ensaio
Voto secreto
Nossa dívida intelectual com a democracia
RESUMO
JORGE CALDEIRA
Ignorada pela intelectualidade, a tradição de eleições para o poder
local remonta à fundação das primeiras vilas brasileiras e perdurou ao
longo dos séculos. Do século 16 ao 20, uma prática eleitoral efetiva
permite repensar a concepção brasileira de soberania popular e
reivindicar uma longa tradição democrática.
TERÇA-FEIRA, 22 de agosto de 1532. Pero Lopes de Sousa,
comandante de uma nau da frota chefiada por seu irmão, Martim Afonso de
Sousa, anota em seu diário: "A todos nos pareceu boa esta terra, que o
capitão determinou povoar; e fez uma vila na ilha de São Vicente e
repartiu gente e fez nela oficiais. Pôs tudo em boa obra de justiça, de
que a gente toda tomou muita consolação com terem leis, viverem em
comunicação das artes, serem cada um senhor do seu, vestirem as injúrias
particulares e terem uma vida agradável".
Esse é o registro da inauguração do governo legal no território do atual
Brasil, narrado a partir dos atos de um único sujeito, o capitão. Tudo
aparece como emanação de seus poderes: povoar a terra, fazer vilas,
repartir gentes, trazer arte e civilização, vida agradável e nomear
oficiais.
Esse era o modo de pensar da Idade Média, quando se via o poder legítimo
como reservado a um soberano ungido pela divindade -do qual o capitão
era representante direto. Mas a escolha das autoridades que comandariam a
vila não emanou da vontade do capitão: veio da eleição, pela população,
para a Câmara. O capitão só reconheceu o resultado e deu posse aos
eleitos.
Nos termos da ciência política, na fundação do governo da vila havia
duas soberanias em ação. Pero Lopes de Sousa descreve apenas a soberania
de um rei divino, enquanto exclui a dos eleitores de São Vicente.
Por isso descreveu um palco onde o iluminado capitão fazia um monólogo
de governo -e pôs a plateia de eleitores no escuro, fora da cena. Fica
então a pergunta: será que esse modo de pensar, em que soberania popular
e democracia são secundários por definição, desapareceu com o poder
divino dos reis?
SÃO VICENTE A prática efetiva da eleição de autoridades, da
democracia, começou naquele dia de 1532. A partir do pleito eclipsado
pelo narrador, os tais oficiais, os primeiros eleitos, tomaram posse.
A vila era um local tão ermo que ninguém de "maior qualidade" aparecia.
Passaram-se 21 anos até a chegada de outra autoridade real, o governador
Tomé de Souza, em 1553. Em 1º de junho, escreveu dali uma carta ao rei
d. João 3º:
"Ordenei outra vila no começo do mesmo campo de Santo André, e fiz dela
capitão João Ramalho, que Martim Afonso achou nessa terra quando cá
veio.
"Tem tantos filhos e netos e tantos descendentes que não ouso dizer a Vossa Alteza".
O pensamento do governador seguia com exatidão o molde de Pero Lopes:
fala de si como representante do rei que manda, ignora os homens que
governam a si mesmos. Por isso passa ao largo de um conjunto de fatos:
nos 21 primeiros anos da vida de São Vicente sob a forma de vila
portuguesa, os náufragos fizeram eleições regulares, os eleitos tomaram
posse, deixaram o governo ao final do mandato de um ano e transferiram o
poder aos sucessores.
"Governar", para esses vereadores, significava exercer ao mesmo tempo
três poderes: escrever as leis, como os atuais membros do legislativo;
comandar sua aplicação, como no atual Executivo; e chefiar a aplicação
da justiça, nomeando juízes. Por 21 anos, os vereadores foram a única
autoridade legal e soberana em São Vicente.
ATAS Gente mais rude ainda se tornou a única autoridade de Santo
André, vila separada de São Vicente por Tomé de Sousa, depois de 1553.
Suas atas da Câmara, ao contrário daquelas de São Vicente, perdidas num
incêndio, foram publicadas. A leitura revela como funcionou uma
democracia ao modo do tempo, narrada pelos autores.
As atas trazem registros regulares. Como em São Vicente, as eleições
acontecem na época aprazada, vereadores exercem poderes por um ano e
entregam o cargo aos sucessores. E nenhum representante do poder divino
do rei apareceu ali por décadas. Ainda bem.
João Ramalho, o maior líder civil da vila, vivia pelos matos de aldeia
em aldeia, andava nu com suas 30 mulheres índias, comandava alianças e
exércitos em guerra.
Volta e meia elegia-se vereador, mostrando-se cordato no cumprimento dos
mandatos, como se constata nas atas da Câmara de Santo André -ou de sua
continuação, pois, em abril de 1560, a vila passou a se chamar São
Paulo.
A implementação rápida e regular de governos eleitos nessas vilas
isoladas não parece ter sido fruto de pregação de letrados
clarividentes, nem de emissários de um rei divino que "ordenavam vilas"
ou "faziam oficiais". Era uma instituição política de escolha daquele
bando rude.
A opção pela autoridade eleita foi geral. Onde quer que, no Brasil
colonial, tenha se instalado uma vila, o mecanismo da eleição funcionou
feito um relógio -com ou sem autoridade régia presente.
A partir de 1541, eleições passaram a se suceder em Olinda, onde vivia
um donatário com plenos poderes de governo dados pelo rei, e ele
conviveu com a Câmara. A partir de 1549, eleições aconteceram em
Salvador, onde passou a viver o governador-geral, representante direto
do rei na colônia.
E assim foi. Mesmo na presença de potentados militares (do tipo João
Ramalho), econômicos (como Salvador de Sá, no Rio do século 17) ou
representantes do rei nas capitais, não há notícia de um único caso
grave de ditadura local, de usurpação continuada dos poderes reservados
aos camaristas.
De São Pedro do Rio Grande a São Paulo de Olivença, de Porto Seguro a
Cáceres, nada era tão certo, em qualquer vila, quanto a existência de um
governo local composto por moradores eleitos.
VIDA As condições de vida, ao longo dos três séculos da era
colonial, foram mais ou menos as mesmas de São Vicente, exceto
eventualmente o estado da riqueza: povoações mestiças, com raríssimos
alfabetizados, vivendo isolados e longe da autoridade central.
Cabe perguntar: os governantes locais mandavam? Comparados aos vereadores das vilas de Portugal, mandavam muito mais.
No Reino, apesar de as vilas elegerem representantes, os poderes dos
eleitos eram severamente limitados, não só pelo rei, mas pelos direitos
hereditários dos nobres, dos senhores de terra, do clero. Pouco sobrava
para os vereadores.
Já na maioria das vilas brasileiras, os poderes que se contrapunham aos
mandatários eleitos eram bem menos presentes. Apenas governadores-gerais
e capitães-mores se sobrepunham aos vereadores. Seu poder de
interferência só era constante na vila onde estavam -e intermitente onde
podiam mandar representantes.
Por isso, no Brasil colonial, quanto mais distante do governo central,
maiores eram os poderes dos vereadores. Em tempos de isolamento, a
Câmara de São Paulo chegou a decretar o valor da moeda, poder reservado
ao monarca.
Mais do que isso, o decreto foi obedecido. Ao longo da última década do
século 17, trocava-se dinheiro no valor decretado pelos representantes,
ignorando o ditado pelo monarca. A mesma Câmara declarou guerra, assinou
tratados internacionais de comércio, expulsou jesuítas - e foi
obedecida.
Claro, havia outro lado. Governadores-gerais ou capitães muitas vezes
passaram por cima de Câmaras e eleições. Nem mesmo os vereadores eram o
que hoje se qualificaria de democratas: escravocratas, cometiam
injustiças, empregavam o poder em benefício próprio. Só alguns homens
votavam. Mas a democracia existente, para a realidade da Idade Média,
era bem mais efetiva que os feudos e senhores europeus do tempo.
(Primeira nota: aqui, você, leitor, poderá sentir um descompasso entre
minhas afirmações e suas noções de história do Brasil e terá o direito
de clamar por citações. Não irá encontrá-las na maioria dos livros. Mas é
exatamente dessa ausência de citações que estamos tratando.)
Será que a existência empírica de milhões de votos e milhares de
mandatos cumpridos é grande a ponto de levar você, leitor de hoje, a
acreditar que havia democracia no Brasil colonial?
VALORES A resposta pode não estar nos fatos, mas nos valores com
que os julgamos. Já vimos como se opera a negação da democracia como
valor: o conjunto de fatos democráticos não tinha significado na visão
de Pero Lopes de Sousa. Assim, não só milhares, mas milhões de votos e
mandatos podem ficar de fora da história.
Imagina-se que esse modo de pensar medieval houvesse desaparecido. No
século 18, a instituição da soberania popular, antes marginal, ganharia
novo lugar na teoria política. O Iluminismo desenvolveu a ideia de que a
soberania legítima estava apenas no povo e que o governo deveria ser
exercido em seu nome, por representantes eleitos. A soberania popular
passou a ser central. Inversamente, a ideia do poder divino passou a ser
combatida como irracional.
Quando começou aquilo que, na esteira de revoluções nacionais, Marx
chamaria de democracia burguesa, e seus cultores de democracia liberal,
havia já quase três séculos de eleições regulares no Brasil -o que basta
para impedir a confusão entre a vasta e geral prática de democracia
nesse espaço com tal conjunto de ideias e, mais ainda, com o termo
"liberalismo", surgido no século 19.
NOVAS INSTÂNCIAS O Brasil independente somou duas novas
instâncias eleitorais aos antigos pleitos nas vilas. Cada província
passou a ter uma Assembleia eleita, com orçamentos próprios e poderes
regionais. No âmbito nacional, foi criado um poder Legislativo -e
deputados e senadores também passaram a ser eleitos.
De 1826 em diante, o parlamento funcionou no Brasil quase com a mesma
regularidade das Câmaras nas vilas. A atual legislatura no Congresso é a
54ª -e 52 delas completaram o mandato.
O Parlamento brasileiro funciona regularmente como autoridade com o
monopólio de legislar há mais tempo do que o francês (o qual só
conquistou com firmeza esse poder a partir de 1875). Entre os grandes
países do Ocidente, só Inglaterra e EUA elegem legisladores com tais
poderes há mais tempo que o Brasil. E Portugal não se notabilizou por
essa tradição.
BRASIL IMPERIAL Apesar de todos os fatos, votos e mandatos
somados, ainda havia quem duvidasse da existência de democracia -agora a
democracia liberal ou burguesa- no Brasil. Como a tábua de comparação
mudou no século 19 (havia agora democracia burguesa em vários países no
Ocidente), novos argumentos surgiram contra a ideia da democracia
brasileira como valor. Um deles tinha uma base importante: a implantação
de um governo com soberania oriunda apenas do povo -e a eliminação do
monarca com poderes divinos- ficou pela metade no Brasil imperial.
A soberania popular não era a única fonte de poder nacional legítimo
determinada na Constituição de 1824. Era apenas a fonte do poder de
deputados e senadores. O imperador era soberano por outra fonte de
poder, a mesma dos reis medievais: o direito divino.
O imperador aparecia na lei como detentor privativo de um quarto poder, o
Moderador, situado acima dos demais, reservando ao monarca a chefia do
Executivo e do Judiciário. Assim, o Império foi o período de convívio de
um Legislativo de soberania popular com um Imperador medieval
intocável.
De início, houve conflito entre o poder arbitrário e pessoal com aquele
derivado da soberania popular. O primeiro se destacou até a abdicação de
Pedro 1º, em 1831; o segundo, na Regência, que durou até 1840. D. Pedro
2º soube reservar o exercício do Executivo para deputados e senadores, e
assim transformou em convívio o conflito explícito de soberanias, num
parlamentarismo que a lei não previa.
O gabinete tinha de conseguir maioria no Parlamento. Quando perdia, um
novo ministério era apresentado, o parlamento, dissolvido, e eleições,
convocadas. O Poder Moderador ajudava: os novos ministros eram nomeados
provisoriamente pelo imperador, promoviam a derrubada -isto é, trocavam
os funcionários de confiança. O uso da máquina garantia vitórias
eleitorais.
Deu certo até 1868, quando o imperador demitiu um ministério liberal com maioria no Parlamento.
Criticando a medida, o senador Nabuco de Araújo disse uma frase que
ficou famosa como "Sorites de Nabuco": "O Poder Moderador pode chamar
quem quiser para organizar o ministério; essa pessoa faz a eleição,
porque há de fazê-la; essa eleição faz a maioria. Eis o sistema
representativo de nosso país. Não é isso uma farsa, o verdadeiro
absolutismo?".
Assim pensavam alguns liberais que abandonaram o partido e fundaram o
Partido Republicano, cujo programa tinha como ponto máximo a abolição do
Poder Moderador. Foi eleitoralmente marginal até junho de 1889, quando o
imperador demitiu o segundo ministério com maioria no Parlamento -
agora o dos conservadores, liderados por João Alfredo, que tinha feito a
Abolição.
Era a vez de os conservadores, que sempre defenderam interpretações
favoráveis ao emprego arbitrário do Poder Moderador, refletirem -nem
sempre com a elegância de um Nabuco. No dia em que o novo chefe do
ministério se apresentou ao Parlamento, um deputado conservador, o padre
João Manuel, gritou no plenário em alto e bom som: "Viva a República!".
O grito pareceu tão sem sentido como todos os outros. O novo ministério
caprichou na derrubada e venceu as eleições. Manteve a regra: o Poder
Moderador jamais perdeu uma eleição -jamais a vontade popular se impôs à
do Imperador.
O poder do engajamento do Estado ao lado de um partido era muito maior
do que todos os outros truques da época para sabotar a soberania do
povo. Não que inexistissem esses outros mecanismos.
Toda a pletora de meios para falsear a vontade do eleitor -exclusão de
pobres e mulheres, de analfabetos (introduzida no Brasil em 1879),
pressão de autoridades, voto aberto, pancadas, juízes eleitorais
parciais, uso de dinheiro- existiu. Mas ela também pode ser encontrada,
na mesma época, em qualquer democracia do Ocidente, com poucas
diferenças no grau de aplicação.
(Segunda nota: há bibliotecas inteiras sobre os mecanismos para limitar a
soberania popular no Império e na República, mas são quase inexistentes
os trabalhos que os comparam com similares estrangeiros, como se
eleições dirigidas fossem apenas obra de coronéis locais. Para uma visão
ponderada, vale a pena fazer história comparada nesta modalidade.)
Em resumo, a soberania popular foi ampliada no Império. Autoridades
provinciais e legisladores passaram a ser eleitos. Mesmo com uma
Constituição muito restritiva, esses eleitos exerceram poderes bem
maiores que os reservados no papel. Inversamente, o emprego do Poder
Moderador nos registros mais arbitrários levou às crises do Primeiro
Reinado e à queda do Segundo.
Havia democracia no Brasil imperial? Num momento em que a democracia já
era um valor universal, intelectuais que julgavam os fatos da política
precisavam se esforçar para justificar uma resposta negativa para o caso
brasileiro. Os que negavam o valor apelavam para o poder do imperador e
deixavam de lado o Parlamento ativo.
A soberania discricionária, ao modo medieval, caiu com o Império,
derrubado ainda em 1889. A República acabou de vez com a coexistência
legal de duas soberanias e impôs a regra burguesa que se tornava
universal: "Todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido".
O sistema de governo no Brasil estruturou-se juridicamente como
democracia liberal ou burguesa, com o poder legítimo partindo da
soberania popular. Aumentaram as instâncias eleitorais, com voto para
governador, prefeito e presidente da República. Mas os argumentos contra
a democracia como valor não morreram com a extinção do Poder Moderador.
Um novo tipo passou a ser empregado: uma coisa é a forma, outra, o
conteúdo. O povo soberano na letra da lei pode não ser o povo soberano
de fato.
Esse argumento ganha força quando se conta a história da República como a
da resistência, no Executivo, à submissão de seu ocupante máximo à
vontade do povo soberano. O hábito fazia presidentes agirem como
monarcas dotados de poder superior ao vulgo, forçando o resultado das
eleições a partir das nomeações de cargos públicos -com apoio de um
Judiciário pouco independente.
Dessa fonte provieram as permanentes tentativas de pressão, os gestos
para afirmar o resultado eleitoral como consequência da força do governo
dotado de vontade eleitoral própria. O Executivo central, não o coronel
local, foi o centro desse reacionarismo no período republicano.
Houve ainda coisa pior: a ditadura de Getúlio Vargas no período do
Estado Novo (1937-45) foi o ponto mais baixo da democracia em toda a
história brasileira-nunca, nem mesmo na colônia, tinha havido tempo sem
governantes eleitos. Os militares pós-64 não chegaram a tanto:
mantiveram o Parlamento aberto quase o tempo todo, além de eleições
locais. E mantiveram uma relação, ainda que inteiramente formal, com a
ideia de soberania popular. Não deixa de ser curiosa a submissão dos
generais ao hábito do mandato limitado, dado "pelo povo", e à
alternância no poder.
Mas para negar a democracia como valor na República é preciso também
negar que a maioria dos presidentes foram eleitos -e as eleições
melhoraram no correr do tempo. A coalizão democrática montada em torno
da campanha por eleições diretas, em 1984, fez mais que remover um
governo autoritário. Na eleição de Tancredo Neves havia embutida a
promessa de um novo teor de soberania popular.
Mas foi em 1992, no impedimento de Fernando Collor, a primeira derrota
de um presidente da República diretamente para o povo soberano, que esse
teor se mostrou. Desde então, a tentação da arbitrariedade permanece
contida. Os chefes do Executivo têm poder derivado da vontade dos
eleitores e respeitam essa regra de ouro.
Esse momento estável permite pensar de outro modo as estruturas
regulares das instituições brasileiras. O que sugiro aqui é que o voto e
a democracia no Brasil talvez tenham base de valor maior que aquela
usualmente avaliada por seus intelectuais. Há 480 anos de eleição
regular das autoridades locais. Esse é um fato histórico geral, regular,
constante. No nível local, quase nunca houve autoridade que não fosse
eleita.
É difícil atribuir esse comportamento geral à ação da autoridade central
ou de uma elite letrada. Ele nasceu nos tempos coloniais, antes da
democracia burguesa, de baixo para cima, contra os representantes do
poder real -e também contra o desprezo de muitos narradores. Votar foi
um valor da sociedade mestiça, não dos letrados que tratavam seus
membros como pessoas insignificantes.
Pensando no Brasil Nação, temos 188 anos de eleições de parlamentares e
174 anos de funcionamento regular do Congresso Nacional. Parlamentares
cumprem mandato numa tradição raríssima nas democracias ocidentais. Nos
122 anos de República, a maioria dos comandantes do Executivo, nos
Estados e na federação, foi eleita e entregou o cargo ao fim do mandato.
A prática da democracia está impregnada na sociedade.
Voltamos à pergunta central, relacionada a valores: existe democracia na história do Brasil?
Um bom número de intelectuais afirma que não; não veem os fatos democráticos aqui descritos como valor democrático.
Incluo a mim mesmo entre os incapazes de escapar desse modo medieval. O
conjunto de fatos que reuni talvez não convença muitos. A pergunta pode
ganhar outra forma: a falta de democracia na história seria um problema
dos fatos da história ou da miopia de intérpretes que elogiam capitães e
escondem eleições?
Hoje, temos conservadores "de primeiro mundo" imaginando viver ao lado
de um "povo do terceiro mundo". E revolucionários socialistas muito
capazes de prosápia científica para justificar a pretensão de dirigir as
"massas populares sem consciência" ao modo dos reis medievais.
Talvez nós, intelectuais brasileiros, realmente não estejamos tão
preparados para explicar a democracia como o povo está preparado para
votar.
Na colônia, quanto mais distante do governo central, maior era o
poder dos vereadores. A Câmara de São Paulo chegou a decretar o valor da
moeda, poder reservado ao monarca
Será que a existência empírica de milhões de votos e milhares de
mandatos cumpridos é grande a ponto de levar você, leitor, a acreditar
que havia democracia no Brasil colonial?
O Parlamento brasileiro funciona como autoridade com o monopólio de
legislar há mais tempo do que o francês (o qual só conquistou esse poder
a partir de 1875)
O Estado Novo (1937-45) foi o ponto mais baixo da democracia em toda a
história brasileira-nunca, nem mesmo na colônia, tinha havido tempo sem
governantes eleitos
Há 480 anos de eleição regular das autoridades locais. Esse é um fato
histórico geral, regular, constante. No nível local, quase nunca houve
autoridade que não fosse eleita
|