quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A universidade que busca a beleza...é a verdadeira (e bela) universidade.

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 24 de setembro de 2012 a 30 de setembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 539

ARTISTAS
DE FATO


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O museu parisiense Musée du Quai Branly, inaugurado em 2006 ao lado da Torre Eiffel, reúne objetos de sociedades tradicionais de todas as partes do mundo e reserva um lugar de destaque à pintura aborígine australiana. Além das peças que integram a exposição permanente, várias partes do edifício – como o teto da livraria e uma das fachadas – sofreram intervenções permanentes de oito artistas indígenas da Austrália. É assim que os pintores aborígines são reconhecidos em seu país e fora dele: como artistas de fato. A observação é da antropóloga Ilana Seltzer Goldstein, autora da tese de doutorado “Do ‘tempo dos sonhos’ à galeria: arte aborígine australiana como espaço de diálogos e tensões interculturais”.

Com o objetivo inicial de estudar o museu Branly, Ilana percebeu que a produção indígena australiana contemporânea se diferenciava pelo modo como era concebida como arte e recebida pelo mercado. A curiosidade fez com que mudasse o foco da pesquisa, e fosse a campo investigar o chamado Sistema de Arte Indígena da Austrália.

“No período de quatro meses em que fiquei na Austrália, descobri um universo inacreditável, ainda mais para alguém que, no Brasil, está acostumado a ver objetos indígenas vendidos como ‘artesanato’ e feitos em série, sem assinatura dos artistas”, diz. Na tese, Ilana desenvolve a ideia de que os australianos encontraram uma maneira interessante de lidar com a questão indígena: fomentando a sua produção artística de maneira organizada e autogerida, de forma a garantir, a um só tempo, geração de renda para as comunidades aborígines, transmissão de conhecimentos tradicionais e visibilidade junto à sociedade nacional.

De acordo com Ilana, na Austrália a maioria das galerias de arte vende pinturas aborígines junto com as obras de artistas contemporâneos brancos. Os mais importantes museus de arte exibem arte aborígine. Existem prêmios, bienais e editais específicos para arte indígena. Telas aborígines são arrematadas em importantes casas de leilão mundiais. “Houve uma tela que foi vendida por dois milhões de dólares, feita por um artista do deserto chamado Clifford Possum Tjapaltjarri. E a classe média australiana compra arte indígena australiana. As pessoas gostam, colecionam.”, afirma.

A consolidação desse mercado deve muito às políticas públicas. A partir dos anos 1970 o governo australiano começou a financiar a construção e o equipamento de centros de arte indígenas em todo país. Funcionando de forma autogerida, no formato de cooperativas, os centros de arte disponibilizam aos artistas locais material para pintura, revendem as obras no mercado externo, oferecem cursos e assessoria jurídica. Normalmente, além da diretoria composta por aborígines, também há funcionários brancos para o dia-a-dia administrativo, que inclui a contabilidade, a manutenção das mídias e a organização de exposições.

“Os centros de arte são um dos segredos do sucesso do sistema de arte aborígine australiana”, destaca a autora da tese. Eles estão implantados em cerca de cem comunidades e recebem trabalhos dos artistas que moram num raio de até 200 km, conforme apurou Ilana. As exportações que chegam a diversos países também são administradas pelos centros. Ilana visitou seis, mas dedicou mais tempo a dois deles, o Buku-Larrngay Mulka Centre, no povoado de Yirrkala, extremo norte da Austrália, e o Warlukurlangu Artists Aboriginal Corporation, no Deserto Central, perto de Alice Springs.

 “O tipo de produção artística é muito diferente em cada um dos centros. Em Yirrkala se pinta com pigmentos naturais sobre entrecasca de árvore, numa gama de cores reduzida ao preto, branco, ocre e vermelho, ao passo que, no Deserto Central, usa-se tinta acrílica sobre tela de tecido, com uma paleta de mais de 200 cores”, explica a antropóloga. Em ambos os casos, o faturamento dos centros gira em torno de 3 milhões de dólares ao ano. Na pesquisa de campo, Ilana também foi a museus públicos e galerias comerciais, fez entrevistas com curadores, diretores de galerias e com os próprios artistas. O levantamento mostra que hoje há cerca de 7 mil artistas aborígines, de etnias e estilos diferentes.

No entanto, há uma característica comum: a origem de cada gesto do artista está em uma espécie de tempo mítico comum: o “tempo dos sonhos” ou, em inglês, “dreaming” a que a autora se refere logo no título da tese. “A arte para eles é uma atividade espiritual. Pintam histórias dos seus ancestrais e trechos de seus mitos. Cada grupo, clã ou família tem suas próprias narrativas sobre como surgiu o homem, como foi criada a paisagem, regras de comportamento e moral”, ressalta. Por essa razão, os melhores artistas são também os mais velhos.

Tradição impressa

Transferir essas histórias para uma superfície duradoura significa fixar a tradição oral, que estava se perdendo após o contato traumático com os brancos. “Isso é muito positivo. Eles estão registrando sua memória, de modo que as próximas gerações e os jovens brancos possam conhecer as culturas aborígines”. Antigamente, as pinturas eram feitas somente sobre o corpo, o chão ou as rochas. Agora, diz Ilana, as histórias aborígines podem rodar o mundo.

Mas o mundo só as reconhece, de acordo com Ilana, em razão de determinados fatores. “Por um lado, essas pinturas carregam ensinamentos milenares que lhes conferem força. Por outro lado, o estilo de muitas obras coincide com o nosso gosto moderno. Tem aborígine que, por puro acaso, pinta como Jackson Pollok, Paul Klee ou Mark Rothko. Além disso, os artistas conseguem perceber o que os colecionadores querem, o que os museus esperam – normalmente, sem abrir mão da coerência com sua própria cultura”.]

Embora o certificado de autenticidade que acompanha as obras costume apontar apenas um autor, várias gerações podem pintar juntas um mesmo quadro. A noção de autoria é flexível, pois os aborígines consideram que os mitos pertencem à coletividade.  Da mesma forma, o dinheiro que conseguem com a venda das telas é dividido entre familiares, assim como a caça.

A autora avalia que o aspecto de geração de renda é fundamental, uma vez que os povos indígenas da Austrália não vivem isolados, precisando de roupas e remédios. “Sem contar a importância de se ocuparem com atividades culturalmente significativas. Estudos de colegas australianos sugerem que o alcoolismo e o consumo de drogas entre aborígines se deve ao ócio e à perda de sentido nas atividades cotidianas”, observa.

Os centros de arte assumem funções que vão muito além da arte. Sediam reuniões políticas, emprestam dinheiro, realizam campanhas de saúde pública. Há mesmo comunidades que estão construindo postos de hemodiálise com o dinheiro da venda da arte, pois um grande número de aborígines sofre de problemas renais, de acordo com a antropóloga.

Mea culpa

A história dos aborígines australianos é de resistência. Trata-se de um povo massacrado pelos colonizadores ingleses e discriminado pela população branca, reduzido a 2,5% da população do país. O governo australiano busca uma maneira de inclusão dos povos nativos, fomentando a sua produção artística, mas, assinala Ilana, não se pode apagar as mazelas do passado colonial, nem as enormes diferenças nas condições de vida de brancos e indígenas que ainda persistem.

Para Ilana, é possível explicar o grande fomento à arte aborígine australiana como “uma maneira de expiar a culpa que a Austrália branca tem por uma colonização extremamente violenta e que é muito recente”. Até a década de 1970, crianças aborígines eram arrancadas de suas famílias. “As meninas se transformavam em empregadas domésticas e hoje se sabe que 30% delas sofreram violência sexual”.
As tensões continuariam ainda hoje, quando marchands revendem o trabalho de aborígines por um valor dez vezes maior do que o que pagaram ao artista. “Isso levou o governo a criar, recentemente, uma taxa sobre a revenda das obras”, diz. Ou quando há apropriação indevida – sem autorização, nem remuneração – das imagens por empresas que fazem souvenirs da Austrália, acarretando processos judiciais.

À parte as tensões descritas por Ilana, ela conclui que a produção artística é uma plataforma de comunicação privilegiada entre culturas e sociedades diferentes, que poderia ser melhor explorada. “O caso australiano ensina a países como o nosso que talvez a produção artística indígena mereça mais destaque e apoio da sociedade envolvente. Não apenas porque a arte pode ser capaz de seduzir e causar admiração pelo outro. Nem somente porque se trata de uma forma de geração de renda. Mas também porque, quando gerida pelos próprios povos indígenas, representa uma possibilidade de as sociedades tradicionais continuarem com práticas que, ao menos em parte, fazem sentido para elas, de registrarem e difundirem seus símbolos e valores”.

Publicação
Tese: “Do ‘tempo dos sonhos’ à galeria: arte aborígine australiana como espaço de diálogos e tensões interculturais”.
Autora: Ilana Seltzer Goldstein
Orientação: Vanessa Rosemary Lea
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)