Rendição pragmática
Pela 'governabilidade', PT e PSDB sacrificaram seus programas de esquerda ou centro-esquerda
14 de outubro de 2012 | 3h 08
ROBERTO ROMANO É PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP, AUTOR DE O CALDEIRÃO DE MEDEIA (PERSPECTIVA) - O Estado de S.Paulo
O segundo turno das eleições paulistanas retoma o
dramalhão dos Montecchios contra os Capuletos, sem casal inocente para
ser lamentado. PT e PSDB têm origens próximas e fontes comuns de
pensamento. Ambos surgem como alternativas de esquerda ao "socialismo
real", seus programas pretendem mudar as formas capitalistas no âmbito e
limites do Estado democrático. Os dois partidos foram e são próximos da
social-democracia europeia, com variantes próprias à cultura política
brasileira.
O PT retoma três paradigmas de sociedade e de Estado. O primeiro é a
doutrina clássica do poder político que deve ser colhido eleitoralmente.
Mas para a representação marxista radical o Estado é ilegítimo, mesmo
com eleições e demais ritos burgueses. Representantes dessas tendências
estão no PT. Existem também os trotskistas, que postulam a luta
revolucionária no plano internacional. Daí sua suspeita contra o PT e o
sindicalismo nacionalista que o inspira. Alguns remanescentes da Quarta
Internacional desconfiam de Lula: ele seria um líder pré-fabricado (José
Nêumanne Pinto esclarece o tema em O que Sei de Lula). Os herdeiros de
Trotski representam setores críticos contra os dirigentes partidários.
PSTU e PSOL formalizam expulsões ou rupturas com o partido. Mas não
poucos trotskistas, a exemplo de Palocci, se acomodam à burocracia
partidária. Tal fusão heteróclita é relevante na construção do poder
interno do petismo.
Também na origem do PT estão as formas da cultura católica de
esquerda. Boa parte desse setor se forma nos anos 1960, quando a Igreja
modifica seus elos com a sociedade capitalista nas encíclicas sociais e
no Vaticano 2, sobretudo a declaração conciliar Gaudium et Spes. Nos
inícios daquela década surge a Ação Popular (AP), inspirada nas ideias
de Teilhard de Chardin e de Hegel, lidos pelo jesuíta Henrique Vaz. Ela
opera com as ações juvenis católicas especializadas (JEC, JUC, JOC). A
máxima expansão do movimento dá-se antes de 1964, quando a presidência
da UNE é conquistada por José Serra. Após o golpe a Ação Católica sofre
uma "intervenção branca" da CNBB e a AP perde seu elemento de
mobilização política. Após o Congresso da UNE em Ibiúna, e com as
guerrilhas, a AP deixa de ser estratégica para os religiosos. Com seu
desaparecimento os católicos não estabelecem partido próprio, anseio que
vem desde o Império. Os militantes e intelectuais cristãos encontraram
no PT a oportunidade de agir num coletivo político não comunista e livre
da Igreja, que na época sofre o Termidor dirigido por João Paulo II.
O PT é uma bricolagem de segmentos diferentes, um campo de lutas
interno e externo. O equilíbrio de vários modelos, desejos, paixões,
idiossincrasias, é nele muito difícil. A luta entre tendências conduz a
direção ao uso do segredo contra as bases, aos atos impostos
verticalmente, às alianças alheias ao espectro ideológico indicado no
programa. O PT foi produzido como alternativa política para setores da
esquerda, dos antigos comunistas aos católicos. Conduzir um programa
unitário com tantas divergências doutrinárias e imaginários distintos é
um desafio.
O PSDB teve sua origem no PMDB e foi liderado por setores políticos
da esquerda marxista, mas também acolhendo intelectuais católicos de
origem (caso de José Serra) e acadêmicos cuja produção teórica se
desenvolveu fora dos parâmetros filosóficos do chamado "materialismo
histórico e dialético". Já na ditadura civil-militar foi instaurado o
Cebrap, think tank que até hoje possui relativa força na orientação
programática tucana. Espécie de laboratório social e universitário, ele
gera ideias, táticas e estratégias do partido. Sua figura maior é
Fernando Henrique Cardoso, político hábil e pesquisador com ideias
próprias. Sua colaboração para a "teoria da dependência"o tornou
conhecido nacional e internacionalmente, dando-lhe credenciais para a
carreira de governante.
Os dois partidos, na Presidência da República, se renderam à lógica
do conservadorismo que rege os tratos entre o poder central e as regiões
brasileiras, dominadas por oligarquias truculentas e corrompidas. Ambos
precisaram rasgar os alvos éticos em proveito da "arte do possível" (o
termo é de Bismark). Nas alianças pela "governabilidade", as duas
agremiações sacrificaram no altar do realismo político seus programas
anteriores, de esquerda ou centro-esquerda. Oligarcas notórios (ACM,
Sarney, Jader Barbalho, Quércia, Maluf, para citar apenas alguns)
serviram aos dois partidos e deles se serviram ao longo dos 16 anos de
administração tucano-petista. Ficam os eleitores paulistanos com a
tarefa de fornecer alento suplementar para as duas siglas. Essas, em
nome do poder, desfiguraram suas propostas originais para a sociedade.
Esperemos que, depois do aperto sofrido por ambas, elas repensem táticas
e estratégias, tornando-se menos dependentes das raposas que ainda
dominam a política nacional e paulista.