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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 24 de setembro de 2012 a 30 de setembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 539
ARTISTAS
DE FATO
O
museu parisiense Musée du Quai Branly, inaugurado em 2006 ao lado da
Torre Eiffel, reúne objetos de sociedades tradicionais de todas as
partes do mundo e reserva um lugar de destaque à pintura aborígine
australiana. Além das peças que integram a exposição permanente, várias
partes do edifício – como o teto da livraria e uma das fachadas –
sofreram intervenções permanentes de oito artistas indígenas da
Austrália. É assim que os pintores aborígines são reconhecidos em seu
país e fora dele: como artistas de fato. A observação é da antropóloga
Ilana Seltzer Goldstein, autora da tese de doutorado “Do ‘tempo dos
sonhos’ à galeria: arte aborígine australiana como espaço de diálogos e
tensões interculturais”.
Com o
objetivo inicial de estudar o museu Branly, Ilana percebeu que a
produção indígena australiana contemporânea se diferenciava pelo modo
como era concebida como arte e recebida pelo mercado. A curiosidade fez
com que mudasse o foco da pesquisa, e fosse a campo investigar o chamado
Sistema de Arte Indígena da Austrália.
“No
período de quatro meses em que fiquei na Austrália, descobri um
universo inacreditável, ainda mais para alguém que, no Brasil, está
acostumado a ver objetos indígenas vendidos como ‘artesanato’ e feitos
em série, sem assinatura dos artistas”, diz. Na tese, Ilana desenvolve a
ideia de que os australianos encontraram uma maneira interessante de
lidar com a questão indígena: fomentando a sua produção artística de
maneira organizada e autogerida, de forma a garantir, a um só tempo,
geração de renda para as comunidades aborígines, transmissão de
conhecimentos tradicionais e visibilidade junto à sociedade nacional.
De
acordo com Ilana, na Austrália a maioria das galerias de arte vende
pinturas aborígines junto com as obras de artistas contemporâneos
brancos. Os mais importantes museus de arte exibem arte aborígine.
Existem prêmios, bienais e editais específicos para arte indígena. Telas
aborígines são arrematadas em importantes casas de leilão mundiais.
“Houve uma tela que foi vendida por dois milhões de dólares, feita por
um artista do deserto chamado Clifford Possum Tjapaltjarri. E a classe
média australiana compra arte indígena australiana. As pessoas gostam,
colecionam.”, afirma.
A consolidação
desse mercado deve muito às políticas públicas. A partir dos anos 1970 o
governo australiano começou a financiar a construção e o equipamento de
centros de arte indígenas em todo país. Funcionando de forma
autogerida, no formato de cooperativas, os centros de arte
disponibilizam aos artistas locais material para pintura, revendem as
obras no mercado externo, oferecem cursos e assessoria jurídica.
Normalmente, além da diretoria composta por aborígines, também há
funcionários brancos para o dia-a-dia administrativo, que inclui a
contabilidade, a manutenção das mídias e a organização de exposições.
“Os
centros de arte são um dos segredos do sucesso do sistema de arte
aborígine australiana”, destaca a autora da tese. Eles estão implantados
em cerca de cem comunidades e recebem trabalhos dos artistas que moram
num raio de até 200 km, conforme apurou Ilana. As exportações que chegam
a diversos países também são administradas pelos centros. Ilana visitou
seis, mas dedicou mais tempo a dois deles, o Buku-Larrngay Mulka
Centre, no povoado de Yirrkala, extremo norte da Austrália, e o
Warlukurlangu Artists Aboriginal Corporation, no Deserto Central, perto
de Alice Springs.
“O tipo de
produção artística é muito diferente em cada um dos centros. Em Yirrkala
se pinta com pigmentos naturais sobre entrecasca de árvore, numa gama
de cores reduzida ao preto, branco, ocre e vermelho, ao passo que, no
Deserto Central, usa-se tinta acrílica sobre tela de tecido, com uma
paleta de mais de 200 cores”, explica a antropóloga. Em ambos os casos, o
faturamento dos centros gira em torno de 3 milhões de dólares ao ano.
Na pesquisa de campo, Ilana também foi a museus públicos e galerias
comerciais, fez entrevistas com curadores, diretores de galerias e com
os próprios artistas. O levantamento mostra que hoje há cerca de 7 mil
artistas aborígines, de etnias e estilos diferentes.
No
entanto, há uma característica comum: a origem de cada gesto do artista
está em uma espécie de tempo mítico comum: o “tempo dos sonhos” ou, em
inglês, “dreaming” a que a autora se refere logo no título da tese. “A
arte para eles é uma atividade espiritual. Pintam histórias dos seus
ancestrais e trechos de seus mitos. Cada grupo, clã ou família tem suas
próprias narrativas sobre como surgiu o homem, como foi criada a
paisagem, regras de comportamento e moral”, ressalta. Por essa razão, os
melhores artistas são também os mais velhos.
Tradição impressa
Transferir
essas histórias para uma superfície duradoura significa fixar a
tradição oral, que estava se perdendo após o contato traumático com os
brancos. “Isso é muito positivo. Eles estão registrando sua memória, de
modo que as próximas gerações e os jovens brancos possam conhecer as
culturas aborígines”. Antigamente, as pinturas eram feitas somente sobre
o corpo, o chão ou as rochas. Agora, diz Ilana, as histórias aborígines
podem rodar o mundo.
Mas o mundo só
as reconhece, de acordo com Ilana, em razão de determinados fatores.
“Por um lado, essas pinturas carregam ensinamentos milenares que lhes
conferem força. Por outro lado, o estilo de muitas obras coincide com o
nosso gosto moderno. Tem aborígine que, por puro acaso, pinta como
Jackson Pollok, Paul Klee ou Mark Rothko. Além disso, os artistas
conseguem perceber o que os colecionadores querem, o que os museus
esperam – normalmente, sem abrir mão da coerência com sua própria
cultura”.]
Embora
o certificado de autenticidade que acompanha as obras costume apontar
apenas um autor, várias gerações podem pintar juntas um mesmo quadro. A
noção de autoria é flexível, pois os aborígines consideram que os mitos
pertencem à coletividade. Da mesma forma, o dinheiro que conseguem com a
venda das telas é dividido entre familiares, assim como a caça.
A
autora avalia que o aspecto de geração de renda é fundamental, uma vez
que os povos indígenas da Austrália não vivem isolados, precisando de
roupas e remédios. “Sem contar a importância de se ocuparem com
atividades culturalmente significativas. Estudos de colegas australianos
sugerem que o alcoolismo e o consumo de drogas entre aborígines se deve
ao ócio e à perda de sentido nas atividades cotidianas”, observa.
Os centros de arte assumem funções que vão muito além da arte. Sediam reuniões políticas, emprestam dinheiro, realizam campanhas de saúde pública. Há mesmo comunidades que estão construindo postos de hemodiálise com o dinheiro da venda da arte, pois um grande número de aborígines sofre de problemas renais, de acordo com a antropóloga.
Mea culpa
A
história dos aborígines australianos é de resistência. Trata-se de um
povo massacrado pelos colonizadores ingleses e discriminado pela
população branca, reduzido a 2,5% da população do país. O governo
australiano busca uma maneira de inclusão dos povos nativos, fomentando a
sua produção artística, mas, assinala Ilana, não se pode apagar as
mazelas do passado colonial, nem as enormes diferenças nas condições de
vida de brancos e indígenas que ainda persistem.
Para
Ilana, é possível explicar o grande fomento à arte aborígine
australiana como “uma maneira de expiar a culpa que a Austrália branca
tem por uma colonização extremamente violenta e que é muito recente”.
Até a década de 1970, crianças aborígines eram arrancadas de suas
famílias. “As meninas se transformavam em empregadas domésticas e hoje
se sabe que 30% delas sofreram violência sexual”.
As
tensões continuariam ainda hoje, quando marchands revendem o trabalho
de aborígines por um valor dez vezes maior do que o que pagaram ao
artista. “Isso levou o governo a criar, recentemente, uma taxa sobre a
revenda das obras”, diz. Ou quando há apropriação indevida – sem
autorização, nem remuneração – das imagens por empresas que fazem
souvenirs da Austrália, acarretando processos judiciais.
À
parte as tensões descritas por Ilana, ela conclui que a produção
artística é uma plataforma de comunicação privilegiada entre culturas e
sociedades diferentes, que poderia ser melhor explorada. “O caso
australiano ensina a países como o nosso que talvez a produção artística
indígena mereça mais destaque e apoio da sociedade envolvente. Não
apenas porque a arte pode ser capaz de seduzir e causar admiração pelo
outro. Nem somente porque se trata de uma forma de geração de renda. Mas
também porque, quando gerida pelos próprios povos indígenas, representa
uma possibilidade de as sociedades tradicionais continuarem com
práticas que, ao menos em parte, fazem sentido para elas, de registrarem
e difundirem seus símbolos e valores”.
Publicação
Tese: “Do ‘tempo dos sonhos’ à galeria: arte aborígine australiana como espaço de diálogos e tensões interculturais”.
Autora: Ilana Seltzer Goldstein
Orientação: Vanessa Rosemary Lea
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Autora: Ilana Seltzer Goldstein
Orientação: Vanessa Rosemary Lea
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)