O poder do latifúndio
nos domínios do PT
José Nêumanne
O “neocoronelismo” petista substituiu o antigo voto de cabresto pelo sufrágio do guidom
Petrolina
e, como a cidade às margens do São Francisco, Pernambuco inteiro, pela
voz de seu governador, Eduardo Campos (do clã Alencar, do Cariri
cearense), indignaram-se com as críticas ao
ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho, por ter
destinado 90% de todas as verbas da pasta ao seu Estado. Também a
Paraíba mobilizou suas tropas retóricas para atacar qualquer um que
lembrasse a circunstância de o novo ministro das Cidades
do mesmo governo soi-disant socialista de Dilma Rousseff,
Aguinaldo Ribeiro, ser neto de Agnaldo Veloso Borges, vilão histórico da
esquerda acusado de ter mandado matar os líderes camponeses João Pedro
Teixeira e Margarida Maria Alves. Agora vem o repórter
Leonencio Nossa, da sucursal de Brasília deste jornal, lembrar que o
dono da empreiteira Delta – campeã de obras do Programa de Aceleração de
Crescimento (PAC) e citada nas denúncias contra o bicheiro Carlinhos
Cachoeira –, Fernando Cavendish, é bisneto do
coronel Veremundo Soares, de Salgueiro.
A
Salgueiro do tempo dos coronéis tornou-se lendária pela citação num dos
clássicos do repertório de outro sertanejo de Pernambuco, Luiz Gonzaga,
em sua homenagem ao pai, o sanfoneiro Januário,
do Vale do Araripe: “De Itaboca a Rancharia, de Salgueiro a Bodocó,
Januário é o maior”. Hoje em dia, a região notabiliza-se pelo comércio
de carros roubados e pelas plantações de
Cannabis sativa, que a tornaram uma espécie de capital informal
do “perímetro da maconha”. Assim como as plantações de coca florescem
nos sovacos dos Andes bolivianos e em outros locais inóspitos, a “erva
maldita” cresce e dá bons lucros num território
que antes era definido como “polígono das secas” e agora recebe a crua
denominação de semiárido. Neste ano, em que ocorre o mais penoso período
de estiagem no Nordeste em 30 anos, por mais que incendeie roças da
matéria-prima para a droga com a qual os viciados
costumam se iniciar, a polícia não dá conta de seu avanço sertão
adentro.
A
exclusão do nome do bisneto do coronel Veremundo dos convocados a depor
na CPI do bicheiro goiano reforça as evidências históricas de que a
força inesgotável das oligarquias com poder sediado
no sertão representa para a região específica e para todo o Brasil uma
praga pior do que o flagelo das secas periódicas e a maconha perene.
Na
falta de chuvas deste ano, a situação aflitiva das populações
sertanejas é amenizada pela esmola estatal da Bolsa-Família. A famosa
bravata de dom Pedro II, que prometeu empenhar o último
diamante da coroa imperial para evitar que um cearense morresse de
fome, foi assumida pela República assistencialista, que adotou o
“neocoronelismo” com cartão magnético e trocou o voto de cabresto pelo
sufrágio do guidom. Pois o jegue foi substituído pela
moto, financiada a perder de vista, mas também a perder da vida, pois o
comprador é dizimado nas rodovias em acidentes fatais e dificilmente
sobrevive à própria dívida. No entanto, os animais criados pelas
famílias dos camponeses pobres são sacrificados pela
inclemência climática e pela insensibilidade do Estado ausente.
O poder do latifúndio no passado foi tema de clássicos da sociologia brasileira, tais como
Coronelismo, Enxada e Voto, de Victor Nunes Leal, Coronel, Coronéis – Apogeu e Declínio do Coronelismo no Nordeste, de Marcos Vinicios Vilaça e Roberto Cavalcanti de Albuquerque, e
Família e Coronelismo no Brasil – Uma História de Poder, de André
Heráclio do Rêgo. A “inclusão” dos costumes desse mandonismo na
República petista tem merecido um estudioso à altura desses citados
expoentes da sociologia do latifúndio, o professor Luiz
Werneck Vianna, que no artigo As cidades e o sertão, publicado
nesta página, esclareceu: “Está aí a mais perfeita tradução da quasímoda
articulação, no processo de modernização capitalista do País, entre o
moderno e o atraso, ilustração viva do ensaio
de José de Souza Martins A Aliança entre Capital e Propriedade da Terra: a Aliança do Atraso (in A Política do Brasil Lúmpen e Místico,
São Paulo, Editora Contexto, 2011) e que se vem atualizando por meio da
conversão do imenso estoque de capital
social, econômico e político do latifúndio tradicional, que se processa
no circuito da política e mediante favorecimento da ação estatal, em
que seus herdeiros se reciclam para o exercício de papéis modernos. Para
quem é renitente em não ver, este é o lado
obscuro do nosso presidencialismo de coalizão, via escusa em que os
porões da nossa História se maquiam e mudam para continuarem em suas
posições de mando”. Ou seja, “ou fingimos que mudamos ou eles mudam
contra nós” – parafraseando o príncipe de Salina, protagonista
do romance O Leopardo.
O
maquiavélico conselho do cínico protagonista da obra-prima de Giuseppe
Tomasi di Lampedusa ao sobrinho Tancredi traduz a aliança entre os
socialistas pragmáticos do PT e os senhores da terra
do semiárido. Não se trata de acusar o neto pelos crimes atribuídos ao
avô nem de atribuir ao bisavô os deslizes do bisneto, e sim de
reconhecer a renitente sobrevivência do semifeudalismo rural sertanejo
nos costumes políticos do Brasil contemporâneo. A transposição
do Rio São Francisco, anunciada para matar a sede dos sertanejos, não
passa de truque retórico para dar cunho social a uma obra faraônica, que
custará caro ao contribuinte e entregará a água a quem já tem a terra
para irrigar. A estéril discussão sobre os
efeitos do clima no semiárido, sem consequências práticas, representa a
manutenção do domínio político e econômico dos oligarcas, confirmado
por fatos.
Este
ano, a prefeitura de Campina Grande, centro universitário de alta
tecnologia, será disputada por Daniela, irmã de Aguinaldo Ribeiro e neta
de Agnaldo Veloso Borges, por Romero Rodrigues,
primo do senador Cássio, parente de Zé Cunha Lima, de Brejo de Areia, e
por Tatiana Medeiros, apoiada pelo prefeito Veneziano Vital do Rêgo
Segundo, parente do célebre Chico Heráclio do Rego, personagem-síntese
do mandonismo no sertão.
Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde
(Publicado na Pág. 02A do
Estado de S. Paulo na quarta-feira 23 de maio de 2012)