segunda-feira, 11 de junho de 2012

Artigos publicados por mim no jornal O Estado de São Paulo, de 2010 a 2012. A coletânea traz mais indicações bibliográficas e teóricas do que a maioria dos relatórios "de pesquisa"de colegas que se julgam habilitados a cortar bolsas e fundos de pesquisa. Enfim, é o Brasil das seitas, eu diria das quadrilhas intelectuais, "o reino dos ladrões roubados"como diz Alexandre Kojève comentando o "reino animal do espírito"hegeliano.


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A ''verdade coletiva'' de Lula

20 de março de 2010

ROBERTO ROMANO

No episódio que abalou a imagem do presidente - o símile entre presos cubanos em greve de fome e bandidos - não sigo os revoltados pelas suas frases. Agradeço por ele usar uma verdade insofismável sobre a sua atitude mental. Desconfio dos que, na tentativa de manter aparências, dizem ter Luiz Inácio da Silva cometido um "escorregão". Se falam de escândalo, talvez acertem. O termo "escândalo" vem do grego "skadzein", cujo significado é "mancar". Ninguém nega que o presidente tenha "mancado" ao perder o freio decoroso na língua. Ele, no entanto, abriu sua alma, exibindo diante do Brasil e do mundo a ideologia que de fato o move.

O público já testemunhou outras distrações do hoje presidente. Em histórica fala a um jornal paulista, ele proclamou que "a liberdade individual está subordinada à liberdade coletiva. Na medida em que você cria parâmetros aceitos pela coletividade, o individualismo desaparece. Ou seja, não há razão para a defesa da liberdade individual. O que você precisa é criar mecanismos para que a grande maioria da comunidade possa participar das decisões" (Lula, 4/1/1986). E acrescentou: "A capacidade de você atender aos desejos individuais sem que isso prejudique os interesses coletivos é uma questão sobre a qual tenho dúvidas. Precisamos promover esta discussão dentro do PT." 

Segundo os debates partidários, amigos transformam-se em inimigos do coletivo ideado pelos petistas. "Você pode excluir o grande empresário, a multinacional, mas você precisa discutir se vai excluir o pequeno e médio proprietário do campo e da cidade." 

"Eu não quero", disse o sindicalista, "ser o dono da verdade, o senhor da razão". A tolice torna-se ameaçadora no complemento da frase: "Eu tenho uma verdade que está subordinada à verdade coletiva." Treblinka, Auschwitz, o Gulag e Cuba resultam de tais "verdades coletivas". Segundo aquela doutrina, um preso político cubano só pode ser bandido, pois vai contra a verdade, propriedade do Estado.

A exclusão dos inimigos (todos os que não se encontram no partido) se enraíza na cultura petista. Mas após derrotas acachapantes, aconselhado por especialistas em marketing político, Lula maquiou a fala dogmática. Chegaram as alianças eleitorais, a persuasão dirigida aos setores médios e, last but not least, o elo com setores da imprensa. Assustar o grande empresário, a multinacional, além do pequeno e médio proprietário do campo e da cidade, perceberam os petistas, era receita de fracasso. Surgia o esboço do "Lulinha paz e amor" e da Carta ao Povo Brasileiro. Líderes como Antônio Palocci ensaiaram privatizações "neoliberais" em seus domínios. O aço totalitário se cobria com o chantilly propagandístico. Era superada a era das pizzarias e padarias para o PT. Começava o tempo dos bons restaurantes, das garrafas de Romanée Conti. Oligarcas passaram a ser convidados de honra no convescote: Antonio Carlos Magalhães, José Sarney e outros receberam novos títulos, pois garantiam a governabilidade...

A encenação convenceu. Grandes empresas, multinacionais, pequenos e médios proprietários, boa parte da imprensa, todos azeitados pelos dividendos de uma política econômica antes execrada no petismo, aplaudiram o "novo PT". Com as loas ao suposto bom senso, carisma e quejandos de Luiz Inácio da Silva, entoadas no Congresso pela oposição, veio o apoio às iniciativas governamentais na economia e adjacências. Quanto maior o sucesso entre os antigos inimigos, maior o cinismo dos petistas em relação a si mesmos. Discutir a divida externa, romper com o Fundo Monetário Internacional (FMI), controlar o capital estrangeiro? Bravatas. Política radical e socialista? "Nunca fui de esquerda", asseverou o líder, aplaudido em delírio.

Passaram os dias e, arrogantes, seguros de manter o mando, os petistas começaram a soltar os demônios reprimidos. Já no episódio do "mensalão" sobraram raios e trovões contra a "imprensa burguesa", os empresários, os promotores públicos. Mas o presidente foi à TV e pediu desculpas, dizendo não saber a causa de suas escusas. Agora confessa: sabia. Chegaram os aloprados, os projetos de mordaça na mídia, a defesa de Sarney a todo custo (inclusive ao preço da censura, como no caso deste jornal) e as unhas ideológicas apareceram, somadas aos caninos. Lenta e inexorável, ressurge a busca de uma hegemonia ditatorial mantida pelos escravos voluntários, os militantes. Estes tudo fazem para garantir o poder aos donos do partido. Quanto mais seguros de que ficarão no Planalto por mil anos, maior a grosseria dos ataques contra quem não dobra espinha e ouvido às ordens palacianas.
Os cosméticos tombam da face governamental. A lógica de Luiz Inácio da Silva é a mesma, desde 1986. Naquela época importava defender os direitos humanos (nunca incluídos os presos de Cuba) para manter a coesão interna do PT, no qual ombreavam stalinistas e católicos, trotskistas e adeptos da ecologia. Os religiosos defenderam os direitos humanos contra a ditadura, foram adversários das violações em todos os países e sob qualquer ideologia. Quem defende direitos não escolhe ideologia a ser protegida. Mas, com a chegada do PT ao poder, os católicos desembarcam do navio. Ficam os adeptos da razão cabocla de Estado.

A fala do presidente contra os presos cubanos, assimilando-os a bandidos, tem uma gênese mais ampla do que o PT. Ela se enraíza nas purgas nauseantes, como nos Processos de Moscou, em 1936. Ali não existiam dissidentes, mas terroristas. Só possui direito quem se abriga à sombra do partido. O resto é inimigo e... bandido. 

Obrigado, Lula, por desvelar o que sempre esteve em seu íntimo. E por nos advertir sobre o que virá nos próximos dias.

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Platão e a tirania dos juízes censores

05 de maio de 2010

Roberto Romano -
 
"Existe um defeito na administração da justiça, para o qual nossos advogados ingleses parecem cegos, ou seja, o abuso do poder judicial. Porque o império da lei, como operado em nossas instituições legais, significa império dos juízes, e aquela forma de império, como outra qualquer, pode se tornar tirania sem as salvaguardas apropriadas." As frases vêm de Glenn R. Morrow, jurista que bem entendeu o pensamento platônico. Vale a pena, em nossos dias, ler o ensaio intitulado Plato and the Rule of Law, publicado por Gregory Vlastos (*).

Vejamos por que vale a pena ler Platão na República corrupta cujo nome é Brasil. O debate, no mundo e aqui, gira ao redor da livre expressão do pensamento. Vários juízes brasileiros agem como inimigos daquele direito. Recordo a figura clássica do tirano: "O que usa os bens dos governados como se fossem seus" (Jean Bodin). Os tiranos patrícios saqueiam a coisa pública. Além da imprensa, poucas instituições os combatem. Mas jornais e outros meios de divulgação sofrem censura judicial quando denunciam atos lesivos aos cofres federais, estaduais, municipais. Quem subtrai à cidadania o conhecimento dos malfeitos praticados pelos tiranos (segundo Bodin) que outra coisa pode ser senão parceiro da tirania? Deveríamos esperar algo diferente de magistrados, num país onde a corrupção é sistêmica.

Temos o Conselho Nacional de Justiça. Mas ele não tem eficácia para obrigar os pretórios quando o seu arbítrio abafa direitos coletivos e individuais. O caso da família Sarney contra o jornal O Estado de S. Paulo é gritante. Outros surgem a cada hora, reduzindo a Justiça a mero departamento de censura a serviço de oligarcas.

Dominique Rousseau, professor de Direito Constitucional em Montpellier (França), analisa o juiz contemporâneo. Ele avalia a sua presença na Operação Mãos Limpas e nas façanhas do espanhol Baltazar Garzón. Tais juízes combatem a corrupção. Segundo a lei, quem ameaça a ordem pública deve ser processado. Mas a lei não diz o que é "ameaça para a ordem pública". O juiz, confrontado por tal ou tal situação, faz da lei uma norma, seguindo-se o poder de controle (**).

Se o governante desobedece à lei em proveito próprio, ele é tirânico, embora popular. Sua atividade ilegal deve ser coibida por tribunais competentes. É o caso do presidente Luiz Inácio da Silva, que desafiou a lei em comícios pagos por estatais, ou seja, pelos bolsos dos contribuintes, no 1.º de Maio. O cesarismo consiste no império de um indivíduo que põe a si mesmo como superior à lei. Existem grandes e pequenos Napoleões na História. O nosso pequeno César põe a si mesmo como alfa e ômega da nacionalidade. Logo, existem, no seu entender, deveres do Brasil para com ele, não dele para com o Brasil. Assim, o presidente mimetiza, em escala micrológica, o grande Napoleão, que se dirigiu ao sobrinho, o grão-duque de Berg, do seguinte modo: "Nunca deveis esquecer, em toda posição que vos coloquem minha política e o interesse de meu império, que vossos primeiros deveres são para comigo, os segundos, para com a França; todos os outros deveres, mesmo para com os povos que poderei vos confiar, vêm depois." A julgar pelo silêncio das Cortes de Justiça que dão a norma do Direito Eleitoral, temos um Napoleão em Brasília.

Se apenas a omissão fosse o apanágio dos tribunais, a República estaria bem. Os juízes devem, sim, interferir para impor aos dirigentes políticos a soberania da lei. Até aqui, pouco a discordar dos magistrados, pelo contrário. Mas tais prerrogativas, se não forem estabelecidos limites, não abalariam a ordem democrática, em favor do controle judicial? Os juízes precisam deixar uma posição distante em face dos problemas da República. Mas não se infere que eles tenham legitimidade para se imiscuir, sem votos e sem prestar contas ao povo, nos demais setores do Estado, sobretudo no plano do pensamento, com censura prévia.

Daí toda a atualidade de Platão, que já em seu tempo adverte contra o excesso de poder concedido às Cortes de Justiça. "Se um magistrado", diz ele, "ajuizou algo de modo injusto, tratando-se dos danos de um litigante, sua penalidade diante da vítima do referido prejuízo deverá ser o dobro do valor reclamado. E todo aquele que desejar poderá ir às Cortes comuns contra os magistrados por causa de decisões injustas, nos casos trazidos diante deles" (Leis, 846 b). O filósofo prevê ações contra dirigentes por abuso judicial e administrativo. "Nenhum juiz ou dirigente deve ser isento de responsabilidade pelo que faz como juiz ou dirigente, exceto aqueles cujo juízo é final." Os prejuízos para a cidadania com a censura à imprensa no Brasil são incalculáveis. Quem por eles pagará?
Quando a imprensa é calada pelo Judiciário, em casos como a Operação Boi Barrica, o cidadão é duplamente lesado. No plano material, pois ninguém é tolo para considerar que os cofres públicos serão ressarcidos em processos sigilosos sobre coisas públicas. E no espiritual: alguns togados decretam que a cidadania é menor de idade, precisa de tutela até mesmo para a leitura das notícias. Se perguntássemos a Platão qual a natureza do nosso regime político, incluindo nele quem se julga apto para exercer a censura, ele responderia: "Tirânico, com muito auxílio da sofística."

(*) Plato, a collection of critical essays, ethics, politics, and philosophy of art and religion. Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1978. 

(**) D. Rousseau: Le rôle du juge dans les sociétés modernes (25/8/2001), no sítio Histoire, Géographie, Éducation Civique.
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A razão nanica de Estado

27 de junho de 2010

ROBERTO ROMANO -
O governo brasileiro assumiu uma prática antiga na ordem internacional. Trata-se da razão de Estado. Na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos da América é muito clara essa forma de pensar e agir. O Brasil, por sua vez, viveu sob a razão de Estado como súdito de Portugal, depois num Império conservador e duas ditaduras. Sem potência militar ou econômica para atingir os seus interesses, o País seguiu regras alheias e alvos idem. Agora o Itamaraty executa planos heterodoxos, sobretudo no campo dos direitos humanos. Prisioneira de regimes como os de Cuba, Irã, Zimbábue, Coreia do Norte e de outros países que violam estatutos civis, a Realpolitik brasileira se justifica pela suposta eficácia geopolítica ou econômica. Em Honduras, quando quebrou normas diplomáticas, interferindo nos assuntos internos do país, e no episódio iraniano, ao apoiar um dirigente antissemita, perdeu o Brasil. O recuo no acordo com a ditadura do Irã mostra a imprudência de nossa Chancelaria. Tais desastres mostram uma razão de Estado bisonha, mas, como as suas primas sérias, afeita à dissimulação.

A razão de Estado surgiu no Renascimento e significa o recurso da força e da astúcia a serviço do poder político. O seu ápice se encontra no absolutismo. Neste último, o governante foi posto acima das instituições. Contra tal arbítrio surge a democracia moderna na Inglaterra (século 17), nos Estados Unidos e na França (século 18). Os governos e os legisladores, mesmo os juízes, passam a integrar o corpo cidadão e jamais devem colocar-se fora dele. Assim, é exigido de todos os que operam no espaço público o compromisso com a verdade (daí o livre exame e a imprensa sem peias), a dita "accountability".

Fé pública e verdade garantem, nas democracias, os deveres, as leis, os contratos. As sociedades livres não podem existir sem a verdade. Nelas o segredo e a dissimulação devem ser atenuados. A mentira e similares ameaçam o coletivo, pois corrompem o juízo e as condutas. Nada é garantido no campo democrático, que, segundo Norbert Lenoir, "é menos um regime que duraria por suas próprias forças, em virtude de seus princípios constitucionais, do que uma dinâmica: dinâmica de uma extensão dos direitos e generalização dos direitos fundamentais, resistência à concentração do poder que pode favorecer uma oligarquia reinante em nome do povo" (Democracia e Espaço Público). Quando partidos ou líderes são postos acima ou fora da ordem constitucional, surge a tutela arbitrária exercida contra o povo, impera a razão de Estado. Esta é sinônimo de segredo e de espionagem. O pensamento democrático é oposto ao segredo. A publicidade é "a lei mais apropriada para garantir a confiança pública, sendo a causa de seu avanço constante rumo ao fim de sua instituição". Ademais, o segredo "é instrumento de conspiração; ele não deve, portanto, ser o sistema de um governo normal" (Bentham, Of Publicity). Segundo Georg Simmel, "toda democracia considera a publicidade como intrinsecamente desejável, seguindo a premissa fundamental de que todas as pessoas deveriam conhecer os eventos e circunstâncias que lhes interessam, visto que esta é a condição sem a qual elas não podem contribuir nas decisões sobre elas mesmas". Procedimentos secretos são corrigidos pela publicidade, ou seja, pela imprensa.

O governo atual é inimigo da livre expressão do pensamento. Para salvar as aparências na ordem externa, aumentando o número de votos em plano interno, seus adjuntos e aliados pregam o "controle social da imprensa". Tal prática, sob o disfarce da vontade coletiva, herda a pior razão de Estado moderna, a fascista.

No tema, basta citar Carl Schmitt - acarinhado pela esquerda, depois de ser oráculo da direita mundial - e seu pensamento sobre o controle político. O jurista alemão afirma que, no mister de formar a opinião pública, a imprensa estaria prestes a ser destronada pelo audiovisual. A mídia ameaçaria o Estado na tarefa de moldar o pensamento coletivo. Assim, pensa Schmitt, o Estado deve ter controle direto ou indireto daquelas técnicas, usando-as para propaganda. "Não existe ainda", acrescenta Schmitt, "um Estado tão liberal que não tenha reivindicado em seu proveito pelo menos uma censura intensiva e um controle sobre filmes e imagens, e sobre o rádio. Nenhum Estado pode permitir deixar a um adversário os novos meios técnicos de dominação das massas, sugestão das massas e formação da opinião pública." O Estado total, segundo Schmitt, controla a comunicação. Assim, "os novos meios técnicos pertencem exclusivamente ao Estado e servem para o aumento de sua potência". O Estado novo "não deixa surgir em seu interior forças inimigas que o obstruam ou desagreguem. Ele não deixa que seus inimigos disponham de meios técnicos, sapando sua potência por um slogan qualquer como Estado de Direito, liberalismo ou um nome outro. Ele sabe distinguir entre amigo e inimigo. (...) Sempre foi assim e a novidade reside apenas nos meios técnicos, cuja importância política deve ser levada em conta" (citado por Olivier Beaud: Les derniers jours de Weimar. Carl Schmitt face à l"avènement du nazisme).

A razão nanica de Estado espiona cidadãos e censura a imprensa. É o "controle social"... Daí o costume de armar denúncias, os supostos dossiês, a quebra ilegal dos sigilos bancários. Recordemos o ataque covarde de agentes públicos a Francenildo Santos Costa, o dossiê dos aloprados, o dossiê contra Ruth Cardoso e, agora, os papéis contra Eduardo Jorge. Certa parcela da ordem política brasileira recorda a bonequinha matrioshka: um crime dentro de um crime, dentro de um crime, dentro de um crime... E todos os crimes são impunes porque praticados em nome da razão nanica de Estado. Quem arma dossiês aproveita a penumbra, o silêncio, o segredo que infecta as entranhas do poder político. Saibamos reagir a tempo, porque depois, sob uma ditadura, restam apenas as receitas de bolos, sob a censura e a espionagem.

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Carta à esquerda

04 de agosto de 2010 | 0h 00

Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
 
"...é preciso cuidado, porque as pessoas têm leis, as pessoas têm regras...
Se começam a desobedecer às leis deles para atender ao pedido de presidentes, vira uma avacalhação"
(Lula, recusando apelar em favor de Sakineh Mohammadi Ashtiani, que poderá ser
apedrejada em praça pública)

Prezados senhores da esquerda brasileira: 

Em 18/9/1969 foi decretada a Lei de Segurança Nacional, imposta pela Junta Militar. O seu texto previa exílio e pena de morte para os acusados de "guerra psicológica adversa, ou revolucionária, ou subversiva". Contra ela se mobilizou parte da sociedade civil, intelectuais e políticos opostos ao arbítrio, às torturas, aos tratamentos humilhantes dos presos políticos e à censura. Estratégica na luta contra a lei tirânica foi a mobilização de Estados democráticos estrangeiros e de suas elites favoráveis aos direitos humanos no Brasil.

Figuras proeminentes da Igreja uniram-se aos advogados, jornalistas e gente do povo para entregar às instituições internacionais denúncias e pedidos de inspeção no Brasil. Aqueles líderes eram acusados, pelos que apoiavam o regime, de tentar "denegrir a imagem da nossa terra no exterior". O slogan ditatorial - Brasil, ame-o ou deixe-o -, musicado por Dom e Ravel, reforçou a campanha supostamente patriótica que buscava apagar os gritos dos torturados. Existiam leis, mas os dignos intérpretes da norma jurídica foram calados, como é o caso de Evandro Lins e Silva, morto sem que o poder tenha reconhecido a injustiça contra ele, a sua cassação do Supremo Tribunal Federal. Existiam leis, mas elas não emanavam da soberania popular, surgiam das sombras, nos palácios.

Recordo o ensino de Norberto Bobbio. Poucos entenderam como ele, no século 20, a natureza da lei. Em magistral escrito, diz o jurista que a política se divide entre a praça e o palácio, e retoma o dito de Guicciardini: "Entre o palácio e a praça existe uma densa névoa ou muro tão grande que pouco sabe o povo sobre o que fazem os governantes e porque o fazem, como se o assunto dos dirigentes fosse algo feito na Índia." Bobbio indica o fato de não contarmos até hoje com uma sociologia da praça. E, no entanto, ela é fundamental na política. "Manifestação na praça" significa a multidão de pessoas indignadas com os palácios. A praça reúne muitos indivíduos, a sua forma aberta permite livres discussões. Quem para ela se dirige tem alvo comum: reivindicar direitos, ouvir líderes. "Na democracia representativa (...) a praça é a mais visível consequência do direito de reunião ilimitado quanto ao número de pessoas que possam exercitá-lo juntas e ao mesmo tempo" (Bobbio).

Finaliza o jurista dizendo que "palácio e praça são duas expressões polêmicas para designar, respectivamente, os governantes e os governados, sobretudo o seu relacionamento de incompreensão recíproca, de estranheza, rivalidade, ainda hoje como no trecho de Guicciardini. (...) Vista do palácio a praça é o lugar da liberdade licenciosa; visto da praça o palácio é o lugar do poder arbitrário. Se cai a praça, o palácio também é destinado a cair." A esquerda brasileira viveu o seu tempo de praça, quando enfrentou a repressão palaciana. Sob a ditadura, ela implorava a intervenção estrangeira para a defesa de seus direitos humanos. Nos palácios de agora, apoia os que, no Irã e na África, torturam, massacram, caluniam os opositores.

Senhores da esquerda: se perguntados sobre a violação dos direitos, os adeptos do regime autoritário respondiam que as leis deveriam ser obedecidas. Nada falavam sobre a legitimidade legal, pois o assunto era proibido e censurado. O presidente de hoje, com o Itamaraty, usa linguagem idêntica à dos generais e juristas formados na escola de Francisco Campos. Ele usou a praça para subir ao palácio e levou consigo a turba dos oportunistas que jamais tiveram compromissos com os direitos civis ou humanos. Como diz Bobbio, para quem está no palácio a praça, ao invocar direitos, é lugar de liberdade licenciosa, "avacalhação". Quem hoje é governo pode voltar à praça, a menos que deseje, por meios espúrios, garantir para si os palácios.

O nosso presidente não se recorda mais dos tempos em que era oposição. E apoia no Irã os que aplicam leis tirânicas, ali esvaziando praças com a ponta das armas. Aquelas mesmas praças eram cheias de cidadãos hoje presos, exilados, condenados à morte. Não é exigida coerência de ninguém. Todos podem trair os ideais que antes defendiam, ou pareciam defender. Mas não esqueçam, senhores da esquerda: a memória coletiva supera a propaganda que fornece popularidade aos ocupantes ocasionais dos palácios. Em tempo não muito distante o nome de Lula será posto ao lado dos realistas que negaram os direitos humanos em nome do "business", como diz o Itamaraty. Caso os senhores ainda se imaginem na ala esquerda, deveriam atentar para a escolha de algo que define a sua dignidade: preferem a truculência palaciana ou a "avacalhação" da praça? Optando pela primeira, os senhores entram para o clube de Mussolini, Francisco Campos, Filinto Müller, Pinochet e similares. Se a escolha for pela segunda, aceitem os cumprimentos de Sobral Pinto, García Lorca, Pablo Neruda, Evaristo Arns, Vladimir Herzog. Não existe muito tempo para o seu juízo: amanhã, na praça ensanguentada em que se transformou o Irã, os direitos humanos serão alvejados na carne de Sakineh Mohammadi Ashtiani. Sob o silêncio cúmplice dos palácios brasileiros.

P. S.: Solicitar ao Irã que exile a vítima e a instale em nosso país, como sugeriu o presidente, é agir como carcereiro de povos alheios. É transformar o Brasil em imensa colônia penal terceirizada. Nada mais.

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O país dos favores

18 de setembro de 2010 | 0h 00

Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
 
"Tudo foi feito por
amizade, favores"
Ana Maria Caroto Cano,
justificando a quebra
ilegal de sigilo alheio

A frase acima, de funcionária da Receita Federal, sintetiza a cultura política do Brasil. Nascemos para o mundo sob o regime absolutista, no qual as funções de Estado foram monopolizadas pelo rei. Ele as cedia em troca de dinheiro, mas as exigia de volta a qualquer instante. Permanecer num cargo público significava favor real. O soberano concentrava alguns monopólios do poder: o controle da força física na guerra e na polícia. Além disso, só o Estado editava leis para o reino e se reservava a arrecadação dos impostos. Mas para garantir fidelidade o soberano comprava o apoio da nobreza, força dominante no sistema feudal, e da hierarquia religiosa. Privilégios, isenções e prebendas conseguiam a obediência, em consonância com o monopólio do poder. Nobres, padres, burgueses, somados às camadas populares, todos e tudo tinham seu preço. O nome da cooptação era "favor".
Os monopólios reais concentravam as políticas e as finanças públicas na Europa, inclusive em Portugal. O mesmo ocorria nos elos entre a colônia portuguesa e a corte. Os impostos seguiam para o rei, que os distribuía de acordo com a sua política. Nos países absolutistas, as cidades dificilmente auferiam retorno dos impostos. Trazer-lhes algo do butim financeiro era prerrogativa de pessoas ou grupos influentes, os quais deviam favores entre si e ao monarca.

Outra marca do absolutismo reacionário é o nome de "pai" atribuído ao chefe de Estado. O atual presidente dá a si mesmo esse título e outorga à sua possível sucessora a maternidade política sobre o povo. Assim, ele retoma Tiago I, o teórico Robert Filmer (no livro Patriarca, ou sobre o Poder Natural do Reis) e todos os conservadores idolatrados pela TFP. Sem falar nos ditadores como Vargas e os Peróns.

Dados a enorme extensão territorial do Brasil e os parâmetros absolutistas, as nossas políticas públicas - e a maioria dos impostos - foram açambarcadas pelos dirigentes, em Lisboa e depois na corte nacional. Impostos não retornavam (nem retornam) aos municípios. Maria Sylvia Carvalho Franco expõe a lógica do nosso Estado a partir daí. Com a penúria de recursos, municípios apelaram para técnicas de administração alheias aos limites entre o público e o privado. Vereadores emprestavam de seu bolso às cidades para efetivarem obras. Urbes sem cemitério, escolas, estradas, hospitais foram "beneficiadas" pelos empréstimos. Breve, diz a autora, veio a contrapartida: se quando o município precisa eu faço o favor de emprestar, quando eu preciso o município deve comparecer. Maria Sylvia Carvalho Franco relata casos como o do tesoureiro que jogava com a arrecadação no fim do mês. No outro, ele devolvia as somas. Processado, estranhou muito porque, na sua mente, o errado não seria pegar emprestado, mas não pagar (Homens Livres na Ordem Escravocrata).

Criou-se o solo político onde quem exerce o cargo público imagina a si mesmo, no mínimo, locatário e, não raro, proprietário da função. Tal crença vai dos altos postos executivos e legislativos (passando pelo Judiciário) aos baixos. Dali ruma para os eleitores. Estes últimos esperam do deputado, senador, governador, presidente e quejandos que eles prestem "favores" liberando obras para as cidades. E os primeiros, fiéis adeptos do tesoureiro citado, julgam legítimo apropriar-se de parte significativa dos recursos em troca dos "benefícios" que trazem para as bases. E nem mencionemos a fieira de bondades praticadas nos cargos públicos, desde indicações para empregos até isenção de impostos para quem investiu na campanha eleitoral.

Aquela funcionária da Receita age segundo a ética que deu nascimento ao Estado brasileiro. Ela julga, como parte de seus pares em todos os Poderes, que o cargo lhe pertence, bem como as informações que nele circulam. E imagina prestar favores aos amigos. Mas, como nos tempos do rei, nenhum favor é gratuito, tendo sua contrapartida em novos préstimos ou pecúnia. A confusão entre público e privado seria atenuada se ausente dos setores mais elevados do poder federal, estadual, municipal. Mas ocorre o contrário: os de baixo escalão imitam os que estão situados no topo. Todos os presidentes, governadores, senadores e deputados federais usam impostos para convencer os votantes sobre o "favor" devido à sua benevolente vontade. Nada estranho, pois, que o sr. Luiz Inácio da Silva mova o recurso em prol de si mesmo, de seu partido, de sua candidata.

Notícia deste jornal (13 de setembro) relata que em Santa Catarina, "referindo-se aos rivais na corrida presidencial, Lula voltou a afirmar que jamais na história o Estado recebeu tantos recursos quanto em seu governo. Enumerou R$ 1,2 bilhão em ajuda aos atingidos pelas enchentes de 2008, os R$ 129 milhões para obras de reconstrução das rodovias atingidas e os R$ 348 milhões destinados para a reconstrução do Porto de Itajaí, além de recursos repassados para a construção de quase 4 mil moradias no programa Minha Casa, Minha Vida. "Eu desafio qualquer um a provar se na história de algum governo passado já repassou tantos recursos para Santa Catarina como nós fizemos. O dinheiro veio. Se ele não foi aplicado da forma como deveria, é outra história."" E também citou: "No meu governo São Paulo recebeu mais dinheiro do que na época que era governado por Mário Covas e tinha o FHC como presidente."

O dinheiro não é do presidente, mas dos contribuintes, que aderem a todos os partidos, ideologias ou crenças religiosas. O sigilo não pertence à Receita, mas aos que pagam impostos. O resto é absolutismo anacrônico, mesmo quando aplaudido por nobres e pobres, numa República apodrecida pelo favor.

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Mentiras, política, universidade

24 de outubro de 2010 | 0h 00

Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
 
Na busca do verdadeiro reside a essência universitária. Norberto Bobbio dizia existir um anti-Estado quando setores políticos e sociais agem ao arrepio das leis e da transparência democrática. Também é possível afirmar que a ordem acadêmica que renega seu múnus - a pesquisa acima das assertivas ideológicas, religiosas ou políticas - gera uma antiuniversidade.

Cientista que aceita e patrocina a distorção de enunciados e de atos atraiçoa a sua missão: vencer o sofisma e o fanatismo que castigam indivíduos ou grupos. Tomás de Aquino, ao receber o aviso de certo frade sobre um boi voador, incontinenti se dirigiu à janela para verificar o fenômeno. Vieram as caçoadas do brincalhão. "Prefiro acreditar que um boi voa, pois não aceito que um religioso minta", observou Tomás de Aquino. Quem age de maneira decorosa sempre opta inicialmente por atribuir veracidade aos professores. Se eles mentem ou aceitam a mentira, deixam sua condição, passam ao estatuto de sofistas.

É certo que algumas "classes e profissões forçam os seus representantes a mentir, como, por exemplo, os teólogos, os políticos, as prostitutas, os diplomatas, os poetas, os jornalistas, os advogados, os artistas, os fabricantes de alimentos, os operadores da bolsa, (...) os falsificadores, os gigolôs, os generais, os cozinheiros, os traficantes de vinho" - cf. Victoria Camps, in Carlos Castilla del Pino (Org.): El Discurso de la Mentira, Madrid, Alianza, 1988.

Mentiras profissionais são partilhadas. Nelas a vítima assume a aparência, não exige a plena verdade. Temos aí algo lícito ou ilícito, segundo o caso. Torquato Acetto escreveu, em 1641, um livro cujo título já elucida o ponto: Sobre a Dissimulação Honesta. Pior é a mentira como ato de violência e poder. É o que pregou, na mesma ocasião, Gabriel Naudé, com o pior maquiavelismo, nas Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado.

As falsidades mencionadas são convencionais. A mentira real identifica-se com a injustiça do poder, uma violência só justificada pela submissão do violentado. Nela as duas partes - falsário e vítima - sabem que estão mentindo um para o outro, mas ao dominado só resta aderir. Existe mentira jurídica e política se a competência linguística é assimétrica: mente-se à criança, ao doente, ao fraco, ao vulnerável, ao que depende de tutores. A mentira é possibilitada pela dominação religiosa ou ideológica. Na democracia, a competência linguística é simétrica e compartilhada.
Montaigne define a mentira como "valentia diante de Deus e covardia diante dos homens". Sendo assim, impera a assimetria discursiva entre cidadania e governos. E temos o poder de quem decide sobre o que pode ser ouvido e compreendido pelos governados. Mentira é não dizer a verdade a quem tem direito a ela. Assim, a censura à imprensa, sobretudo quando emana de juízes, mostra que uma sociedade não é democrática, pois nela se recusa aos governados o direito à verdade. O censor imagina-se acima do corpo cidadão. Tirania, eis o nome de tal prática na ética ocidental. No Brasil existem juízes censores, o que basta para mostrar o quanto nossa democracia é frágil.

Voltemos aos universitários e professores. Eles não devem nem podem tolerar, na própria vida e na coletiva, atos deliberadamente cometidos no campo da mentira, mesmo que tudo seja feito para maior glória do povo, do partido ou mesmo da divindade. "Deus não precisa de nossa mentira", dizia Santo Agostinho contra quem ousava inventar desculpas para o Ser que é a própria Verdade. Grandes causas, cultura, valores, quando defendidos com dolo, transformam-se imediatamente no contrário.
Agora, a realidade acadêmica de hoje, em clima eleitoral. Alguns professores universitários se reuniram na Sala dos Estudantes (Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo) para apoiar uma candidatura à Presidência da República. O ato, que ocorreu no dia 8 de outubro de 2010, é ilegal, pois é vetado o uso de próprios públicos para fins político-partidários (artigo 73 da Lei n.º 9.504/97). A ilegalidade foi cometida até mesmo por ilustres juristas. O pior é a desculpa usada para obter a referida sala: os estudantes afiançaram que nela fariam um regular "estudo de grupo".

Os intelectuais que endossaram o ato não desconhecem a lei. Eles também não podem ignorar a mendacidade praticada pelos estudantes, pois juntos organizaram a manifestação. Seria desgraça em demasia se professores do Direito desprezassem a norma legal. Pior é a atitude de professores de Ética e Política que, em plena consciência, aplaudem um truque onde reluz a mentira. Tudo vale em nome da causa?

Muito regrediu o Estado brasileiro em nossos tempos, rumo às trevas. Renasce entre nós todo o ódio trazido pelas religiosidades autoritárias, as quais retomam a face obscurantista. O avanço de bispos católicos e pastores na seara política se faz em prejuízo da ordem estatal, da sociedade e das próprias igrejas ou seitas.

No Estado, a plena soberania sai arranhada. Na sociedade, a intolerância gera frutos malditos. Nas próprias igrejas, a hegemonia dos retrógrados afasta os que respeitam crenças alheias. A divisão nas hostes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) indica algo inédito na história daquele plenário. E Igreja Católica sem união conduz ao desarrazoado das massas. "Não se deve usar Deus como punhal", disse certa feita Denis Diderot. 

Um nume reduzido a instrumento de luta política é pura mentira.

Uma universidade que permite no seu interior truques ignóbeis é pura mentira.
Saibamos evitar, com prudência máxima, tais ameaças à nossa frágil democracia.
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Últimos dos bárbaros

06 de novembro de 2010 | 0h 00

Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
 
O trote mancha a ética universitária. Nele surge o fascismo que jaz nas camadas urbanas. País que viveu o século anterior sob tiranias, o Brasil ainda não se adequou ao convívio sob a lei. Getúlio Vargas, com polícia e censura unidas à propaganda do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), e o regime de 1964, com suas câmaras de tortura aliadas aos censores da imprensa, muito fizeram para corroer o caráter dos governados. Como o poder oposto à democracia tem origem direta na força não mediada por ordens jurídicas liberais, parte da sociedade nele enxerga a única forma correta de existência.

Acostumados a obedecer a dirigentes truculentos e arbitrários, os supostos cidadãos ignoram direitos dos mais fracos e os transgridem sempre que possível. Linchamentos, trotes, intimidações hoje marcadas como bullying na internet reiteram os mais baixos padrões éticos. Na sarjeta, tais formas de agir são intoleráveis. Nos câmpus, elas arruínam a essência institucional, põem abaixo todo o labor heroico para gerar saberes e técnicas que favoreçam o povo, o pagador de impostos.
Quando um brasileiro compra alguma coisa, nem que seja uma simples caixa de fósforos, o Estado cobra-lhe taxas, que seguem para os estudos de jovens cientistas ou eruditos em literatura, humanidades, artes. Se o ensino é gratuito, imperativo deve ser o respeito a quem assegura o acesso ao conhecimento. Estudante que acha engraçado ferir o corpo e a alma de cidadãos externos à escola, ou de seus colegas - digamos as coisas sem mascar palavras -, é ladrão.

Em vez de aproveitar o dinheiro público nas formas dignas e belas do currículo acadêmico, ele suga verbas como parasita. Temos o costume de invectivar a corrupção dos Executivos e Legislativos. No entanto, a fraude ética, ao se manifestar no espaço universitário, atinge uma das matrizes de transmissão e invenção de valores científicos e morais. Universidade que tolera trotes ruma para o rebaixamento axiológico. Quem fere colegas e não é punido será legislador corrupto, profissional sem escrúpulos, médico contrário ao juramento de Hipócrates: "Nunca causar dano ou mal a alguém."
O trote universitário surgiu nas primeiras escolas superiores europeias. Ainda vigorava naquele continente o sistema feudal. Os camponeses, embrutecidos pelo domínio dos nobres, para fugir do inferno usavam as peregrinações (como a São Tiago de Compostela). Massas consideráveis, escapando do tacão, seguiram para as periferias urbanas. Naquelas multidões, os estudantes que vinham do campo eram caracterizados como "bichos" pelos colegas citadinos (existiam embates para definir se camponeses e mulheres tinham alma, donde ser "natural" julgar que lavradores embrutecidos eram animais, não humanos). Daí os ritos de "passagem" impostos aos pobres no vestíbulo da universidade. Todos os atos cruéis se justificavam para forçar os "bichos" rumo à "humanidade".

Semelhantes proezas mostram o quanto existiu (existe...), nos câmpus, em matéria de preconceito criminoso em face dos mais fracos, animais ou humanos. Os estudantes que merecem o nome encontrarão notícias sobre a prática hedionda em dois livros distintos. O primeiro, do grande historiador Jacques Le Goff (18 Essais sur le Moyen-Âge), e o segundo, da filósofa E. de Fontenay (Le Silence des Bêtes).

O elo entre os dois livros é fornecido por Claude Lévi-Strauss: "A única esperança, para cada um de nós, de não ser tratado como animal pelos semelhantes, é que todos os semelhantes e cada um deles se experimente como seres que sofrem, cultivando em seu foro íntimo a aptidão interna da piedade que, no estado de natureza, assume o lugar das "leis, costumes e virtude" e sem cujo exercício começamos a compreender que, no estado da sociedade, não pode existir nem lei, nem costume, nem virtude." A passagem encontra-se no magnífico volume da Antropologia Estrutural, Dois.
Uma universidade que não ensina o modo piedoso, a compaixão no trato dos semelhantes, é teratologia ética. Não reprimir trotes significa acatar a via da cumplicidade com o fascismo. Não foi por carência de informações científicas e técnicas que os universitários alemães, italianos, franceses e outros colaboraram nos piores crimes consubstanciados no Holocausto. A causa reside, além da propaganda sobre a "superioridade" etnocêntrica, na absoluta pravidade em relação aos mais fracos.
O caso da Unesp, de agora, não é único na história negra de nossa triste vida acadêmica. Para a leniência muito colaboram doutrinas "libertárias" que buscam apagar as noções de lei e de Estado de Direito. Entre tais doutrinas, a de Michel Foucault. Denunciar o autoritarismo das instituições sem maiores cuidados é esquecer que elas foram produzidas para atenuar a lei do mais forte.
Termino com algo real na própria biografia de Foucault. O autor da História da Loucura, ainda na ditadura, deu palestras na USP sobre o seu tema predileto. O Centro Acadêmico de Filosofia abrigava um ex-aluno acometido de perturbações mentais e que incomodou o filósofo. Este, rápido, pediu ajuda para retirar a pessoa da sala. Repressão...

A Unesp merece todo o respeito, tanto pela pesquisa científica quanto pela integridade dos seus docentes, alunos, funcionários. Mas se estudantes, nos câmpus, agem como pura massa de perseguição, é tempo de exigir a sua retirada.

Spinoza não hesitou em erguer um cartaz contra impiedosos inimigos da lei: "Ultimi barbarorum." Na violência cometida contra "as gordas da Unesp", não seguir a ética spinozana é assumir coautoria.
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Lula e a psiquiatria

08 de dezembro de 2010 | 0h 00

Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
 
No imaginário sobre o Estado, a prudência aparece com a alegoria das três faces: a do ancião, a do homem maduro e a de um jovem. Presente, passado e porvir são unidos para o domínio do instante oportuno, o kayrós grego. Os feitos dos legisladores ou governantes devem ser definidos com meticulosa sapiência, mas executados na hora exata. Um minuto antes, ou depois, a medida salutar transforma-se em crime contra a sociedade. A obra de Maquiavel se alicerça na prudência: o que foi dito, se negado pela mesma pessoa, joga ilegitimidade sobre o seu poder.

O site WikiLeaks atualiza a lógica que norteia a máquina do Estado. A guerra entre imprensa e poder existe desde o século 17. As duas frentes - a oficial e a crítica - usam armas perigosas. É o caso da propaganda que gera o culto dos governantes. Quanto maior a censura estatal, mais eficientes as técnicas de manipulação popular. O poder moderno fundamenta-se no binômio de segredo e propaganda. A censura garante o primeiro e os escritores venais aprimoram a segunda (*).

Norberto Bobbio mostra o quanto é antigo o disfarce político. "Que o poder tenda a usar máscara para não ser reconhecido e agir longe de olhares indiscretos, é uma velha história. Tal velha história tem mesmo um nome célebre que, somente com sua pronúncia, dá calafrios na espinha: "arcana imperii". Em análise magistral, escreveu Elias Canetti: "O segredo está no mais íntimo núcleo do poder" (Massa e Poder). Os fundadores da democracia pretenderam dar vida à forma de governo sem máscara, na qual os segredos do domínio fossem abolidos definitivamente e destruído aquele "núcleo interior"." Da tese extrai Bobbio o corolário ignorado no Brasil pelos que controlam o Estado: "O poder oculto não transforma a democracia, perverte-a. Não a golpeia mais ou menos gravemente nos seus órgãos vitais, extermina-a." Entre os "órgãos vitais" da alma democrática encontra-se a liberdade de pensamento e de expressão (**).

Em dias recentes, o sr. Luiz Inácio da Silva retomou uma faceta de sua figura pública, o vezo autoritário de esconder práticas políticas usando, para tal fim, ataques à imprensa. Recordo um fato da sua campanha vitoriosa de 2002.

A Folha de S.Paulo realizou debate com ele, quando perguntei: "Governos eleitos na América do Sul enfrentam pesadas críticas da imprensa (...), isso ocasiona choques que chegam a ameaçar a estabilidade institucional, como no caso da Venezuela. Qual será a sua política para a mídia internacional e brasileira, como pretende Vossa Senhoria se relacionar com os formadores de opinião?"

O candidato afirmou ser "preciso acertar na política, ou seja, esse negócio de o presidente da República ficar dizendo que não conversa com A, com B, não cabe ao presidente da República (...), ele é presidente de todos." Disse mais: "Ou você estabelece uma negociação com a sociedade, com os empresários, mesmo com aqueles que são mais duros contra você, com os donos dos canais de televisão, com os donos dos jornais, para que se estabeleça a possibilidade de governar este país (...). Eu sou tão negociador que em 1975, quando Petrônio Portella disse "vai começar o processo de negociação", me chamou, tinha muita gente que dizia: Lula, não vá. Eu falei: eu vou. Por que você vai? Porque eu tenho o que dizer. Eu fui lá. Então a minha vida inteira só fiz isso, (...) fazer acordos, fazer negociações (...)". Mesmo com certo general houve acordo: "Fui lá, conversei três horas com ele e cumpri o que ele disse para mim. Fiquei no sindicato e o Exército não se meteu nas nossas greves. Depois, então, veio o Miltinho e botou o Exército para bater na gente." E Lula defendeu o diálogo com jornalistas: "Até porque se o cara não quiser conversar comigo eu vou em cima dele para conversar." A matéria, na íntegra, pode ser lida em http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u35797.shtml.

Ao ser perguntado, na semana passada, sobre o apoio que recebe da oligarquia Sarney, que exigiu (e obteve) a censura deste jornal, Lula foi "em cima" do repórter: "Pergunta preconceituosa como esta é grave para quem está há oito anos cobrindo Brasília. Demonstra que você não evoluiu nada. O presidente Sarney é presidente do Senado... Preconceito é uma doença. O Senado é uma instituição autônoma diante do Poder Executivo, da mesma forma, o Poder Judiciário. O Sarney colaborou muito para a institucionalidade. E ademais é o seguinte: o Sarney foi eleito pelo Amapá, eu não sei por que o preconceito. Você tem de se tratar, quem sabe fazer uma psicanálise para diminuir o preconceito."
A conveniência política que rende segredo e censura em favor de quem o apoia se justifica, segundo o presidente, pela "institucionalidade". Tragicômica e nada original razão de Estado. Hospícios para intelectuais independentes e jornalistas surgiram no século 19. Hölderlin foi internado por suas posições jacobinas, acusado de loucura. Depois dele, o tratamento psiquiátrico foi a solução contra a crítica na Alemanha, na Itália e na União Soviética. O silêncio sobre tais medidas durou o tempo em que a propaganda enganou as massas, gerando a "popularidade" dos governantes. Mas os "loucos" venceram. Caíram as paredes dos manicômios totalitários com o Muro. O pêndulo, hoje, retorna ao poder e à propaganda. Devemos agradecer ao WikiLeaks.

(*) Burke, Peter: A Fabricação do Rei (RJ, Zahar Ed.) e Thuau, E.: Raison d"État et Pensée Politique à l"Époque de Richelieu (Paris, Armand Colin Ed.).

(**) Il Potere in Maschera, in L"Utopia Capovolta.

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Intelectuais e poder

02 de janeiro de 2011 | 0h 00

Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
 
Quem se importa, hoje, com indivíduos e grupos "intelectuais"? No pretérito, escritores, filósofos ou cientistas eram combatidos, aceitos ou silenciados pelos regimes políticos, igrejas, patrões ou operários. É imenso o rol dos pensadores, de Erasmo a Bertrand Russell, envolvidos em problemas humanos candentes. No século 20, manifestos assinados por acadêmicos valiam programas políticos e competiam com encíclicas. Daí a estranheza escandalizada quando os "grandes nomes" silenciavam em situações de injustiça, como nas tiranias de esquerda ou direita.

O totalitarismo domou intelectuais famosos e fez do seu discurso propaganda ou hipocrisia. O realismo enfraquece a mente mais brilhante, nela obnubila o sentido ético e moral. No Brasil, O Pasquim criou o slogan exato para quem seguiu a ditadura: "Eu preciso sobreviver, entende?" O periódico espelha a reflexão de Elias Canetti em Massa e Poder. O Prêmio Nobel comenta a conivência entre autores e governo. O poderoso e seus áulicos preferem guardar a própria vida, em detrimento dos outros seres humanos. Para eles não existem família, amizade, partido ou formas religiosas, tudo o que fazem tem por alvo alongar a sua permanência na ordem pública, vampirizando todos ao seu redor.

Certeira analogia é feita por Canetti entre poderosos e intelectuais maníacos da glória. Para eles, as demais criaturas "não têm outra razão de viver senão a de pronunciar um nome muito determinado (...). As diferenças entre o rico, o detentor do poder e o famoso podem ser resumidas mais ou menos assim: o rico coleciona montes e rebanhos. No lugar destas coisas está o dinheiro. Os homens não lhe interessam; para ele é suficiente o fato de poder comprá-los. O detentor do poder coleciona homens. Os montes e os rebanhos nada significam para ele, a não ser que necessite deles para a aquisição de homens. Mas ele deseja homens que vivam, para arrastá-los ou para levá-los consigo à morte. (...) O famoso coleciona coros. Destes quer escutar apenas o seu nome. Eles podem estar mortos ou vivos, ou podem nem ter nascido ainda; tudo isto lhe é indiferente. Basta que sejam numerosos e tenham sido exercitados em repetir seu nome".

O poderoso que busca a sobrevida e o intelectual sedento de fama podem empreender boas e belas coisas: surgem os estadistas e os escritores imortais, que, segundo Canetti, alimentam a humanidade. A maioria dos governantes e acadêmicos, no entanto, é bem representada por líderes como Vargas e Sarney (ambos da Academia e, portanto, imortais...), beneficiários da censura imposta aos seres comuns.

Intelectuais do século 20 levantaram-se contra tiranias, mas também serviram aos poderosos, pouco importa a cor do príncipe, se parda ou rubra. "Não são aplausos que faltam aos intelectuais, mas sim votos aos partidos que eles apoiam (...). Uma coisa é formar o discurso político, outra é ter poder sobre a vida pública" (Gerard Lebrun, Quem Tem Medo dos Intelectuais?). Após a 2.ª Guerra, muitos intelectuais aceitaram viseiras (políticas, religiosas, econômicas), tentando colocar idênticos tampões na opinião pública. Imaginar "bons" escritores em luta contra "bandidos" (na direita ou na esquerda) é lenda que impede entender o reino animal do espírito, nome dado por Hegel à "comunidade" dos cerebrinos.

No Brasil de agora, emudecem os que parolavam sobre ética e serviço ao povo.

As bases militantes acusam suas direções, escondendo de si mesmas o fato de que os dirigentes não agiriam com desenvoltura se tivessem recebido críticas... dos intelectuais. O "bom acadêmico" (como o bom selvagem) contenta-se com penduricalhos (uma assessoria ou cargo honorífico), mas recolhe as ordens dos superiores e as justifica para o público.

Boa parte dos universitários fica de joelhos e usa truques para não atacar a falsa República brasileira. Fingem não ler péssimas notícias, ignoram o privilégio de foro, os lobbies informais, os caixas 2, as pressões corruptas no Estado e na sociedade. Eles antes falavam demais porque, ainda citando Lebrun, "a crítica das instituições e dos privilégios sempre terá mais atrativo do que a banal apologia da ordem estabelecida". Seu vício anabolizante se encontrava na denúncia. Como não podem mais desmascarar, humilhar, destruir inimigos de seus partidos e devem preservar, blindar, adular a própria grei, eles se ocultam no tíbio silêncio. Se os abusos dos três Poderes são gritantes, o dever manda apontar ao público o que se passa nos gabinetes, mesmo à custa de processos judiciais, prisões, exílios, solidão. Quando Voltaire denunciou o caso Calas, não recebeu apoio da sociedade. Ao escrever o tremendo Eu Acuso, Zola não se tornou popular. No tribunal sobre o Vietnã, Sartre e Bertrand Russell recolheram apupos.

Os intelectuais arvoravam mentirosa independência política. Hoje, o seu máximo empenho é assinar listas de apoio eleitoral ou em defesa própria.

Muitos deles passaram oito anos criticando à socapa o governo Lula e, na bacia das almas, assinaram manifestos em favor de sua candidata. Na outra margem, muitos se acomodaram, deixando o candidato oposicionista à deriva.

Eles precisam sobreviver, entende? Bolsas de estudos, recursos de pesquisa, publicação de livros e artigos justificam as zumbaias dos famosos (outros nem tanto) dirigidas aos governantes. Seguir exércitos fortes, no Brasil, traz popularidade, verbas e verbo. É o tempo das vivandeiras, agora no reino do espírito. Os "intelectuais orgânicos", no Brasil e no mundo, mostram para que servem: universalizam slogans em favor dos palácios. Eles são apenas a caricatura piorada de Glauco e Trasímaco.

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Municípios e corrupção política

12 de fevereiro de 2011 | 0h 00

ROBERTO ROMANO - O Estado de S.Paulo
 
Todo ano os jornais noticiam marchas de prefeitos rumo a Brasília para exigirem recursos. Os mesmos periódicos trazem respostas evasivas ou demagógicas do poder central. E como resultado temos as notícias de corrupção, cujos focos passam pelos municípios. Estes, se olharmos bem, constituem o começo e o fim do imenso assalto ao erário. Mas a ausência de uma Federação verdadeira é o que gera os assaltos de políticos e seus comparsas na vida civil.

É difícil entender o que se passa hoje sem revisar a história das instituições que herdamos do passado.
Munícipes, na Antiguidade, eram os habitantes itálicos que tinham direitos de gestão própria, assimilados aos romanos. Quando sem aquela autonomia, as cidades tinham o nome de praefecturae e seus habitantes não perdiam a qualidade de cidadãos de Roma, mas deviam obediência ao Senado de Roma.

Existiram municípios em toda a Europa até a queda do Império Romano. A federação que ligava as urbes a Roma as diferenciava em várias categorias. As mais autônomas, os municípios, concluíam um foedus aequum com a cidade dominante. Essa marca perdurou até a queda do império. O município e sua autonomia eram, ao mesmo tempo, base econômica e obstáculo na edificação do Estado absolutista. As cidades, ameaçadas pela nobreza e pelo clero, sofriam o assédio dos papas e monarcas que tentavam centralizar nações. Essa situação continuou até o século 18.

A liberdade municipal, segundo Alexis de Tocqueville, sobreviveu ao feudalismo. Em nações como a alemã e a italiana, as cidades chegaram a formar pequenos Estados. As Cortes da França, da Espanha e de países menos estratégicos, como Portugal, sufocaram as cidades ao impor sua burocracia, com a "igualdade" de todos diante do rei. No século 18 o governo municipal degenerou em oligarquia, "algumas famílias conduziam nele os negócios, tendo em vista fins particulares, longe do olhar público e sem serem responsáveis diante dele: trata-se de uma doença espraiada por toda a França" (O Antigo Regime e a Revolução). O poder régio domou as urbes, tornando-as centros corruptos e venais. A burocracia sufocou a independência dos municípios.

Passemos ao Brasil.

Aqui, a história política mostra similaridade com a descrita por Tocqueville. Uma agravante: nossas cidades já apareceram sob o absolutismo, não viveram a autonomia romana nem lutaram para manter suas prerrogativas na Idade Média. Não ocorreram nelas eleições livres nem a responsabilidade dos governantes diante dos munícipes. Terra de conquista, sobretudo econômica, o Brasil foi administrado segundo a moderna "igualdade de todos sob o rei".

Boa parte dos ofícios públicos era vendida ou alocada segundo os interesses da Corte. Em imenso território, as cidades eram geridas a distância. Os impostos seguiam para Lisboa, com pouquíssimo retorno à origem. A tendência centralizadora do poder consolidou-se em Portugal nas reformas pombalinas. Com a vinda da Casa Real se compôs a Corte no Rio de Janeiro, onde se integravam a nobreza, burocratas de alto escalão, serviçais e negociantes. O "povo" era a aristocracia, composta pelos "homens bons" sem sangue judeu. A representação "popular" fazia-se por petições, dando-se o direito de voto sem que os cidadãos tivessem presença ativa na esfera pública.

A grandeza do território, as revoltas, o exemplo dos países vizinhos que se tornaram Repúblicas, a memória da Revolução Francesa, todo um amálgama de pavores cortesãos definiu nosso Estado desde o nascimento. Surgiram dois projetos conflitantes: o da monarquia soberana e o de um governo constitucional. Venceu o primeiro, o império civil foi instituído por direito divino. A Constituição de 1824 incorporou o quarto Poder e o ampliou, pois ele podia dissolver a Câmara de Deputados, afastar juízes suspeitos, etc. A preeminência do Poder Moderador sobre os demais foi mantida mesmo nos tempos de Regência. Na República, tais prerrogativas foram mantidas para o chefe do Estado. Com elas veio a pretensão dos presidentes de supremacia sobre os demais Poderes.

O nosso Estado é um arremedo de República, sem harmonia entre os Poderes, sem federalismo. Ele é império, sob o Executivo central. Se no Brasil foedus significasse um "pacto", teríamos graus crescentes de autonomia, dos municípios ao poder de Brasília. Mas nossas leis desconhecem diferenças regionais e culturais, de geografia, etc. Uma uniformidade gigantesca obriga todos a seguirem a burocracia do Executivo. Não existe tempo nem autoridade para o experimento e modificações das políticas públicas em plano particularizado.

As "tragédias" das enchentes mostram o desastre desse centralismo. Não temos uma escala real de responsabilização pelas políticas públicas. Todas as decisões são açambarcadas pelos que habitam os palácios brasilienses. Logo, as oligarquias parasitam os Poderes (a mais célebre mantém este jornal sob censura) e mostram face dupla: trazem os planos do poder central (e recursos) aos Estados e levam ao Planalto as aspirações regionais.

As tratativas entre os dois níveis (central e estadual) ocorrem no Congresso Nacional. Ali, Presidência e Ministérios buscam apoio para os seus projetos. É impossível conseguir verbas sem "favores", mercadejo dos cargos, pró-labore "informal" por "serviços prestados".

Enquanto não existirem municípios autônomos, sobretudo nas finanças, testemunharemos: uma das fontes mais poluídas de nossa política corrupta é institucional.

Federação de fato, já!
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Futebol e reforma política

05 de março de 2011 | 0h 00

Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
 
Os jogos preservam o aspecto mais sutil da cultura. Com as artes, técnicas, ciências, religiões, eles indicam o refinamento ou o atraso de uma sociedade, com frutos políticos imediatos. É impensável a democracia ateniense sem as maneiras de exercitar o corpo e a mente praticadas pelos jovens guerreiros, depois cidadãos soberanos. A ética, disciplina hoje confundida com um sistema abstrato de valores, na Grécia começava no aprimoramento corporal. Para enfrentar os inimigos, ou deles fugir com honra, era necessário bem usar o corpo. A postura correta na batalha decidia a vitória.
Tal postura (hexis) se aprendia na tenra idade. Com o tempo, o que era somático foi traduzido (por metáfora) à mente. Aos jovens é ensinada a postura correta no pensamento. Nós sabemos: quem não aprendeu aritmética sofre quando precisa calcular. Os que, pelo contrário, bem manipulam números, adquirem automatismos preciosos naquele mister.

Professores de educação física e ortopedistas, em nossos dias, sabem a importância da postura correta. O automatismo mostra ao mesmo tempo o lado sombrio e o mais radioso da ética. Quando se aprende, de maneira errada ou certa, uma postura física ou anímica, ela tende a se repetir sem consciência. Jogador não treinado desde cedo a fazer passes e demais movimentos, mesmo talentoso, atrapalha a equipe. O fominha age de maneira automática, prejudica toda a partida.
A pessoa que aprendeu a bem jogar com o corpo e a alma tem condições éticas de exercer a cidadania com maior vigor. Ela não aceita egoísmo na equipe, mas valoriza os talentos individuais. Os jogos servem, desde longa data, para pensar fenômenos complexos como a guerra (*), a economia, a política.

Eles permitem entender os golpes de Estado e as armadilhas que os poderes imaginam em prejuízo da sociedade. A razão de Estado, sempre invocada quando se trata de enganar a cidadania, se assemelha, segundo um analista de hoje, ao jogo viciado. O governante que a usa age como o mau perdedor: se as regras do jogo não lhe são favoráveis, trapaceia em segredo e quebra a sequência da partida. Ele arranca dos cidadãos o que resta da fé pública, a base do Estado (**).

No exato século 17, em que a razão de Estado se firmou, Blaise Pascal reconstruiu, a partir do jogo, a moralidade, a política, a teologia. Só Deus joga com absoluta certeza. E ganha sempre. No caso humano, tudo é incerto, sobretudo no campo das leis e da política. Tal antropologia, que hoje volta a ser um assunto de interesse filosófico e político, é nuclear na história do pensamento moderno. Nela, importa a ideia do cálculo como elemento básico da política, plataforma da razão de Estado. O governante que sabe calcular as suas oportunidades e as de seus inimigos tem condições de, pelo menos, desrespeitar sem muitos prejuízos as regras normais na diplomacia ou de política interna, como nas escolhas para os dirigentes públicos.

Não por acaso Raymond Aron, no clássico Paz e Guerra entre as Nações (***), compara o trato internacional à estrutura do football association. Em primeiro plano, é preciso ver quantos jogadores são necessários, quais meios lícitos são facultados (podem eles tocar a bola com a mão, ou é proibido?).

Depois vem o modo pelo qual eles se distribuem no campo, como unem esforços e desarticulam o adversário. Tais pontos são primários. Ademais, temos o virtuosismo técnico e a qualidade moral dos jogadores, que não raro decidem campeonatos. Finalmente, o árbitro interpreta as regras e aplica as penalidades.

À diferença do futebol, diz Aron, as relações internacionais, movidas pelas armas e pela diplomacia, não são determinadas com precisão. Sua complexidade aumenta no acúmulo de interesses e na vontade de predomínio que nenhum Estado pode abandonar, pois ali residem a segurança e a sobrevivência para seu povo. É nesse ponto que, julgo, o grande pensador deixa de lado um elemento vital do futebol e do jogo político. Penso na torcida e nos sócios dos clubes. E nos militantes que asseguram a força das agremiações políticas. Sem torcedores não existe futebol. Sem militância, somem os coletivos dedicados à ordem pública. É por tal motivo que o ex-presidente Luiz Inácio da Silva desprezou o povo iraniano, reprimido duramente por uma ditadura policialesca, ao dizer que nas eleições ali ocorridas existiu apenas reclamação de "torcida que perdeu". Para ele, o "time vencedor" (a ditadura) se resumia aos cartolas ou aiatolás. Hoje, vista a revolta geral na região, ele não diria o mesmo.

No Brasil, em prejuízo do Estado e da sociedade, os partidos se assemelham aos clubes de futebol: cartolas açambarcam iniciativas, operam acima dos jogadores e dos que apoiam o clube. A torcida futebolística nada significa para os burocratas que mandam nos recursos financeiros, nos contratos, no elo com as federações, etc. O nome correto para a cartolagem é oligarquia senil.

Também nos partidos temos semelhante oligarquização, prevista desde o século 20 por Robert Michels e teorizada em Max Weber. Se não surgir, na suposta reforma política em debate no Congresso, uma via para democratizar a estrutura partidária (não existe aqui nem sombra das primárias que marcam os partidos democráticos do Ocidente), teremos o reforço dos defeitos éticos, entre eles a corrupção dos intocáveis cartolas políticos, que arrancam toda a beleza de nossos campeonatos e qualquer justiça das nossas eleições.

(*) Cf. Enrico Pozzi, Giochi di guerra e tempi di pace in La critica sociologica (outono/1983) p. 42 ss.

(**) Cf. Christian Lazzeri e Dominique Reynié: La raison d" Etat: politique et rationalité. (Paris, PUF, 1992) página 9 e ss.

(***) Paris, Calmann-Lévy, 2004.

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Bin Laden e o martírio

22 de maio de 2011 | 0h 00

Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
 
Morto Osama bin Laden, importa dissecar a lógica do martírio que orientou os seus atos. O termo vem do grego e significa "testemunho". Ele se liga às técnicas para encontrar a verdade em processos jurídicos.

O testemunho obrigatório e sob tortura surge na democrática Atenas, cujos cidadãos não poderiam ser maltratados fisicamente para confessar malfeitos. O tormento sobrava para os escravos e, em alguns casos, para os estrangeiros. O escravo que mentia não estava submetido, como o seu proprietário, às penalidades contra o perjúrio.

Tortura e testemunho ligam-se, por metáfora, à pedra usada pelos ourives para testar e aprimorar peças de ouro. As sevícias teriam a virtude de provar a fala verdadeira. Tratava-se, literalmente, de conseguir a justiça com a mão do gato: as partes, nos tribunais, eram demasiado nobres para serem estraçalhadas em processos polêmicos. A decisão judicial vinha com os martírios, que, não raro, conduziam os escravos à morte horripilante.

Na vida cristã foi preservada a significação de sofrimento no testemunho. Nos Atos dos Apóstolos (1, 8) os cristãos recebem o título de mártires que deveriam dizer a verdade trazida pelo Deus morto e ressuscitado. O testemunho, no caso, não requer necessariamente a morte e o sofrimento do fiel. Quando, no entanto, chegam o trespasso e a dor, eles evidenciam a verdade evangélica. Na Igreja primitiva o martírio, gerador de novos adeptos, recebeu sua fórmula em Tertuliano: "O sangue das testemunhas é semente de cristãos" (Apologético, 50).

No Islã, o martírio é entendido no contexto da guerra santa. Esta, por sua vez, se liga à doutrina que ensina a distinguir o bem e o mal segundo a luz divina, cuja mensagem foi transmitida pela profecia autorizada. O martírio deve ser percebido na submissão à vontade suprema de Alá. Quem morre para manter e ampliar a fé, com sofrimento na jihad, sobe ao paraíso.

No judaísmo não existe a busca do martírio como instrumento de propagação da fé. Nele, o povo de Israel deve buscar, sobretudo, a vida. E, no entanto, o valor dos mártires é imenso na História e na cultura judaicas. 

Spinoza lembrou a Albert Burgh, jovem e fanático, convertido ao catolicismo, que não apenas na Igreja cristã os martírios chegam aos milhares. Mesmo os fariseus, diz o filósofo, contam em sua grei com miríades de testemunhas. Na carta em que se defende de ser aliado do demônio, Spinoza toca na essência das relações entre a fé e o saber científico. Burgh lhe perguntara, visto que nosso pensador não confiava nos mártires como caminho para chegar ao verdadeiro, como distinguir a péssima da melhor filosofia. Resposta: "Não encontrei a melhor, mas a verdadeira. E você me pergunta como o sei. De maneira igual à usada por você para saber que os três ângulos de um triângulo igualam dois retos. E ninguém dirá que isso não basta".

Quem acredita no martírio o faz por ouvir dizer, a maneira mais baixa de se atingir o conhecimento. Temos aí a diferença entre o martírio e a procura da verdade científica. Esta última não requer demônios, paraísos, recompensas, torturas, guerras. "A verdade é índice de si mesma, e do falso": tal é o núcleo spinozano do pensamento moderno, que recusa, como prova, o sangue derramado. No caso de Galileu, o martírio não foi o alvo, pois as suas provas são estranhas às formas geométricas e físicas. "Não preciso de tal hipótese", disse um dia Laplace a Napoleão, que lhe perguntou sobre o divino em seu sistema astronômico.

O marxismo, na sua origem, exacerbou o ideal científico. Mas seguiu rumo inverso ao criar mitologias e místicas cuja base principal se encontrava no martírio. A verdade emanaria das oniscientes direções, o Comitê Central. Este, por sua vez, tinha profetas e sacerdotes em Lenin e Stalin. A ciência foi abandonada em favor do "materialismo histórico e dialético". E Lyssenko acelerou a ruína da União Soviética com uma "genética" cujos fundamentos eram ideológicos, ou religiosos. Outra forma de martírio era praticada nos campos de concentração e nas celas da KGB. Tudo para testemunhar a glória do Estado proletário.

Divinizados os dirigentes - "O Sol é mais luminoso que as estrelas e a Lua, mas teu espírito, Stalin, é mais luminoso do que o Sol!", entoava Zozulia Tchachikov em 1937 -, os militantes transformaram-se em mártires da "causa". A história de Fan Chji Min é exemplar. Membro do Exército Vermelho chinês morto pelos nacionalistas, ele tornou possível que "nas posições de combate da frente de libertação milhares de Fan Chji Min legendários realizem milagres de valor e intrepidez". Tal hagiografia circulou na esquerda. O capitalismo de Estado que vigora hoje na China, e não hesita em transformar pessoas em escravas passíveis de serem torturadas, mostra o terrível delírio que gerou os Fan Chji Min.

O sangue dos mártires é semente. Nos partidos totalitários e terroristas do século 21, e até em Estados orgulhosos de sua democracia, o culto dos heróis justiceiros hipnotiza os incautos. O inimigo mais impiedoso é o educado para o martírio: ele decreta a morte alheia em nome da História ou do ser divino. O sangue, diz com a lucidez nele costumeira Friedrich Nietzsche, "é a pior testemunha da verdade, ele envenena a doutrina mais pura e a transforma em loucura, um ódio no fundo dos corações".

Enquanto existirem mártires, persistirão zonas de ódio nas sociedades. Em vez de caluniar a ciência, nela podemos reunir sinais de saúde espiritual, contra a loucura do fanatismo. O uso da tecnologia como arma vem mais das religiões, que a empregam para conquistar novos fiéis, novos mártires (agora mesmo, no Irã), ou das crenças ideológicas e políticas.

No Brasil, podemos escapar do martírio em massa. Mas o tempo está se esgotando.

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A chantagem santa

21 de junho de 2011 | 0h 00

Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
 
A palavra "ética", no Brasil, já foi incluída no pacote coletivo de risadas, algo bom para as caricaturas e nada mais. Quem retroage aos anos 90 do século 20 testemunha: na imprensa e nos debates universitários da época, as mesmas pessoas e os mesmos partidos que exigiam transparência dos governantes hoje zombam da opinião pública.

Como derradeiro fruto das campanhas em prol da lisura, a Câmara dos Deputados planejou o primeiro Seminário sobre Ética e Decoro Parlamentar (dezembro, 2003), que deveria ser realizado no Salão Nereu Ramos. Ali, perto de 500 pessoas poderiam ser acolhidas. Convidado, cheguei antes do início. Como o Partido dos Trabalhadores era o campeão da "ética na política", imaginei que o evento reuniria inúmeros petistas e pessoas da esquerda. No imenso espaço foi ocupada apenas a primeira fila de poltronas. Seria natural, disse aos meu botões, dado o atraso costumeiro em reuniões similares. Mas os trabalhos foram até o fim com audiência diminuta. Entendi: o tema não tinha mais serventia para quem chegara (finalmente!) ao Palácio, deixando a praça para os que ainda acreditavam em "bravatas".

Ética na política, mercadoria com validade vencida. Depois de 2003, quanta ética, quanto decoro notamos no Estado brasileiro!

O seminário foi transferido para uma sala de comissão e não a lotou. Nos corredores vi antigos exemplares de palavrosos "éticos". Muitos deles participaram comigo, pelos Brasis afora, de atos em defesa da nitidez administrativa. Nenhum deles foi ao debate. Naquele dia, nos corredores da Câmara eram definidos urgentes acertos políticos. Ao mesmo tempo, cultos religiosos (contrários à ordem legal) eram praticados aos berros. Tudo valeu para mandar às urtigas a reflexão sobre a moralidade.
Antes de me dirigir aos presentes, ouvi parlamentares, como o dr. Jorge Hage. Após conceitos importantes, escutei dele que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) integraria o Conselho de Transparência, a ser definido na lei de número 10.683. Tal enunciado me fez perguntar se tinha ouvido bem, se era mesmo CNBB que lhe surgira nos lábios. O conselho, esclareceu Jorge Hage, deveria "sugerir e debater medidas de aperfeiçoamento dos métodos, sistemas e estratégias de incremento da transparência, do controle e do combate à corrupção e à impunidade, com representação paritária do setor público e do setor privado, isto é, da sociedade civil".

No decreto, ainda em minuta na Casa Civil, o referido conselho reuniria o ministro da Transparência, alguém da Casa Civil, da Advocacia-Geral da União (AGU), dos Ministérios da Justiça, da Fazenda, do Planejamento, da Comissão de Ética Pública. Como autoridades convidadas, representantes do Tribunal de Contas e do Ministério Público da União. Da sociedade civil, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Transparência Brasil e outras entidades. "Por fim", declarou Hage, "um cidadão brasileiro que exerça atividade acadêmica, científica, cultural ou artística, escolhido entre pessoas de idoneidade moral e reputação ilibada, cuja atuação seja notória na área de competência do conselho. Por isso, a CNBB irá participar".

Agradeci a resposta do eminente gestor, que muito respeito. Mas a minha frase foi a seguinte: "Não sei se por deformação profissional, tive a impressão de ouvir, num certo momento, o dr. Jorge Hage falar da participação da CNBB em conselho". A maioria dos presentes não percebeu a crítica: a pergunta era sobre a natureza do regime político brasileiro. Em termos populares, "o que, diabos, faria a CNBB, subordinada a um Estado estrangeiro, num conselho cujo alvo é combater a corrupção política nacional? Existiria ainda a separação de Igreja e Estado?". Digam qual o direito, para tal fato, argumentaria Immanuel Kant!

Se o nosso Estado reserva um lugar para a CNBB numa Comissão de Transparência, por que não para os representantes de outros cultos?

Oito anos se escoaram no Brasil corrupto e as notícias sobre a Comissão de Transparência lembram apenas uma utopia (ou propaganda?) delirante. Por outro lado, nas últimas eleições a candidata governista à Presidência da República foi assediada por um vagalhão confessional que chegou a configurar chantagem. Logo após o estouro do caso Antônio Palocci (fortuna sem transparência, dada a confidencialidade nos contratos entre o legislador e firmas privadas), deputados, mas também senadores evangélicos e católicos, assumiram nova pressão sobre a Presidência da República: ou seria retirado o "kit contra a homofobia" ou os santos políticos votariam... por um trabalho parlamentar contrário ao então chefe da Casa Civil.

Nem uma vírgula dos Evangelhos permite tal procedimento. A justiça - divina e humana - exige apurar os fatos e depois julgar. A troca do mencionado kit pelo acobertamento do ex-ministro Palocci, para ele, é insultuosa e, para o Brasil, catástrofe ética. A CNBB, que apoiou o golpe de Estado em 1964, abençoando o Ato Institucional n.º 5 (AI-5), de 1968, e cujo lobby mina a laicidade do Estado brasileiro desde 1988, poderia mesmo integrar a republicana Comissão de Transparência?

Uma parcela da Igreja (as várias pastorais, a Comissão de Justiça e Paz e outras), que reuniu bispos e leigos, lutou contra o arbítrio, angariando respeito da cidadania, então amordaçada pela censura e pela repressão. A CNBB não deu o mesmo exemplo. A façanha dos políticos que hoje usam o cristianismo evidencia que seu elo com o poder não é de ordem espiritual, mas de interesse mundano. Os santos chantagistas do Congresso deveriam fazer muito jejum de cargos públicos ou benesses e, sobretudo, ler e meditar sobre o Evangelho Segundo Mateus (4, 1-11).

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Segredo e bandalheira

24 de julho de 2011 | 0h 00

Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
 
O Brasil é o país da corrupção e do segredo, lados da vida nacional que impedem qualquer confiança nas instituições. Os operadores do Estado, sobretudo com o "privilégio de foro", desobedecem às regras basilares da fé pública. O roubo dos recursos coletivos é respondido, entre nós, com perseguição à imprensa, compra de movimentos sociais, sigilo no financiamento de obras. Sem consciência histórica, os nossos políticos e partidos retomam séculos de tirania. A prudência mínima aconselha ligar a censura (o caso do jornal O Estado de S. Paulo é prova) e o segredo que encobre as piores ilicitudes cometidas à sombra do poder. Como disse alguém, "o dia pertence à opinião pública. Nele, os segredos são espancados e os governantes não podem usar o beleguim que realiza o serviço sujo "sob ordem superior". A noite aninha o segredo, covarde razão de Estado".

Os séculos 19 e 20 reuniram censura e hábitos políticos corrompidos, a começar pelo Império de Napoleão I, que espalhou o terror e a guerra com base nas imunidades do Poder Executivo. O fascismo, o nazismo e o stalinismo exibiram o exato contrário da transparência e do respeito à cidadania. Hannah Arendt afirma que a vida totalitária significa a reunião de "sociedades secretas estabelecidas publicamente". Hitler assumiu, para a sua quadrilha, os princípios das sociedades secretas. Ele promulgou algumas regras simples em 1939: 

Ninguém, sem necessidade de ser informado, deve receber informação;
ninguém deve saber mais do que o necessário;
e ninguém deve saber algo anteriormente ao necessário.

Segundo Norberto Bobbio, não lido no Congresso Nacional e nos demais palácios de Brasília, "o governo democrático (...) desenvolve a sua própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual razão os levaria periodicamente às urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (...) O poder oculto não transforma a democracia, perverte-a. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina" (O Poder Mascarado).

Quem abre os jornais brasileiros "antigos" percebe o caminho dos que hoje defendem mistérios nas contas públicas e não têm coragem de abrir arquivos ditatoriais. A luta pela transparência, que muitos fingiam conduzir, não passou mesmo de "bravata". O segredo embaralha interesses de grupos privados e assuntos de governo, como no caso Antônio Palocci e no recente episódio no Ministério dos Transportes. Ele ameaça as formas democráticas: nele, os administradores governamentais exasperam aspectos ilegítimos das políticas no setor público. Entramos no paradoxo: o público é definido fora do público e se torna opaco. O segredo, de fato, manifesta-se em todos os coletivos humanos, das igrejas às seitas, dos Estados aos partidos, dos advogados aos juízes, das corporações aos clubes esportivos, da imprensa aos gabinetes da censura, dos laboratórios e bibliotecas universitários às fábricas, dos bancos às obras de caridade. Mas vale repetir a suspeita de Adam Smith: "Como é possível determinar, segundo regras, o ponto exato a partir do qual um delicado sentido de justiça ruma para o escrúpulo fraco e frívolo da consciência? Quando o segredo e a reserva começam a caminhar para a dissimulação?" (Teoria dos Sentimentos Morais, 1759.)

A prudência define a passagem da prática correta do sigilo para uma outra, em que o poder abusivo e tirânico se manifesta. O pensamento ético sempre se opõe ao sigilo, salvo em situações de guerra. Segundo Bentham, a publicidade é "a lei mais apropriada para garantir a confiança pública". O segredo, pensa ele, "é instrumento de conspiração; ele não deve, portanto, ser o sistema de um governo normal. (...) Toda democracia considera desejável a publicidade, seguindo a premissa fundamental de que todas as pessoas deveriam conhecer os eventos e circunstâncias que lhes interessam, visto que esta é a condição sem a qual elas não podem contribuir nas decisões sobre elas mesmas".

Os democratas ou republicanos autênticos devem se acautelar contra o segredo, pois ele se instala na raiz do poder ditatorial e dos golpes de Estado. Não admira que os nossos políticos, herdeiros de costumes definidos nos porões de duas ditaduras, considerem "normais" (com bênçãos de alguns magistrados) tanto o disfarce no manejo das contas públicas quanto a censura à imprensa. Oligarcas manhosos de partidos fisiológicos estão bem no retrato do controle oficial secreto e corrupto. Eles se acostumaram a dobrar a espinha diante dos poderosos porque tal hábito lhes permite corroer as franquias dos "cidadãos comuns". Presos aos favores, vendem a preço vil a dignidade pública na bacia das almas dos Ministérios. Mas cobram caro, das pessoas livres, a crítica aos seus desmandos. A sua técnica de aliciamento usa os laços do "é dando que se recebe", que lhes propicia o controle das informações. Só pode chegar ao público o que eles autorizam. Os coronéis estão mais vivos do que nunca, na pretensa República brasileira.

Já os que, antes de chegar aos postos de autoridade, sempre criticaram os donos do poder, embora queiram exibir uma face polida e bela, escondem (nas paredes escuras dos corredores palacianos) uma repulsiva adesão à bandalheira. A sua figura efetiva? A carantonha de Dorian Gray ou a estátua de Glauco, imagem divina que, por causa das muitas trapaças do tempo, se transformou em bestial. Nada mais desprezível do que o paladino da ética que, por "realismo", age como secretário de práticas contrárias à transparência no manejo dos recursos públicos.

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Nêumanne e os termidorianos

26 de agosto de 2011 | 0h 00

Roberto Romano - O Estado de S.Paulo
 
O livro de José Nêumanne Pinto O que Sei de Lula ajuda a reflexão ética e política. As suas páginas ultrapassam a figura do suposto pai da Pátria. Elas narram, em surdina, o golpe político encenado pelos que se abrigam no Partido dos Trabalhadores e em agremiações similares. Nêumanne traça um retrato fiel do proprietário no condomínio petista. Os fatos brotam diante de nossos olhos e têm como base a experiência pessoal do autor e documentos ou testemunhos de pessoas que seguiram a carreira do líder. O seu relato segue o preceito de Tucídides e Tácito: nada adiantar sem provas e, sempre, manter a isenção de ânimo.

O livro narra as agruras, as idiossincrasias, as matreirices do personagem que, ainda hoje, governa o Brasil. A cada instante fica bem claro que a cadeira da Presidência da República é ocupada por certa personalidade vicária, à espera de um retorno triunfal, em 2014, do verdadeiro dono. Tudo indica a prática de um império de tipo cesarista: populismo, propaganda, cargos e recursos públicos em favor de um homem. Temos aí a face visível da tragédia. A escondida indica o oportunismo das esquerdas, que, para chegarem ao poder, jogaram às urtigas ideologias, programas, posturas éticas.

Na história política moderna, este não é o primeiro golpe da esquerda para garantir aos seus líderes as benesses palacianas. Um intelectual insuspeito, porque fiel à ideologia, Alain Badiou prova que o Termidor, quando acabou a Revolução Francesa, se deveu aos jacobinos. "Os termidorianos históricos não são aristocratas, restauradores, ou mesmo girondinos. São as pessoas da maioria robespierrista na Convenção" (1). Os partidários do Incorruptível - apelido de Robespierre - aboliram as teses revolucionárias. "Meditar sobre a corrupção", adianta Badiou, "com certeza não é inútil hoje. (...) Sylvain Lazarus mostrou que "corrupção" designa inicialmente a precariedade política, ligada ao seu princípio real subjetivo (a virtude, os princípios). E depois, como resultado, vemos a corrupção material. Um termidoriano, em sua essência política, é um corrompido. O que significa: um aproveitador da precariedade das convicções (e das vontades). Aliás, os termidorianos históricos são, o dossiê é claro, corrompidos no sentido usual". Primeiro os valores éticos são alardeados, depois eles se transformam, na metamorfose ambulante, em "bravatas".

Após anos proclamando a virtude, a facção jacobina decidiu melhorar sua vida rifando os antigos ideais? Negativo. A corrupção não caiu nas hostes da esquerda de repente. A historiografia da Revolução Francesa evidencia, com documentos e relatos de vida, a maneira como líderes "puros" e "inflexíveis", que usavam a guilhotina contra adversários, se foram apropriando desde cedo da riqueza pública em proveito pessoal. Quem deseja se informar leia o dossiê, publicado por Michel Benoit, 1793, a República da Tentação, um Caso de Corrupção na Primeira República (2). O autor narra a odisseia de Claude Bazire e seus pares, todos da ala radical esquerdista. Um caso basta: em 1792 foi roubado o armário com joias da antiga Coroa francesa. "O ministro Roland, ao informar a Assembleia sobre o roubo, tinha apontado com o dedo os verdadeiros responsáveis: a Comuna Insurrecional e o Comitê de Vigilância, do qual Bazire e Chabot eram integrantes, mas ele não denunciou os verdadeiros culpados, por insuficiência de provas..." (3). As estripulias dos "puros" aumentaram com a impunidade, até que eles foram condenados por corrupção.

O exemplo francês teve antecedentes de corrupção e voracidade de poder na Revolução Puritana da Inglaterra, no século 17. Os radicais exigiam que os governantes e juízes prestassem contas à cidadania dos recursos humanos e materiais sob sua responsabilidade. Falamos da famosa accountability. No entanto, com o avanço do movimento, a morte do rei, os cargos de mando serviram como aperitivo saboroso para os que se designavam santos incorruptíveis. John Milton, o poeta revolucionário, bem antes que morresse a República ditatorial inaugurada por Cromwell, desencantou-se com os líderes corrompidos. E veio a trama do monumental poema O Paraíso Perdido. Os comandantes revolucionários são retratados como anjos caídos. Em vez de libertar os ingleses, eles, radicais, fizeram o contrário de Moisés, pois instalaram um pandemônio de servidão como se levassem o povo eleito de volta ao Egito... Maiores informações podem ser lidas no insuspeito historiador, porque marxista, Christopher Hill (4).

Quem se corrompe e renega ideais costuma apelar para o realismo político. Mas o cacoete maquiavélico é confissão de algo sinistro: a hipocrisia disfarçava, sob os rostos imaculados e as falas virtuosas dos supostos jacobinos, o vulgar oportunismo. A traição dos militantes e líderes da esquerda ao seu discurso anterior não muda o fato brutal, a ganância pelo poder a qualquer custo. Sem a corrupção ética da esquerda, o sr. da Silva não teria a força que lhe garantiu o Planalto duas vezes e, mesmo, o conduzirá à Presidência em 2014. Lúcido Elias Canetti: "Nunca vi um homem vituperando contra o poder sem o secreto desejo de possuí-lo". Os hipócritas jamais perdoarão a José Nêumanne Pinto o seu ato, corajoso ao extremo, de rasgar a máscara da virtude ostentada no passado por quem, hoje, elogia a desfaçatez como artifício político. Ler as páginas desse livro é um exercício de lucidez histórica. 

(1) O que é um termidoriano?, no livro editado por C. Kintzler A República e o Terror (Paris, Kimé, 1995).

(2) Paris, L"Armançon Ed., 2008.

(3) Benoit, página 61.

(4) Milton e a Revolução Inglesa (Penguin, 1979).

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A USP e a corrosão do caráter

23 de novembro de 2011 | 3h 06

Roberto Romano
 
Acadêmicos brasileiros pouco afeitos à cultura imaginam que noções éticas, morais, científicas surgem apenas em textos considerados relevantes nas seitas universitárias. A preguiça e a pressa na publicação, unidas, logo brotam juízos "definitivos" sobre algum campo do pensamento. Assim ocorre com o tema antigo sobre a presença ou ausência de caráter nas pessoas. Os supostos pesquisadores consideram que o conceito de uma corrupção do caráter aparece com o sociólogo norte-americano Richard Sennett. Esse teórico, é certo, muito ajuda a entender a vida moderna. Seu livro sobre o caráter corrompido integra uma série de textos que narram, com olhar clínico, as mudanças e o estilhaçamento de valores na sociedade urbana ocidental. Com a flexibilização do trabalho e a insegurança resultante, temos a massa dos que perderam a confiança nos governos e nos mercados. Outra obra de Sennett indica a crise da sociedade e do Estado. Trata-se do monumental O Declínio do Homem Público. Ali, ele demonstra o quanto as formas do Estado foram enfraquecidas, após o século 18, em proveito das "intimidades tirânicas", os movimentos que prometem às minorias a defesa de seus direitos sem passar pelos mecanismos do poder público.

Baseando-se na "identidade" assumida pelos indivíduos, tais movimentos assumem formas repressivas das quais é quase impossível escapar. Antes de ser um cidadão, o sujeito pertenceria à sua "comunidade", cujas causas importam mais do que as coletivas. A primeira vítima da corrosão do caráter é a vida pública. Movimentos como os descritos por Sennett conduzem milhões às ruas para exercer pressão sobre a sociedade e o Estado. Mas pouco ou nada fazem diante de descalabros ocorridos na economia, no Judiciário, no Executivo, nos Parlamentos. A identidade maior deixa de ser a cidadania e se transfere para instâncias que defendem particularidades. Sennett respeita os referidos modelos intimistas, mas também mostra o quanto sua pauta é unilateral e autoritária, tiranizando seus adeptos. A corrosão do caráter é potencializada quando os grupos e indivíduos assumem o perfil da militância. O militante padrão, por mimetismo, sacrifica normas éticas, sociais e políticas em proveito de seu movimento, visto por ele como a fonte última dos valores. Todos os demais âmbitos seriam movidos por interesses escusos. A maior parte do material histórico e sociológico usado por Sennett vem dos EUA e da Europa.

No Brasil, temos um campo mais complexo. Aqui, longe de permanecerem distantes e hostis aos poderes públicos, lutando contra eles na concorrência para dominar indivíduos e grupos, movimentos sociais mantêm excelentes tratos com os governos e Parlamentos. Eles sabem aplicar ventosas nos cofres estatais (as ONGs...) de modo a expandir suas forças, mas guardam a retórica contrária ao Estado. A busca de verbas põe a militância ao dispor de partidos políticos hegemônicos. O militante exerce seu fervor de tal modo que, em pouco tempo, pratica o que suas doutrinas condenavam ou condenam. O militante, cujo caráter foi corroído, julga que os interesses sociais alheios à sua pauta são "burgueses", "abstratos", "conservadores". Ele se imagina autorizado a manter em lugares estratégicos oligarcas exímios na arte de roubar os cofres públicos. Na superfície, movimentos como a UNE (e suas subsidiárias) arvoram palavras de esquerda. Mas dão suporte às mais retrógradas forças políticas. Líderes estudantis que ontem lutavam contra a corrupção, ao subirem ao poder de Estado, guardam excelentes relações com oligarcas truculentos.

Entre as manifestações contra Fernando Collor e o realismo de hoje não existiria, para a esquerda oficial, nenhum elo. Os valores antes repetidos qual ladainhas são ditos "bravatas" pelos que aderiram à razão de Estado corrompida. A militância é processo corrosivo a ser notado em todas as profissões. Em todos os setores da vida social e política ela dissolve valores efetivos em prol dos dirigentes demagógicos e de suas alianças em proveito próprio.

A que assistimos na USP nos últimos dias? Lutas contra o arbítrio autoritário dos oligarcas? Denúncias de corrupção política (que lesa milhões de brasileiros em termos de educação, saúde, cultura, ciência e tecnologia)? Batalhas contra a falta de democracia nos grandes partidos, nos quais os dirigentes são donos das alianças, das candidaturas, dos cofres, sem ouvir as bases? Movimentos contra o privilégio de foro, algo que faz de nosso Estado um absolutismo contrário à República? A pauta dos militantes, professores e alunos é alienada em todos os sentidos, da marijuana ao populismo rasteiro. Militantes fazem sua revolução em escala micrológica contra o reitor, mas os dirigentes nacionais do movimento estudantil negociam apoio aos donos do poder, os verdadeiros soberanos.
Aviso aos bajuladores do petismo: a noção de caráter é velha como o saber humano e foi estudada, sobretudo, por um pensador "burguês", Immanuel Kant. Para ele, o caráter é "marca distintiva do ser humano como racional, dotado de liberdade". O caráter "indica o que o ser humano está preparado para fazer a si mesmo". Dentre as técnicas para a corrosão do caráter, as drogas são as piores. É irresponsabilidade ética afirmar que elas não prejudicam os usuários ou "ajudam a melhorar a imaginação nas artes e nas ciências". A leitura de pesquisas como a de Alba Zaluar, sobre a indústria das drogas, traria prudência aos seus apologetas nos câmpus. Militantes sempre ignoram e combatem a liberdade e a dignidade alheias, basta ver as multidões que apoiaram tiranias modernas, do fascismo ao stalinismo. Hoje, na USP, a militância aposenta a busca de "mudar o mundo". Sobram os coquetéis Molotov para a defesa do nada, da irrelevância absoluta, da morte.

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Acima ou abaixo da lei?

25 de dezembro de 2011 | 3h 03

Roberto Romano
 
"Em Shakespeare a imaginação e a força dos celerados acabam na dezena de cadáveres. Eles não tinham ideologia. A ideologia permitiu ao século 20 experimentar o banditismo em escala de milhões". Claude Lefort, a partir de semelhante juízo sobre os justiceiros políticos, explica o termo "libertário", que "não implica nem exclui crença alguma a priori, mas só a crença que requer adesão à ordem estabelecida, submissão à autoridade de fato, confusão entre a ideia da lei (se falta a lei, não falamos do libertário, mas de um bandido) e as leis empíricas que a pretendem encarnar. A atitude libertária foge das categorias ideológicas e não pode ser codificada em doutrinas" (Um Homem Incômodo, ensaio sobre o Gulag). Lefort tem o respeito da esquerda que pesa os valores e as palavras.
Importa muito examinar a lei nos seus elos com a ideologia. Nos últimos tempos surgiram fortes discussões sobre o tema na imprensa, na universidade e na Justiça brasileiras. Sublinho a distinção lefortiana entre a lei em sentido amplo e as leis que pretendem encarná-la. A tese platônica entra na fórmula usada por Lefort. A lei é um paradigma supremo, inalcançável nos limites do tempo e do espaço. A sua ideia relativiza os modelos políticos ou ideológicos. O libertário enfrenta uma grave aporia: segue a lei, mas não se contenta com a outorgada pelos governantes. Ele age sob vaias dos realistas, recusa o exemplo de Trasímaco e dos que julgam não existir lei além da imposta em nome dos poderosos.

Segundo Platão, Sócrates assumiu atitude correta na aporia legal. É célebre a onomatopeia figurada no diálogo Críton. Os amigos do filósofo queriam a sua fuga após a sentença de morte. "Se eu fugisse, as leis e os atenienses levantar-se-iam dizendo: 'Que fazes, Sócrates? Queres nos arruinar e, conosco, a cidade inteira? Ou pensas ser possível à polis continuar a existir se os julgamentos nela efetuados não têm força alguma e, pelo contrário, perdem toda autoridade pelo arbítrio de meros particulares?'". Leis devem ser obedecidas, mesmo quando decretam a cicuta para o seu adversário. Importa reler a passagem do Críton. Ela resume e anuncia as tragédias dos indivíduos, movimentos sociais e políticos, nos inúmeros Estados, das tiranias aos regimes de liberdade. Na República, Platão mostra que a decadência democrática surge quando os cidadãos "livres" caçoam dos que obedecem à lei, chamando-os "servos voluntários". Com tal licença, nascem os tiranos, morre a democracia.
Se a lei, em sentido absoluto, não pode ser tomada como fetiche ou, no caso oposto, desculpar a desobediência às leis, também é verdadeiro que as segundas, ao contrário da primeira, trazem marcas dos interesses defendidos por líderes ocasionais, o que sempre causou dificuldades jurídicas ao longo dos milênios. Quem deve governar, as leis ou os chefes políticos?

Marcello Gigante, estudioso da questão, anota as teses platônicas (Nomos Basileus). É preciso analisar as leis existentes, pois elas podem não corresponder à ideia da lei (unida ao Bem), mas exprimir a vontade privada dos legisladores ou governantes. Todas as constituições políticas falham, sendo preciso esquadrinhar as ordens que delas brotam para definir o seu grau de acerto. A salvação da cidade reside na obediência às mesmas leis por governantes e governados, pois ninguém está acima da norma legal. Mesmo insinuando algumas pistas falsas sobre o problema (no diálogo Político), Platão proclama que as leis devem ser soberanas, não os homens. Quem impõe ordenamentos que só beneficiam os dirigentes é rebelde, não estadista. Quem, na cidadania, só aceita leis gratas à sua opinião (hoje diríamos ideologia) age como idiota (termo que, na Grécia, identifica os que só defendem os próprios interesses).

Platão entendeu a luta política. Basta ler jornais para saber o quanto seu diagnóstico é certeiro. Parlamentares e governos do Brasil atual, na maioria das vezes, legislam em proveito próprio, agem como lobistas de interesses alheios aos da cidadania. "Na cidade em que a lei é súdita e desprovida de soberania, a destruição é iminente; naquelas, ao contrário, onde a lei é a soberana dos governantes, sendo eles escravos da lei, vejo salvação e todos os bens" (Platão). A realidade brasileira é oposta ao enunciado justo. Aqui, os donos do poder torturam a lei e a distorcem em benefício pessoal ou partidário.

Aristóteles, na Ética a Nicômaco, aprimorou a noção de lei soberana, nela harmonizando a justiça e a equidade (epikeia). O conceito foi bem definido por Leonardo Bruni, pensador e político do Renascimento. "Epikeia é a parte da justiça que os jurisconsultos nomeiam ex bono et equo (do que é bom e equânime). A lei é escrita de certo modo e deve, no entanto, ser interpretada segundo os critérios do bem e da equidade" (De Interpretatione Recta).

Voltemos à aporia inicial: o libertário busca a lei, critica as leis do Estado, mas obedece a elas no mesmo ato em que luta por sua abolição ou por seu aperfeiçoamento. Se não consegue tal coisa, tenta interpretar as leis de maneira a corrigir suas falhas, aplicando-as a pessoas e situações concretas. Ninguém está acima da lei, seja qual for a sua doutrina ideológica. Como diz Lefort, a ideologia leva, cedo ou tarde, aos milhões de assassinatos praticados por justiceiros que se imaginam libertários.
Mas, de outro lado, toda lei deve ser interpretada segundo a justiça. Nem descompromisso nem fetiche legal. A prudência indica o caminho: "Quem dá a cada um o que lhe pertence porque conhece a verdadeira e necessária razão das leis age em constante acordo consigo mesmo e por seu próprio decreto, não por decreto alheio: ele merece, pois, ser reconhecido como justo" (Baruch Spinoza, Tratado Teológico-Político).

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Visibilidade e poder democrático

22 de janeiro de 2012 | 3h 06

Roberto Romano

A luta entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) define uma nova e importante etapa na democratização do Estado brasileiro. Como previsível, os intocáveis do Judiciário aliam-se aos congressistas e políticos do Executivo, ampliando a campanha contra a imprensa. Novamente o erro é atribuído a quem divulga os males institucionais. A publicidade integra a doutrina e a prática do Estado moderno. Como o Brasil só com boa vontade merece o nome de plena democracia (o nome certo do nosso regime é federação oligárquica), até hoje venceram o privilégio e a impunidade. Descobertos os seus erros, os donos dos palácios desejam aplicar viseiras novas no Ministério Público (MP) e na mídia.

"São proveitosos o ato justo e a obediência às leis, quando existem testemunhas da conduta. Mas se não corre o risco de ser descoberto, o indivíduo não precisa ser justo." A frase vem do sofista Antifonte (século 5.º a.C.), mas serve com perfeição às nossas elites. O debate sobre a visibilidade do justo ou injusto marca o Ocidente. Platão narra a fábula de Giges: pastor humilde, o herói descobre um anel que, se girado no dedo, o torna invisível. Ele usa tal privilégio para matar o governante, ganhando a rainha e o trono. O mito de Giges ilustra a razão de Estado: o poderoso busca o sigilo para seus atos, mas tenta ver o que se passa nas casas das pessoas "comuns" (sobretudo nos bolsos) e nos países estrangeiros. Nasce daí a censura unida às polícias secretas, à espionagem, ao desejo de impor aos governados normas éticas jamais seguidas pelos dirigentes.

O ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança é a base histórica das atuais políticas autoritárias. O governante acumula segredos e deseja que os súditos sejam controlados. Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre cidadãos e dirigentes.

Na aurora dos tempos modernos, segundo um fino analista da razão absolutista, "a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade, o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (...) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (...) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar" (Jean-Pierre Chrétien-Goni).
A democracia, surgida contra o poder absoluto, instaurou a visível responsabilidade política dos governantes. Na "accountability" os operadores de cargos públicos (do rei aos juízes) tornam os seus atos visíveis para a cidadania. Mas o século 19 trouxe a contrarrevolução napoleônica e a Santa Aliança. Some a transparência no exercício do poder. Como fruto tardio do recuo político e jurídico, surgem as ditaduras que impedem as liberdades públicas, em especial a de imprensa. Ocorre, ao mesmo tempo, uma fratura na ética democrática.

A ética correta, na democracia, não se imiscui na vida coletiva com uma tábua de valores externa aos grupos sociais. Os monopólios do Estado (força física, impostos, norma jurídica) permitem-lhe controlar os interesses particulares. Mas não raro o Estado ultrapassa os seus próprios limites. As revoluções modernas ergueram barreiras contra as pretensões oficiais. Mesmo assim, na Alemanha nazista, na União Soviética (URSS), nas diversas ditaduras e até em países democráticos, o Estado arrogou-se o direito de impor valores e doutrinas sobre a ciência, as artes, a vida econômica. Como exemplos temos a eugenia contra os fracos (o caso Buck versus Bell, decidido pelo juiz Oliver Wendell Holmes) e a "genética socialista" (as teses de Trofim Denissovitch Lyssenko que arruinaram a URSS). Os dois casos mostram que o poder sem peias gera frutos malditos. A imprensa domesticada chega ao escárnio: o jornal mais mentiroso da História é o Pravda (que significa "a verdade", em russo).

Como harmonizar o Estado e a vida livre?

A resposta reside na democracia, no Estado de Direito, no qual a sociedade política segue leis interpretadas pelo Judiciário. O Executivo tem uma barreira nos demais Poderes. Os alvos sociais precisam ser examinados no Parlamento ou nas Cortes de Justiça. Para que os interesses sejam discutidos é imperativo que eles sejam visíveis - daí a necessária regulamentação do lobby - e, por sua vez, os legisladores e juízes devem ser vigiados pelo povo soberano. Quem, no poder, se imagina acima do público ("os leigos") atrai, como dizia Immanuel Kant, a desconfiança generalizada. E reabre as vias sangrentas pisadas por todos os Giges ocidentais, poluindo a fé pública, fonte de liberdade e segurança. Na República os poderes são transparentes, o que inclui togas, fardas, batinas, capelos acadêmicos. A visibilidade absoluta só existe no Paraíso, mas o Estado sem ela é tirania. Conforme Norberto Bobbio, "todo cidadão tem o direito de ser posto à altura de formar para si mesmo uma opinião sobre as decisões tomadas em seu nome" ("o poder mascarado").

Vivemos uma inusitada crise estatal. Crise bem-vinda, pois nosso Estado apresenta os estigmas do segredo e do autoritarismo, técnicas ditatoriais que arrancaram dos cidadãos o hábito de controlar os governantes, legisladores, magistrados. Cabe à cidadania assumir a sua dignidade, pondo os que se julgam onipotentes no devido lugar. "Autoridade", na ordem democrática, significa "ser autorizado" pelo povo soberano. Mas os nossos poderosos - no Executivo, no Legislativo, no Judiciário - fingem nada saber sobre o assunto.

O requisito da emancipação política é o livre pensamento, a livre imprensa, da qual fogem os tirânicos Giges brasileiros. Como o diabo da cruz.

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A ineficácia dos moralismos

26 de fevereiro de 2012 | 3h 06


Roberto Romano

A Lei da Ficha Limpa pode atenuar os comportamentos corrompidos da política nacional. Importa, no entanto, agir com prudência diante dos fatos. A lei opera no fim de um processo que inclui ações desonestas de parlamentares e de membros do Executivo, de representantes de empresas e de funcionários em todos os Poderes. Os partidos políticos são dirigidos por oligarcas que ignoram limites à sua ambição pessoal e de grupo. O clã Sarney exemplifica perfeitamente o caso. Sem democracia interna nas agremiações e limites à permanência nos cargos diretivos, primárias obrigatórias e outras medidas corretivas, o filtro da Ficha Limpa logo estará bloqueado, sendo apenas ornamento jurídico.

Num país onde a corrupção é sistêmica, vale acompanhar os textos lúcidos e serenos de um dossiê publicado na Revista Internacional de Teoria do Direito e de Sociologia Jurídica (número 72, 2009, CNRS, França). Ali analistas competentes se debruçam sobre casos exemplares, como os da Itália, da Bulgária, da Polônia, do Marrocos. O exame interessa a todos os países, na presente crise estatal e de mercado. Sintetizo o caso da Itália porque ele mostra o quanto é equivocada a tese de que escândalos e tribunais mudam o juízo dos eleitores ou melhoram a forma democrática.

Na Itália existem financiamento ilegal de partidos, trapaças no mercado e no setor público, clientelismo e mesmo simbiose ocasional com a Máfia. O descalabro leva à queda de poderosos, na Democracia Cristã. A partir daí surgem os incorruptíveis juízes, seguidos pelos promotores, Quixotes contra a "partidocracia". Esta é desvalorizada e a legitimidade plena passa ao Judiciário. Deveria ser consequente a mudança dos eleitores diante do novo quadro. As urnas concederiam vitória aos probos, e apenas a eles. Não foi o que ocorreu. Os juízes desempenharam papel moralizador, mas não houve mudança nos costumes e práticas institucionais. O movimento das Mãos Limpas apressa a queda dos antigos oligarcas, dando oportunidade para novos dirigentes que aproveitam, para chegar ao poder, a campanha em prol da ética. Mais de 150 parlamentares italianos e quase 1.800 chefes locais são implicados, seis ministros do governo solicitam demissão (algo que lembra o Brasil).
As oposições usam os processos contra os corruptos. Mas quem integra as hostes da oposição? Os neofascistas da Liga do Norte, que gritam contra o "Parlamento dos ladrões", e a esquerda, que agita o moralismo até o paradoxo. Com o alarido em prol da "ética na política" progridem os moralistas. O Parlamento passa a ser visto como ilegítimo. Os deputados, tal é a palavra de ordem, devem seguir os juízes em tudo, exercendo formas "limpas" de mando político.

Silvio Berlusconi pertence à liderança moralista e se torna imbatível com a Forza Italia (criada em 1994), que, aliada à Liga do Norte e aos neofascistas, chega ao poder. A riqueza pessoal de Berlusconi, a sua rede empresarial, potencia a propaganda sobre a "moralização da vida pública". Também ajuda muito o trabalho de seus técnicos, afeitos às pesquisas de opinião e ao marketing. Ajudantes do empresário gerenciam seus atos políticos.

"A velha classe política foi expulsa pelos eventos e ultrapassada pelas exigências do nosso tempo. A queda dos velhos governantes, esmagados pelo peso dos déficits públicos e por um sistema ilegal de financiamento dos partidos, deixou o país no despreparo e incerteza em momento difícil de renovação e passagem a uma nova República" (Berlusconi). Seriam necessários novos homens, novas ideias, novas práticas para salvar a Itália. A Forza Italia obtém mais de 20% dos votos em 1994, torna-se o primeiro partido do país. Instalado no poder, Berlusconi é alvo de processos penais por corrupção. Mas a Forza Italia se apega ao governo, apoiada por 20% a 30% do eleitorado. O movimento absorve antigos oligarcas e "renova" a política com profissionais subservientes a Berlusconi na máquina pública e nas empresas.

Com a ascensão dos ex-moralistas, o jogo corrupto continua, apoiado pelos eleitores. "Após ser usada pela classe política para se renovar, a magistratura foi abandonada e, com ela, a exigência de moralidade e transparência de que ela era a portadora" (J. L. Briquet). E surge a campanha contra os "juízes vermelhos", acusados de fomentar golpes judiciários em prol dos "comunistas" (Cf. Berlusconi, S.: L'Italia che Ho in Mente). Quanto mais submerso em processos, mais o líder popular ataca o Judiciário.

Mas não apenas a direita retoma a corrupção como instrumento de governo. A esquerda levanta-se contra os juízes. Surgem manifestos que exigem "manter rigorosamente separados os assuntos da Justiça e os da política". O alvo? Garantir "a estabilidade e a confiança necessária ao país". O juiz deve retornar ao seu "lugar natural" e restituir à política "a autoridade que decorre do mandato popular". Massimo d'Alema, secretário nacional dos democratas de esquerda, defende "o retorno à posição subsidiária da Justiça em face da política (...), o funcionamento normal da jurisdição após a fase excepcional da crise, que, se foi salutar, é historicamente ultrapassada". (D'Alema: Sovranità della politica e primato della norma, 1997).

Os moralistas políticos esquecem que nem sempre o eleitor é movido pelo direito, por justiça, transparência, valores éticos positivos. A política não é palco exclusivo da razão, mas campo hegemônico das paixões. Entre os cidadãos e as urnas existem os partidos, os interesses mercantis, a propaganda, os antigos costumes, os favores prestados pelos ocupantes do poder às famílias, às cidades, às regiões. E sempre pode surgir um grupo demagógico que "denuncie" a corrupção alheia, disposto (uma vez chegado aos palácios) a desculpar a falta própria de escrúpulos.

Sem a democratização dos partidos, de direita ou esquerda, a Ficha Limpa será apenas o que seu nome diz: vazia.

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Demóstenes

08 de abril de 2012 
Roberto Romano - 
 
Hérmias foi um político afortunado, mas caído em desgraça por trair o rei da Pérsia em favor de Felipe II da Macedônia, pai de Alexandre Magno. Demóstenes, inimigo de Felipe e do soberano persa, aproveitou a deixa e, no parlamento de Atenas, denunciou as vilanias de Hérmias. Escutemos o discurso do bravo Demóstenes: "O agente e cúmplice de Filipe (...), durante a ação que Filipe prepara contra o Grande Rei (persa), foi finalmente preso. Assim, o Grande Rei virá a conhecer toda a trama e não através de nossas acusações, que poderiam parecer geradas pelos nossos interesses particulares, mas diretamente através do principal artífice executor" (Demóstenes, Quarta Filípica, 10).
A prisão de Hérmias ocorreu na luta pelo controle de Bizâncio. Ele foi torturado segundo as técnicas habituais. Impressiona, no discurso do insigne Demóstenes, o silêncio sobre o jeito como o soberano persa encontrou a "verdade". Como diz Luciano Canfora, o retor grego "tinha plena consciência dos 'métodos' com que o rei da Pérsia arrancava a verdade de suas vítimas". Demóstenes sabia ser valente nas bravatas, pisoteando a desgraça de um adversário fraco (Um Ofício Perigoso, Editora Perspectiva).

O mais vil em Demóstenes não é a sua bravata. Ele sabia de antemão, como indica ainda Luciano Canfora, o conteúdo das confissões que seriam arrancadas de Hérmias, pois tinha espiões entre os inimigos. O pior fato, calado pelo político na sua arenga aos parlamentares, é que ele mesmo, o bravo perseguidor de corruptos, era um corrompido: seu nome estava no livro-caixa do "Grande Rei". O fato foi descoberto quando Alexandre, sucessor de Felipe, abriu os arquivos persas após sua vitória. Canfora indica o passo de Plutarco (Vida de Demóstenes, 20), mas não cita o que diz o filósofo sobre o nosso herói de reputação ilibada.

Escutemos: "Demóstenes era homem em quem não se poderia muito confiar no campo das armas, nem era ele muito prevenido contra a corrupção dos presentes e doações; pois, embora fosse impossível que Felipe o conquistasse, ele, no entanto, se deixava comprar a preço do ouro e da prata que vinham de Susa e de Ectabane. Disposto a louvar os belos e gloriosos feitos de seus velhos ancestrais, ele não seguia ou imitava seus exemplos". Susa, Ectabane e Babilônia eram cidades nucleares da Pérsia antiga... Plutarco, mestre da ética ocidental, com poucos vocábulos diz tudo sobre o duplo lado de um parlamentar oficialmente impoluto.

Uma prática nefanda, sempre em voga na vida política desde os tempos gregos, é a técnica do desmascaramento alheio para preservar a própria face. A máscara, que todo ser humano usa para guardar os próprios segredos, serve como arma de proteção e ataque. Todo indivíduo maneja a própria máscara e, "como ator, nela se transforma" (Elias Canetti, O Personagem e a Máscara). Quem pretende desmascarar os semelhantes deles retira a defesa e o possível ataque no mundo social. Desmascarar é cobrir o rosto com uma outra máscara, a de assassino da vida moral alheia. O pior inimigo de qualquer sociedade é o desmascarador, o Demóstenes que lateja em todo poderoso.
Raros parlamentares, na História ocidental, podem estar seguros de que o livro-caixa, espelho que revela o seu verdadeiro semblante, jamais virá à luz diurna. Douto e ardiloso, Bismarck, o chanceler de ferro: "Ah, se as pessoas soubessem como são feitas as salsichas... e as leis!"

O desmascarador pode ser movido por vários motivos: o ressentimento, a inveja, o ódio sectário, a concorrência infeliz, as desilusões financeiras, amorosas, etc. Não raro, ele é movido por algo que, em outro tratado de Plutarco, se designa como kakourgia, o erotismo de ver o mal que se abate sobre os demais. Na língua alemã existe o termo Schadenfreude, alegria com a tristeza do próximo.
Quando se diz que alguém finge ser honrado como os varões de Plutarco, não se tem ideia exata do pretendido por ele em suas biografias de indivíduos ilustres. Cada herói grego tem ali o contraponto de uma personalidade romana. Tal forma estilística serve para analisar os personagens em perspectiva, comparando virtudes e defeitos dos retratados. Não existe grego ou romano absolutamente puro. Fino observador ético, Plutarco mostra os erros dos generais, políticos, pensadores, sobretudo o seu excesso de virtude transformado em vício. O conceito filosófico para designar tal inchaço é hybris, orgulho sem medida, usado nas tragédias atenienses. Na Ética de Spinoza, o mesmo conceito recebe um nome exato, existimatio: a ideia de si mesmo que tem o soberbo, julgando estar acima dos demais. O soberbo imagina ser lícito desprezar, caçoar, humilhar os fracos e "inferiores". O desmascarador é atacado pela hybris (na religião cristã, o pai da mentira, Lúcifer, é soberbo) e se compraz em sua almejada preeminência sobre os semelhantes.

Ainda Spinoza, no Tratado Político, aponta os intelectuais como ícones da soberba. "Os filósofos concebem as afecções que lutam em nós como vícios nos quais os homens caem por sua falta. Por tal motivo eles se habituaram a ridicularizar e deplorar tais afecções e, mesmo, as detestar se desejam parecer mais imbuídos de moral. Acreditam agir divinamente, elevados ao cume da sabedoria ao elogiar, entusiastas, uma natureza humana inexistente, invectivando em discursos a que existe na realidade". Seguidor de Maquiavel, ele arremata dizendo que os políticos não possuem tal soberba, embora vivam construindo armadilhas para os seus iguais e para os governados. Quando um político assume a máscara do moralista para destruir os seus pares, trata-se de astúcia imprudente. Pois a pedra colocada por ele na trilha dos outros, com muita probabilidade, o fará tropeçar. Afinal, todo livro-caixa oculto, cedo ou tarde, pode ser aberto.
 
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Golpes de Estado

29 de abril de 2012
ROBERTO ROMANO
 
A palavra "golpe" hoje circula no Brasil em todos os ambientes. O tema tem alcance histórico. O moderno poder político é movido por golpes canhestros ou eficazes. Basta consultar a crônica da Europa para verificar que todos os modos legítimos de mando foram violentados por golpistas de várias tendências.

Assim se afirmou o poder de Luís XI e de Henrique IV, o mesmo ocorrendo com Robespierre e, depois, com a família de Napoleão. Pétain e Laval encerram a fieira do golpismo. Na Inglaterra, a ditadura de Cromwell afastou monarquistas e liberais (Levellers) da Revolução. Em Portugal, o golpe determinou a luta de Pedro IV, o nosso Pedro I, contra o seu irmão Miguel. O século 20 português conheceu golpes continuados. O fascismo italiano foi uma série de golpes, o mesmo na Espanha. Na Alemanha e na Rússia do século 20, regimes virulentos dominaram o Estado à força de golpes.
No Brasil, temos os golpes do imperador, dos regentes, dos oficiais que derrubam a monarquia, de Getúlio, que instalou uma ditadura feroz, dos civis e militares erguidos contra a ordem estabelecida em 1961 e 1964. Depois, o golpe dentro do golpe no Ato Institucional n.º 5 (AI-5), o golpe do chamado Pacote de Abril, etc. Setores das esquerdas falam hoje da imprensa golpista, no mesmo passo em que as direitas bradam contra o revanchismo.

É preciso não banalizar a noção de golpe, cujo fim é impedir a força de adversários no Estado e nas sociedades. Eles são propositivos se buscam impor formas de pensamento e suspendem os mecanismos jurídicos das anteriores formas de poder. Por não terem origem nas urnas, os seus atores se legitimam invocando a urgência (o Estado estar-se-ia corrompendo) ou a necessidade. Foi assim no AI-1: "A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma". O golpe aposenta o voto, cassa mandatos, fecha partidos.

Importante estudo vem de Gabriel Naudé nas Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1640). O texto pode ser lido online na Biblioteca Gallica. Naudé situa o golpe no campo da prudência. Ele critica a divisão tríplice daquela virtude feita por Justo Lipsio: a leve - dissimulação e desconfiança na ordem política; a sórdida, que consiste "em adquirir amizades e serviços de uns enganando outros por falsas promessas e mentiras, presentes e outros meios"; e a virulenta, "que se afasta totalmente da virtude e das leis". Segundo Naudé, tal fracionamento é inútil, pois todas as prudências dependem de uma só, ilustrada por Luís XI, o "Rei Aranha", cuja máxima era: "Quem não sabe dissimular não sabe governar". A regra dos governos reside na desconfiança universal e na dissimulação, que consiste ou em omitir - pretender que nada foi visto pelos poderosos - ou "na ação e na comissão, o ganho de alguma vantagem para atingir alvos por meios encobertos". Omissões e comissões nutrem os poderosos e fornecem "os diversos meios, razões e conselhos usados pelos príncipes para manter sua autoridade e a situação do público" sem "parecer transgredir o direito comum e causar suspeita de fraude e injustiça".

Um golpista indicado por Naudé é Dionísio, tirano de Siracusa. Querendo impedir as reuniões dos opositores, agendadas para a noite, ele afrouxava sem alarde as penas dos assaltantes... Golpes incluem o segredo das ações "extraordinárias que os príncipes são levados a executar nos assuntos difíceis e desesperados, contra o direito comum, sem mesmo guardar alguma ordem ou forma de justiça, prejudicando o interesse do particular em benefício público". Rapidez, quebra de costumes e de jurisprudência integram os golpes. Neles "vemos cair a tempestade sem ter ouvido os trovões (...), as Matinas são entoadas antes de o sino tocar, a execução precede a sentença. Fulano recebe o golpe que pensava aplicar, sicrano morre, imaginando estar seguro". Truque jurídico golpista: "O processo é instruído após a execução". A nova ordem livra-se das "pequenas formalidades exigidas pela Justiça".
Naudé profetiza os regimes sangrentos do século 20. O golpe (similar ao cometa e ao terremoto), afirma ele, deve ser tido como exceção. (Carl Schmitt tem muito a dizer sobre esse assunto.) Nele o político precisa ser visto "como o pai que cauteriza um membro do filho para salvar a sua vida". O golpe justifica-se ao abolir "privilégios, direitos, franquias, usufruídos por alguns governados em prejuízo da autoridade principesca".

Os golpes devem ser radicais como os "cirurgiões competentes que, ao abrir uma veia, tiram o sangue para limpar os corpos de seus humores nocivos". Segundo Naudé, eles precisam ser fulminantes e despercebidos. Não existe ação eficaz se os planos golpistas são publicados. Jamais ocorreu golpe sem a purga dos "membros apodrecidos": o golpe é intolerante e ignora "as pequenas formalidades da Justiça". O que produz a defesa dos golpes em maquiavélicos como Naudé? As guerras dinásticas e de religião na Europa. Mas o golpe, longe de sanar as guerras civis, as perpetua, levando-as ao plano internacional. Quem deseja o convívio político segue as "pequenas formalidades" jurídicas. Sem elas ninguém está seguro, nem mesmo os golpistas, pois os regimes não são eternos e o golpista de hoje é a vítima do golpe, amanhã.

A democracia exige simultaneidade irredutível das diferenças ideológicas, nela não existem inimigos, como propõe Carl Schmitt, somente adversários que merecem respeito e jamais ataques fratricidas. Qual o terreno fértil dos golpes? A desconfiança, a dissimulação, os ódios espalhados pelos golpistas que empesteiam e sufocam a vida política. Tais são os primeiros e últimos obstáculos a serem vencidos.
 
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O favor indecoroso

09 de junho de 2012

ROBERTO ROMANO
 
Sobre o diálogo secreto dos srs. Luiz Inácio da Silva, Gilmar Mendes e Nelson Jobim, muito foi dito ou escrito. Poucos analistas sublinharam, nele, a prática do favor. Ninguém se reúne em sigilo para trocar nonadas. Se é impossível que o povo soberano tenha acesso ao tema do simpósio, existe, no entanto, a certeza, trazida pelos relatos dos envolvidos, de que houve favor para facilitar a conversa. Nelson Jobim foi bondoso ao emprestar salas para que os dois outros discutissem o sexo dos anjos? O favor, no caso, quebrou hierarquias e competências (se o trato fosse legítimo, haveria audiência formal) e abalou ainda mais a confiança nas instituições. Pensemos a origem do favor em nossa vida política.

O Estado depende da ética social que o envolve. Na sociedade brasileira governa o favor, obstáculo que impede a autonomia dos eleitores e distorce a vida parlamentar. O favor dissolve os traços igualitários da vida pública. No mercado, nos partidos, em igrejas e seitas religiosas, ele define alianças que tornam as doutrinas irrelevantes. Em todas as sociedades, antigas ou modernas vigora o favor. Mas países democráticos o regulam em prol de procedimentos impessoais e abstratos. Aqui ele é "mediação universal", como afirma Maria Sylvia de Carvalho Franco em Homens Livres na Ordem Escravocrata. No Brasil, poderoso é o político que mais auxilia os amigos, os aliados e, não raro, os próprios inimigos. O favor alimenta alianças, rebaixa ministros, ordena as pautas legislativas e atormenta o Executivo. Ele ordena redes de interesses obscuros, lobbies disfarçados, corrupção de agentes públicos por empresas privadas, achaque de empresas por funcionários estatais. Somos a antirrepública do favor, assumido como técnica predileta de oligarcas como José Sarney e similares. E não existe favor gratuito: a censura à imprensa (como a aplicada ao jornal O Estado de S. Paulo) retribui obséquios prestados pelos nossos oligarcas. Não surpreende, pois, o sigilo usado pelos que controlam o poder.

O favor tem origem na República Romana e na sociedade do Antigo Regime. Nascemos sob o absolutismo que se firma no século 16. Nele o favor impera na corte e nos elos entre os nobres. Como enuncia o historiador Joël Cornette, o rei sustenta aliados e os liga à venalidade na administração pública. A ascensão política é feita pelos grupos e indivíduos numa imensa rede de favores. Os interessados (rei e nobres) precisam de intermediários e nasce o "é dando que se recebe". No absolutismo, diz outro historiador (Jean Petitfils), o favor define a rede de interdependência em que o nobre se insere desde o nascimento, se casa e sustenta a reputação de sua família. O alvo é atingir conexões em estratos mais altos, nas redes de interesse. É o arrivismo geral. Entre os pactos tácitos está o que enuncia que alguém "pertence" a um outro, é sua "criatura". Tais cadeias prendem o patrão, o cliente e os brokers (os intermediários). No corrupto Antigo Regime, "quem precisa de um outro é indigente e se curva. (...) O ministro dá seu passo de cortesão, bajulador, serviçal ou mendigo diante do seu rei. A massa dos ambiciosos dança as posições de cem maneiras, umas bem mais baixas do que as outras, diante do ministro" (Diderot, O Sobrinho de Rameau). Pantomima pior é exibida nos palácios brasileiros de hoje.

Mas o invento da clientela é de Roma. Como no Antigo Regime, as relações políticas romanas são praticadas segundo o favor. O consulado foi possível por causa do trato obsequioso das famílias nobres com os clientes. Os cargos maiores de Roma eram gratuitos, porque os ocupantes, ricos e poderosos, não viam como adequado à sua dignidade receber para administrar. Os salários no governo marcam regimes que fornecem acesso ao poder a todos os cidadãos. Roma não é uma democracia. Nela a eficácia política depende da fratura entre quem governa e a massa dos que obedecem. O cimento que os une é o fauor (favor). Favere tem o sentido de "ser favorável", na língua comum e política. Fauor significa o próprio voto, mas não a campanha política, que tem por nome officium. O favor manifesta-se por sinais externos : laude, plausus, clamor (louvação, aplauso, clamor). A partir do teatro, aqueles termos são aplicados à política. E o favor indica "popularidade". Fauere significa "trabalhar para o aumento da posição política de alguém". Se o cliente tem o dever moral de votar no patrão, este último deve protegê-lo. Como na República existe a fictícia soberania popular (a Monarquia caíra com Tarquínio), o favor do voto tem o nome eufêmico de beneficium. Tal relação se cristaliza no obsequium (indulgência, complacência) e na ambitio, palavra para caracterizar os candidatos quando eles perdem a vergonha na caça aos votos. O favor é ambição indecorosa.

Voltemos ao bafafá gerado por nossos homens ilustres. Entre Luiz Inácio da Silva e Gilmar Mendes, Nelson Jobim operou como "broker", intermediário que, na clientela política, aproxima favorecidos ou fontes de obséquio. Houve ausência do necessário decoro na cena ocorrida. Decoro e prudência definem o que é permitido às pessoas públicas: roupas, modos de falar, tratamentos, lugares e ocasiões. Spinoza diz que se o governante "corre, ébrio e nu (...) nas praças, faz o papel de histrião ou despreza abertamente as leis que ele mesmo estabeleceu, é impossível que ele conserve a majestade do poder (...), pois tais coisas transformam o respeito em indignação e o estado civil em estado de guerra" (Tratado Político). O decoro não é "simples formalidade" porque a pessoa pública representa o Estado. Suas excelências não viram o "detalhe". Os agrados anteriores e os insultos posteriores falaram mais alto do que o respeito à cidadania. E agora José Sarney executa o favor de "apaziguar os ânimos" dos poderosos. Triste e indecoroso Brasil.

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