segunda-feira, 21 de maio de 2012

Diário do Comércio de São Paulo.


"Todo segredo de Estado é nocivo ao País"

Desde a Independência vivemos sob o pressuposto de que aos operadores do Estado tudo é permitido/Foto: Patrícia Cruz/Luz

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A instalação da Comissão da Verdade no País não traz apenas a importância de apurar os casos de violação dos direitos humanos no País entre 1946 e 1988, com ênfase no período do regime militar (1964-1985). Acima de tudo mais, a comissão tem a possibilidade de atingir um dos privilégios dos operadores do Estado, que é o segredo. Ao dar luz aos atos estatais mantidos à distância da história nacional, a comissão ganha a oportunidade de contribuir para o avanço da democracia no Brasil e o fortalecimento do memorial brasileiro,  avalia o professor Roberto Romano, responsável pelo curso de pós-graduação de Filosofia Política da Unicamp. 
 
Para ele, o País só tem a ganhar, como fica claro nesta entrevista ao Diário do Comércio. Acompanhe: 

Diário do Comércio – Qual é a real importância da Comissão da Verdade? 

Roberto Romano – A importância é o fato de ela ser uma comissão de Estado e não de governo. Há uma diferença grande nessa questão. A função da comissão é investigar, saber e definir como funcionou o Estado brasileiro entre 1946 e 1988. Se ela permanece nesse nível, dificilmente vai cair em questões de governo, partidos políticos e ideologias. Mantida essa linha, para se discutir o que é mais universal, e não ficar presa aos elementos mais conjunturais, ela vai prestar um serviço muito grande ao País, porque nosso problema não é apenas de governo, do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. Nosso problema é que temos um Estado cuja natureza é ainda não plenamente democrática. 

DC – Como a Comissão  poderá reforçar a nossa democracia?  

Romano – O primeiro ponto é que, desde que nós instauramos o Estado, houve uma diferenciação entre quem o opera e o cidadão. Ou seja, os operadores  mantêm privilégios, entre eles a manutenção dos procedimentos em segredo. Tivemos duas ditaduras no século 20 – a de Vargas, entre 1937 e 1945, e a civil e militar, entre 1964 e 1985. Essa participação civil no regime militar pode ser mais bem esclarecida pela Comissão. Ela poderá mostrar o quanto o uso do segredo é nocivo para a democracia e para a prestação de contas ao cidadão. É muito interessante que a Comissão tenha sido instaurada no mesmo dia em que entrou em vigor a Lei de Acesso à Informação. Desde que nos tornamos independentes de Portugal, em 1822, vivemos sob o pressuposto de que aos operadores do Estado tudo é permitido, e ao cidadão cabe alguns poucos direitos. A comissão não irá resolver esse problema, mas mostrará como é danosa para a vida da cidadania o segredo de Estado. 

DC – A Comissão deve investigar todos os violadores dos Direitos Humanos, de ambos os lados? 

Romano – Acho que sim. Para mim, a Comissão teve início com um problema que deve resolver rapidamente, que é o fato de seus integrantes falarem individualmente à imprensa e à população sobre os rumos das investigações. Não devem falar individualmente porque irão tratar de problemas muito complexos, que envolvem atividade civis e oficiais. Portanto, caberia sempre à Comissão, até do ponto de vista ético, só se pronunciar coletivamente. Todos os problemas devem ser debatidos apenas no plano interno. 

DC – Quais são os riscos dos pronunciamentos individuais? 

Romano – O risco é que poderá emaranhar-se em debates ideológicos, políticos, dos revanchistas contra os perdoadores, que querem manter o status trazido pela Lei da Anistia. Tudo o que será investigado pela Comissão deverá receber uma luz mais intensa, já que são questões do Estado brasileiro que ainda não é plenamente democrático. A Comissão é do Estado, não é do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário. Portanto, por prudência e respeito ao cidadão, as divergências devem ser resolvidas internamente. A Comissão andou mal nos primeiros dias por causa das posições divergentes de seus integrantes. 

DC – A posição da Comissão deverá ser acatada sem contestação? 

Romano – Não necessariamente. Embora ela seja uma comissão de Estado, os integrantes são seres humanos. Como até mesmo o Supremo Tribunal Federal pode errar, assim também eles podem errar. Portanto, para evitar erros, eles devem usar a cautela, a prudência, o rigor, a exigência ao apurar e investigar. Eles têm dois anos para trabalhar nessas questões, que devem ser inquestionáveis no plano da cidadania e dos direitos humanos. 

DC – A Lei da Anistia poderá ser modificada? 

Romano – O que ocorreu foi que a Lei da Anistia foi promulgada ainda no regime militar. Foi aprovada e aceita pelos congressistas. No meu entender, essa lei poderia ter sido modificada logo no começo, se nós tivéssemos tido uma Assembleia Nacional Constituinte. Ela foi aceita universalmente por um Congresso Constituinte. Hoje, é complicado dizer que a Lei de Anistia não serve mais. Essa lei é válida inclusive por decisão do Supremo Tribunal Federal.

DC – Os militares se mostram apreensivos com a atuação da Comissão. Há motivo para isso? 

Romano –  A Comissão deverá pautar a atuação pela prudência e respeito universal pelas partes envolvidas. Isto valerá tanto para os que se sentiram ofendidos, lesados e sacrificados durante o período  quanto para os que foram responsáveis e autores desses atos. Todos deveriam ficar com os ânimos serenados e dar um prazo para que a comissão cumpra seu trabalho.