"Todo segredo de Estado é nocivo ao País"
- Publicado em Domingo, 20 Maio 2012 19:05
- Escrito por Guilherme Calderazzo
A instalação da Comissão da Verdade no País não traz apenas a importância
de apurar os casos de violação dos direitos humanos no País entre 1946 e
1988, com ênfase no período do regime militar (1964-1985). Acima de
tudo mais, a comissão tem a possibilidade de atingir um dos privilégios
dos operadores do Estado, que é o segredo. Ao dar luz aos atos estatais
mantidos à distância da história nacional, a comissão ganha a
oportunidade de contribuir para o avanço da democracia no Brasil e o
fortalecimento do memorial brasileiro, avalia o professor Roberto
Romano, responsável pelo curso de pós-graduação de Filosofia Política da
Unicamp.
Para ele, o País só tem a ganhar, como fica claro nesta entrevista ao Diário do Comércio. Acompanhe:
Diário do Comércio – Qual é a real importância da Comissão da Verdade?
Roberto Romano – A importância é o fato de ela ser uma
comissão de Estado e não de governo. Há uma diferença grande nessa
questão. A função da comissão é investigar, saber e definir como
funcionou o Estado brasileiro entre 1946 e 1988. Se ela permanece nesse
nível, dificilmente vai cair em questões de governo, partidos políticos e
ideologias. Mantida essa linha, para se discutir o que é mais
universal, e não ficar presa aos elementos mais conjunturais, ela vai
prestar um serviço muito grande ao País, porque nosso problema não é
apenas de governo, do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. Nosso
problema é que temos um Estado cuja natureza é ainda não plenamente
democrática.
DC – Como a Comissão poderá reforçar a nossa democracia?
Romano – O primeiro ponto é que, desde que nós
instauramos o Estado, houve uma diferenciação entre quem o opera e o
cidadão. Ou seja, os operadores mantêm privilégios, entre eles a
manutenção dos procedimentos em segredo. Tivemos duas ditaduras no
século 20 – a de Vargas, entre 1937 e 1945, e a civil e militar, entre
1964 e 1985. Essa participação civil no regime militar pode ser mais bem
esclarecida pela Comissão. Ela poderá mostrar o quanto o uso do segredo
é nocivo para a democracia e para a prestação de contas ao cidadão. É
muito interessante que a Comissão tenha sido instaurada no mesmo dia em
que entrou em vigor a Lei de Acesso à Informação. Desde que nos tornamos
independentes de Portugal, em 1822, vivemos sob o pressuposto de que
aos operadores do Estado tudo é permitido, e ao cidadão cabe alguns
poucos direitos. A comissão não irá resolver esse problema, mas mostrará
como é danosa para a vida da cidadania o segredo de Estado.
DC – A Comissão deve investigar todos os violadores dos Direitos Humanos, de ambos os lados?
Romano – Acho que sim. Para mim, a Comissão teve
início com um problema que deve resolver rapidamente, que é o fato de
seus integrantes falarem individualmente à imprensa e à população sobre
os rumos das investigações. Não devem falar individualmente porque irão
tratar de problemas muito complexos, que envolvem atividade civis e
oficiais. Portanto, caberia sempre à Comissão, até do ponto de vista
ético, só se pronunciar coletivamente. Todos os problemas devem ser
debatidos apenas no plano interno.
DC – Quais são os riscos dos pronunciamentos individuais?
Romano – O risco é que poderá emaranhar-se em debates
ideológicos, políticos, dos revanchistas contra os perdoadores, que querem
manter o status trazido pela Lei da Anistia. Tudo o que será
investigado pela Comissão deverá receber uma luz mais intensa, já que
são questões do Estado brasileiro que ainda não é plenamente
democrático. A Comissão é do Estado, não é do Legislativo, do Executivo
ou do Judiciário. Portanto, por prudência e respeito ao cidadão, as
divergências devem ser resolvidas internamente. A Comissão andou mal nos
primeiros dias por causa das posições divergentes de seus integrantes.
DC – A posição da Comissão deverá ser acatada sem contestação?
Romano – Não necessariamente. Embora ela seja uma
comissão de Estado, os integrantes são seres humanos. Como até mesmo o
Supremo Tribunal Federal pode errar, assim também eles podem errar.
Portanto, para evitar erros, eles devem usar a cautela, a prudência, o
rigor, a exigência ao apurar e investigar. Eles têm dois anos para
trabalhar nessas questões, que devem ser inquestionáveis no plano da
cidadania e dos direitos humanos.
DC – A Lei da Anistia poderá ser modificada?
Romano – O que ocorreu foi que a Lei da Anistia foi
promulgada ainda no regime militar. Foi aprovada e aceita pelos
congressistas. No meu entender, essa lei poderia ter sido modificada
logo no começo, se nós tivéssemos tido uma Assembleia Nacional
Constituinte. Ela foi aceita universalmente por um Congresso
Constituinte. Hoje, é complicado dizer que a Lei de Anistia não serve
mais. Essa lei é válida inclusive por decisão do Supremo Tribunal
Federal.
DC – Os militares se mostram apreensivos com a atuação da Comissão. Há motivo para isso?
Romano – A Comissão deverá pautar a atuação pela
prudência e respeito universal pelas partes envolvidas. Isto valerá
tanto para os que se sentiram ofendidos, lesados e sacrificados durante o
período quanto para os que foram responsáveis e autores desses atos.
Todos deveriam ficar com os ânimos serenados e dar um prazo para que a
comissão cumpra seu trabalho.