Contra o Estado-anunciante
17 de maio de 2012 | 7h 49
Eugênio Bucci
No México, os meios de comunicação estão se vendendo - e
 se rendendo - à força do governo. O diagnóstico é de Rubén Aguilar, 
professor e jornalista mexicano que foi porta-voz da Presidência da 
República de seu país entre 2002 e 2006 (governo Vicente Fox). "Tudo 
está à venda", disse ele durante sua palestra no seminário Meios de 
Comunicação e Democracia na América Latina, realizado no Instituto 
Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, no final da tarde de 
terça-feira. E arrematou: "Só o que se discute é o preço".
No México descrito por Aguilar, a tensão entre a imprensa e o poder, 
que é natural e desejável nos regimes democráticos, tende a desaparecer 
para dar lugar a uma relação de troca negocial, um toma lá, dá cá em que
 os governantes ganham poder (com o apoio dos veículos jornalísticos) e 
os empresários do setor ganham dinheiro (tendo no Estado um anunciante 
camarada). Assim, enquanto uns faturam votos e outros faturam lucros, a 
sociedade perde: a fiscalização do poder some de cena e a imprensa se 
converte em mercadoria política.
Diante desse cenário, o ex-porta-voz foi coerente e se declarou 
contrário ao uso de verbas públicas no mercado publicitário. O Estado, 
quando se converte em anunciante, passa a constranger, seduzir, cercear 
ou mesmo chantagear órgãos de imprensa, não necessariamente nessa ordem.
 O jornalismo investigativo perde fôlego - e a democracia, também.
Na abertura do mesmo seminário, Bernardo Sorj, diretor do Centro 
Edelstein de Pesquisa Social, professor titular aposentado da 
Universidade Federal do Rio de Janeiro e organizador do livro Meios de 
Comunicação e Democracia: Além do Estado e do Mercado (publicado no ano 
passado pelo Centro Edelstein), tocou no mesmo ponto. Para ele, devemos 
considerar a necessidade de impor limites ao crescente investimento de 
dinheiro público em propaganda de governo. Aos que defendem a 
publicidade governamental com o tortuoso sofisma de que ela jogaria 
recursos em pequenos jornais e emissoras, contribuindo assim para a 
"diversidade" no debate público, Bernardo Sorj argumenta, corretamente, 
que, se for esse o objetivo, o Estado deveria abrir linhas de 
financiamento público, a partir de critérios democráticos, impessoais e 
transparentes. Essa seria a política adequada para apoiar veículos 
menores e fortalecer a pluralidade e a concorrência saudável.
Aos poucos, ainda que tardiamente, vai nascendo entre nós a percepção
 de que a publicidade governamental distorce, deforma e degrada o debate
 público. Ela, que sempre foi uma unanimidade entre os agentes políticos
 - basta ver que, no Brasil e em todos os países da América Latina, os 
governos anunciam cada vez mais, qualquer que seja o partido do 
mandatário -, começa finalmente a ser descrita como problema para os 
observadores mais críticos.
Já era tempo. Aqui mesmo, neste mesmo espaço, esse problema já foi 
denunciado mais de uma vez: o que existe hoje nas nossas democracias 
ainda precárias é uma simbiose promíscua entre Estado e meios de 
comunicação privados, gerando um ecossistema com o qual é muito difícil 
romper.
No Brasil, a prática avança numa progressão de enrubescer o erário. 
Na primeira década do século 21 será difícil encontrar, na administração
 pública brasileira, uma rubrica orçamentária que tenha crescido mais.
Comecemos pela Prefeitura de São Paulo: num intervalo de seis anos, o
 montante jogado em publicidade oficial praticamente decuplicou, 
saltando de R$ 12 milhões em 2005 para R$ 108 milhões em 2010. Na cidade
 do Rio de Janeiro, a evolução foi ainda mais estonteante: em 2009, ao 
menos de acordo com os dados oficiais, a soma aplicada em publicidade da
 prefeitura ficou na casa de R$ 0,47 milhão e, em 2011, o total alcançou
 a cifra de R$ 74 milhões. O governo estadual do Rio de Janeiro passou 
de R$ 70 milhões em 2005 para R$ 172,5 milhões em 2011. No governo 
federal, conforme cifras divulgadas no site da Secretaria de Comunicação
 Social da Presidência da República, a Secom, os gastos da administração
 direta e indireta (contando, portanto, com as empresas estatais) vêm 
oscilando em torno da marca do bilhão de reais. No ano de 2009 houve um 
pico: R$ 1,7 bilhão. Também em 2009, o governo paulista alcançou um 
ápice de R$ 314,6 milhões, ante apenas R$ 33 milhões em 2003.
A que se destinam tantas fortunas? Elas não geram ambulatórios, não 
criam vagas nas escolas públicas, não abrem um só quilômetro de metrô, 
não aumentam o efetivo policial, não melhoram as estradas, nada disso. 
Nem sequer informação elas oferecem à sociedade. Só o que essa 
dinheirama produz é fetiche: uma boa imagem - imagem mercadológica - 
para aqueles que governam. É bom observar, a propósito, que a linguagem,
 a estética e a forma narrativa da propaganda oficial são idênticas - 
são as mesmas - às adotadas pelos filmetes partidários exibidos no 
horário eleitoral. A propaganda governamental é o prolongamento 
escancarado da propaganda eleitoral - e vice-versa. Ao contrário do que 
dizem os governantes, não sem cinismo, essas peças de comunicação não 
informam coisa alguma - apenas contam lorotas publicitárias.
O pior, o mais grave de tudo, é que elas esvaziam a independência dos
 órgãos jornalísticos de pequeno e de médio porte. Dizem as autoridades 
da comunicação oficial que, distribuindo seus milhões para os pequenos, 
os governos fortalecem os jornais locais ou "alternativos". É mentira. A
 verba pública transformada em verba anunciante nos jornais e nas 
emissoras locais produz neles uma dependência mortal. O dinheiro público
 entra pela porta e a independência crítica é expulsa pela janela. 
Também por isso, a figura novíssima e abrutalhada do Estado-anunciante 
só enfraquece a democracia.
Têm razão Rubén Aguilar e Bernardo Sorj. Mas que político terá coragem de romper com o ecossistema?