segunda-feira, 22 de outubro de 2012

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Sicofantas e tagarelas

21 de outubro de 2012 | 3h 08
ROBERTO ROMANO - FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP); É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA' (PERSPECTIVA) - O Estado de S.Paulo
 
A palavra é o maior valor ético na ordem pública. Graves atentados ao decoro político são cometidos por gestos e incontinências verbais. Segundo Spinoza, o respeito exige que os governantes sejam prudentes quando movem a língua e o corpo. Ele adverte: "O Estado, para garantir o próprio domínio, se obriga a manter as causas do temor e do respeito (...). Aos que assumem o poder público é proibido se exibir em plena embriaguez ou sem roupas na companhia de prostitutas, imitar os palhaços, violar ou desprezar abertamente as leis editadas por eles mesmos" (Tratado Político). Gestos ou palavras devem ser medidos na política.

Quem não controla a fala por ela é dominado. A prudência requer disciplina e caráter. É árduo, diz Plutarco, "fazer dos dentes uma barreira sólida contra o dilúvio da língua". Usando termos da medicina, o teórico batiza a moléstia que acomete o falador como asingesia, a impossibilidade de manter silêncio. Ao piorar a doença, chega-se à diarréousi, a diarreia da boca (Sobre o Palavrório). As frases devem ser pesadas (a origem de "pensar" e "pesar" é comum). Caso oposto, elas aniquilam a sociedade. A ninguém é lícito ignorar a polidez, marca do convívio civil. Sem respeito pelas normas do pacto social, os líderes transformam os cidadãos em alcateia facínora cuja boca é usada para estraçalhar, nunca para exercer o diálogo.

Vejamos a semântica do termo "delator", aplicado pela mídia ao sr. Roberto Jefferson. A origem do termo é grega, como quase todos os vocábulos relevantes de nossa política e medicina. Hoje atravessamos uma crise inédita do Estado. O soberano não consegue exercer na plenitude os monopólios da ordem jurídica, dos impostos, da violência física. Preocupa a incerteza quanto aos limites dos Poderes. Há bom tempo se discute nos meios políticos, ideológicos, religiosos e financeiros a "judicialização" da vida pública, a hipertrofia do Judiciário (C. Neal Tate, The Global Expansion of Judicial Power, 1995).

Em Atenas não existia Ministério Público e nenhuma autoridade legal poderia entrar na Justiça em defesa dos interesses estatais. Cabia "a quem desejasse" (fórmula democrática instaurada por Sólon) o direito de falar em nome do Estado. Quem assim fazia se tornava parte do processo judicial em favor da "polis". Aqueles indivíduos agiam por amor à justiça? Já nos primórdios da vida democrática grega os magistrados desconfiaram dos interesses que movem os acusadores. Logo transformada em profissão, a atividade do sicofanta esmera-se na chantagem pecuniária (para responder em nome alheio a acusação ou renunciar a um processo perigoso para o acusado).

O mister de sicofanta, segundo C. R. Kennedy (citado por John Oscar Lofberg em Sycophancy in Athens, 1976), é "uma feliz mistura de chicaneiro, denunciador, processualista, apalpador, salafrário, mentiroso e caluniador. Ela supõe a calúnia, a conspiração, a acusação mentirosa, a litigância de má-fé, a ameaça de processos judiciais para extorquir dinheiro e, de modo geral, todos os recursos abusivos nos procedimentos legais com fins desonestos". 

A inflação dos sicofantas ameaçava a democracia ateniense, pois dividia os cidadãos, enfraquecendo a solidariedade coletiva. Aristófanes dá o nome de "vespas" aos delatores, porque suas picadas molestam a paz coletiva. Embora sua existência se universalize, o delator é odiado. Como no inferno descrito por Sartre, sicofanta é sempre o outro (Catherine Darbo-Peschanski, Por um punhado de figos, judicialização moderna e sicofantismo antigo - in Pauline Schmitt Pantel: Athènes et le Politique). 

No Direito Romano, quem denuncia pode funcionar como acusador. Caius permite que escravos delatem seus mestres, mas Claudius proíbe a prática e Galba a pune. Constantino veta a oitiva dos delatores e os condena à morte. No Digesto, a delação é tida como odiosa. Na ordem moderna, o delator aponta o crime, mas o acusador é o interessado em repará-lo buscando a justiça dos tribunais.
No século 18, era das Luzes, o problema apaixona pensadores e políticos. A Enciclopédia coordenada por Denis Diderot disseca o tema. Em verbete é dito que "denunciar, acusar, delatar são termos relativos ao mesmo ato por diferentes motivos. O estrito apego à lei parece motivar quem denuncia, um sentimento honrado ou gesto razoável de vingança, ou uma outra paixão, são marcas de quem acusa. No caso do delator a devoção baixa, mercenária ou servil, o prazer malicioso de fazer o mal aos outros, tudo pode ocorrer sem que ele receba benefícios em troca. Acreditamos que o delator atraiçoa; que o acusador é uma pessoa irritada; que o denunciante é alguém indignado. Embora as três figuras sejam odiosas para a opinião pública, o filósofo às vezes deve elogiar o denunciante e aprovar o acusador. O delator é sempre desprezível".

Temos aí o saber dos séculos contra Roberto Jefferson.

E a "tese" sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) como tribunal de exceção? A língua assim usada contra os juízes é imprudente. O delator indicou ações cometidas por ele e comparsas e foi sancionado negativamente. Os juízes do caso não agiram segundo os moldes do soberano "que decide sobre o estado de exceção". Defensores da Carta Magna, eles não se colocaram acima dela. Tal realidade represa a torrente de palavras e de insultos dirigidos contra os magistrados.

Exigir que todos sejam punidos de modo semelhante, sem discriminação partidária ou ideológica, é um avanço democrático. Nivelar instituições e malfeitores sinaliza o pior atraso político. Hoje é o mensalão petista. Amanhã, o tucano e quejandos. Mas todos os partidos dependem da justiça. Se um deles a recusa alegando "golpismo burguês", a quem apelar no futuro? Às Forças Armadas, às milícias, à guerrilha?

Prudência, senhores, recordem a lição de Fujimori.