Chocante é o que foi falado em público
31 de maio de 2012 | 3h 15
Eugênio Bucci
Comecemos por uma recapitulação factual básica (há tanto
barulho em torno do assunto que, por vezes, retomar o óbvio se faz
necessário). A imprensa brasileira anda obcecada com o teor de uma
conversa privada, que ocorreu em Brasília há mais de mês. Em 26 de
abril, no escritório de Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa e
ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva reuniu-se com o ministro do Supremo Gilmar Mendes. A
notícia desse encontro, porém, só circulou agora, no fim de semana,
numa reportagem de Otavio Cabral e Rodrigo Rangel na revista Veja. Desde
então o tema não sai do noticiário - e a tensão cresce.
Mendes afirma que Lula o teria pressionado pelo adiamento do
julgamento do mensalão no STF. De seu lado, o ex-presidente da República
apenas soltou uma nota pública na qual ele se declara "indignado" com o
relato de Mendes, que ele, Lula, qualifica de "inverídico". Quanto a
Jobim, primeiro deu a entender que não foi bem isso, depois tentou o
"deixa disso" e finalmente se refugiou no protocolar "nada a declarar".
Óbvio: os jornalistas têm razões para estarem obcecados pela reunião.
Em primeiro lugar, porque ela pode ter encerrado uma insinuação que
seja, mas uma insinuação indevida, de um ex-presidente da República para
constranger um magistrado da Corte Suprema, o que, se confirmado, seria
um escândalo. Em segundo lugar, porque um dos dois está torcendo a
verdade e, se esse alguém for Gilmar Mendes, o escândalo talvez seja
pior. O ministro do Supremo seria o vetor de uma acusação falsa contra
um ex-presidente da República, o que tornaria moralmente insustentável a
sua permanência no tribunal e comprometeria a confiabilidade de
decisões anteriores do STF.
Não por acaso, além dos repórteres, dos deputados, dos senadores, dos
ministros e dos cidadãos, a própria presidente Dilma Rousseff se
preocupa, e bastante, conforme este jornal noticiou ontem, com os
efeitos retardados da conversa que teve lugar no escritório de Jobim em
Brasília, em 26 de abril. Não é para menos: ela precisa desvincular seu
governo de toda essa confusão. O quanto antes. O quadro é urgente e
dramático.
E até aqui falamos apenas do óbvio, do básico.
Acontece que há outra face desse mesmo problema. Não é bem uma face
oculta: ela é ofuscante, tem uma claridade solar. Deveria ser mais óbvia
ainda, mas, talvez por ser tão chocante, tão difícil de assimilar, nós
olhamos para ela como se fosse transparente, invisível, inexistente.
Essa outra face é a face pública que cerca, feito uma moldura entalhada
em fatos indisfarçáveis, a conversa misteriosa entre Lula e Gilmar
Mendes. O que os dois estão falando em público é muito mais perturbador
do que poderiam ter falado ali, a portas fechadas, longe dos holofotes.
Vamos, então, às falas.
O ex-presidente vem repetindo a todas as plateias que o mensalão foi
uma grandessíssima "farsa", articulada num conluio entre setores da
imprensa e da oposição, com o objetivo de arrancá-lo do poder, em 2005,
por meio de um "golpe" sem armas. Com isso - deveria ser óbvio, mas
parece que não é - Lula está acusando reiteradamente o STF de ter dado
acolhida formal a um processo fajuto, baseado em fatos que nunca
ocorreram, um processo que seria o prolongamento maldito da "farsa".
Atenção: ele não ataca apenas o Ministério Público e a Polícia Federal,
ataca também e principalmente o Poder Judiciário em sua mais alta Corte,
que seria cúmplice de uma tentativa de golpe de Estado. Em vez de pedir
um julgamento justo e desapaixonado - a exemplo do que têm feito os
próprios acusados -, o que seria legítimo e adequado, Lula fustiga: esse
processo não passa de uma falsificação de fato e de direito. Com isso
desqualifica a Justiça.
Essa postura vem de tempos. Mais abertamente, vem pelo menos desde
2010. Numa entrevista a blogueiros, ainda instalado no Planalto, Lula
caracterizou o mensalão como uma "tentativa de golpe". E prometeu:
"Depois que eu deixar a Presidência, vou querer me inteirar um pouco
mais disso, mas, como presidente, não posso ficar futucando". Em outro
evento, como este jornal noticiou em 20 de novembro de 2010, o então
presidente anunciou que a partir de janeiro de 2011 iria empenhar-se em
"desmontar a farsa do mensalão". E assim tem sido. Agora, em 21 de maio,
ao ser homenageado na Câmara Municipal de São Paulo, ele voltou a falar
do caso como um movimento golpista: "Na verdade, era um momento em que
tentaram dar um golpe neste país".
As palavras de Lula encerram o significado de Lula. Ele representa,
hoje, a ponta de lança de um discurso corrosivo que acusa o STF de ter
recebido como processo jurídico normal uma repugnante tentativa de golpe
de Estado.
Por isso Gilmar Mendes cometeu um erro ao ter dito sim ao convite
para se reunir reservadamente com Lula, justamente aquele que enuncia
publicamente uma acusação peremptória contra o STF. Agora, nesta semana,
Mendes incidiu num segundo erro, que é pior. Falou várias vezes a
repórteres sobre seu diálogo com Lula e a cada nova manifestação vem
subindo o tom, numa escalada que amedronta. Chegou a dizer que Lula está
ligado a "moleques", "bandidos" e "gângsteres", que se teriam associado
numa operação para desmoralizá-lo.
Aí, complica. O ministro tem o direito - e talvez o dever - de dizer o
que ouviu de Lula numa reunião particular. Só não deveria partir para o
desaforo. Quando um magistrado da Corte Suprema bate boca, o Estado de
Direito bate os dentes.
Naquele dia 26 de abril, num escritório brasiliense, pode ter havido
uma conversa grave, mas o cenário que a envolve, e que é público, é mais
grave ainda. Tão grave e tão claro que nos cega e nos deixa
paralisados.
* JORNALISTA, É PROFESSOR DA USP E DA ESPM