípios e dos diversos
setores das políticas públicas, seja no âmbito municipal, regional,
estadual ou federal”, afirma Tirza.
A
demógrafa adverte que pesam nesta relação as escalas utilizadas nas
análises, se comparando municípios dentro de uma mesma região, ou
bairros dentro de um mesmo município, ou ainda comparações entre regiões
de um mesmo país, ou entre países. “Desigualdade social já denota,
antes de mais nada, uma sociedade violenta em vários aspectos”,
ressalta.
“Nos contextos de marcada desigualdade em termos econômicos e materiais, e em relação ao acesso à moradia, aos cuidados à saúde, à educação de qualidade, circulação e lazer, somados à facilidade da instalação e consolidação de redes de criminalidade ligadas ao narcotráfico e distribuição de armas de fogo, são criadas condições para o crescimento da violência urbana que vitimiza principalmente os homens jovens, negros, e residentes em áreas mais segregadas, espacial e socialmente”, enfatiza a docente.
“Nos contextos de marcada desigualdade em termos econômicos e materiais, e em relação ao acesso à moradia, aos cuidados à saúde, à educação de qualidade, circulação e lazer, somados à facilidade da instalação e consolidação de redes de criminalidade ligadas ao narcotráfico e distribuição de armas de fogo, são criadas condições para o crescimento da violência urbana que vitimiza principalmente os homens jovens, negros, e residentes em áreas mais segregadas, espacial e socialmente”, enfatiza a docente.
Os
espaços urbanos nos quais a população mais sofre com perdas fatais são
aqueles com concentração de população de baixa renda, adultos com menor
escolaridade, e jovens com menor chance de frequentar uma escola de
qualidade.
Trânsito
A
primeira década deste século foi marcada pela reversão da tendência de
mortes violentas causadas por armas no estado de São Paulo e na região
de Campinas. No Estado, houve redução de 58%, de acordo com o Datasus.
Foram 15.591 registros em 2000 para 6.557 em 2009. Na RMC, em 2010,
ocorreram cerca de 400 homicídios, 14,2 para cada 100 mil habitantes
(70% das vítimas são homens entre 15 e 44 anos). As maiores taxas foram
observadas em Monte Mor (56,5 por 100 mil habitantes), Santo Antônio da
Posse (24,4 para cada 100 mil habitantes), seguidas de Sumaré,
Cosmópolis, Santa Bárbara d’Oeste e Paulínia, estas com cerca de 20
homicídios para cada 100 mil moradores. “Alguns fatores contribuíram
para esta diminuição, entre os quais a ampliação da cobertura do sistema
escolar com mais jovens matriculados, e também um maior investimento em
segurança pública. Mas ainda há muito que melhorar”, afirma.
Este
refluxo no número de homicídios, cujo pico deu-se nos 1990, teve, no
entanto, uma contrapartida: o aumento de mortes no trânsito em São Paulo
e no restante do país. Eis os números: no Estado, de 5.975 em 2000 para
7.331 em 2009 (aumento de 23%) e, no país, de 29.645 para 42.043
(elevação de 30%).
Motivo para
acender a luz de alerta e dar continuidade aos estudos demográficos. Não
por acaso, a atualização dos dados também tem o foco nos jovens, por
serem eles também as maiores vítimas. Da mesma forma que os homicídios,
os acidentes fatais atingem jovens – agora motociclistas – que vivem em
regiões menos favorecidas e que utilizam o veículo para trabalhar.
Um
estudo realizado pela orientanda Ana Carolina Bertho, por exemplo, que
incorpora dados de boletins de ocorrência dos acidentes de trânsito com
vítimas fatais e não fatais no município de Campinas, revela os mesmos
diferenciais quanto à vitimização de jovens motociclistas e pedestres
menores de 14 anos e adultos com 60 anos ou mais. Segundo a pesquisa,
aqueles que residem nas áreas com maior concentração de carências de
infraestrutura urbana, apresentam índices de vitimização de 1,5 a 2,5
vezes maiores que o observado entre a população residente nas melhores
áreas do município, como nas regiões centrais e de bairros como o
Taquaral, por exemplo.
Na defesa de
um olhar mais apurado para a condição de vulnerabilidade do jovem
brasileiro, a pesquisadora alerta para um equívoco gerado por análises
estreitas sobre os indicadores de saúde, que invariavelmente colocam
maior foco nos problemas relacionados à saúde infantil ou da população
com 60 ou 65 anos ou mais. “Por um lado, porque a mortalidade infantil é
muito sensível a ações pontuais, como vacinação, saneamento e cobertura
do sistema básico de saúde em suas ações preventivas e enfrentamento
dos problemas de baixa complexidade e, no outro extremo, por conta do
contínuo aumento do contingente e da longevidade da população idosa, uma
das consequências da transição demográfica”.
Para
Tirza, o erro está em manter uma estrutura que avança somente no
controle da mortalidade infantil e saúde dos idosos, sem prestar a
atenção devida e urgente aos jovens e jovens adultos. “Estes são os
sobreviventes da primeira infância muitas vezes em condições precárias,
que irão continuar acumulando experiências e exposições a riscos, ou
situações de proteção, responsáveis diretamente às possibilidades de
enfrentamento das condições adversas que encontrarão na maturidade”
complementa. Estudos mais recentes, que aguardam o censo de 2010 para
atualizações, mostram que, na Região Metropolitana de Campinas, os
diferenciais da mortalidade são ainda muito significativos entre os
jovens, quando comparados às crianças e idosos. São os jovens residentes
nos espaços urbanos mais precários que apresentam os piores indicadores
quanto à saúde reprodutiva e à vitimização frente à violência urbana,
seja no trânsito seja nas vivências cotidianas.