A República e a Ação Penal 470
17 de outubro de 2012 | 3h 09
Luiz Werneck Vianna
O Rubicão foi atravessado à vista de todos e, na nova
margem em que nos encontramos, não há mais caminho de volta. Estamos,
agora, em pleno território da República - não mais a de fachada, velha
conhecida -, compelidos a devassar uma terra ignota, ainda envoltos na
névoa deixada por décadas de surtos de modernização, cada qual em estilo
adequado às conjunturas que os viram nascer, mas sempre sob a lógica
afeita aos principados a exercitar verticalmente sua vontade sobre uma
sociedade como base passiva.
O julgamento da Ação Penal 470 no Supremo Tribunal Federal (STF) -
que se investiu da pesada toga de um Senado romano desde a leitura em
plenário do introito à denúncia do procurador-geral da República -
pretendeu ser um julgamento político da História de uma sociedade
submetida à discrição do poder político da administração, em nome dos
valores e das instituições consagradas na Carta Magna de 1988, que
tardam em se fazer reconhecer.
O passado, tal qual o conhecemos, não deve mais iluminar o futuro,
pois, a esta altura do século, por maiores que tenham sido os seus
méritos na construção da identidade nacional, de uma cultura pluralista e
de um enérgico sistema produtivo, a hipoteca que nos deixou é a de uma
sociedade rebaixada diante do Estado e enredada em suas malhas. Se ele,
sem dúvida, foi eficaz em nos trazer a modernização, somente o foi ao
alto preço de ter sacrificado em favor dela o moderno e os seus valores.
O nome próprio do moderno é o da autonomia que se exprime no
exercício da livre manifestação de vontade da cidadania, a partir de uma
vida associativa e de partidos políticos que extraiam sua seiva de um
mundo da vida descontaminado do poder administrativo e do poder
sistêmico da economia, para usar a linguagem, incontornável na cena
contemporânea, de Jürgen Habermas.
O Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, sem se limitar à avaliação
de comportamentos ilícitos na esfera da vida privada - os personagens
dos bancos e das empresas envolvidas -, privilegiou a perspectiva da
esfera pública, os atentados ao sistema de representação política e aos
procedimentos democráticos, identificando a necessidade de limpeza dos
filtros que levam a essa esfera a manifestação de vontade do cidadão.
Vale dizer, delitos cometidos contra a República e suas instituições.
Em alguns votos contundentes, em que personagens clássicos da Roma
republicana foram evocados, ministros da Suprema Corte demonstravam
estar conscientes de que anunciavam um novo começo para a democracia
brasileira sob a égide de uma ética republicana. E não poucos
mencionaram a Lei da Ficha Limpa - na origem, uma lei de iniciativa
popular - como instrumento de proteção ao sistema da representação
política, considerada como bem maior a ser defendido. Provavelmente,
ecoaram nesse tribunal os argumentos de maior alcance pedagógico já
registrado entre nós em favor da democracia representativa.
A fixação dos votos dos ministros do STF no tema dos procedimentos,
tendo em vista guarnecer a todos com um direito igual em suas
manifestações de vontade - "núcleo dogmático" de validade universal nos
sistemas jurídicos das modernas democracias ocidentais -, execrando a
tentativa de colonização da representação popular por parte da
administração e do poder do dinheiro, deixa no vazio as insinuações de
que essa Ação Penal 470 seria mais um episódio da judicialização da
política entre nós, que, por definição, gravita em torno de matéria
substantiva.
A democracia de massas, que se amplifica com as poderosas mudanças
sociais de que o País é hoje um laboratório aberto, não pode desconhecer
a República e as suas instituições, sob pena de se ver dominada pelos
interesses políticos e sistêmicos estabelecidos. No mais, não há uma
Muralha da China a separar a democracia social da democracia política,
desde que essa esteja aberta a uma competição que não crie obstáculos às
legítimas pretensões dos agentes, partidos, sindicatos e organizações
sociais que nela atuem, visando a realizar seus interesses e valores.
O seminário com público de massas em que se converteu o julgamento da
Ação Penal 470, por sua vez, expôs a nu as fragilidades do sistema
político vigente, em particular a modalidade sui generis com que aqui se
pratica o presidencialismo de coalizão, indiferente a programas
políticos e cruamente orientado para ações estratégicas com vista à
conquista do voto e à reprodução eleitoral das legendas coligadas. Nesse
processo, os partidos migram da órbita da sociedade civil para a do
Estado, quando passam a ser criaturas dele.
Por causa da natureza fragmentária do quadro partidário e da
dispersão dos votos dela resultante, o governante vê-se tangido, em nome
da governabilidade, a reter insulado o cerne do programa com que foi
eleito - que nunca sai ileso dessa operação - e a facultar o acesso à
máquina estatal e às suas agências a aliados de ocasião com o objetivo
de obter maioria parlamentar. O cimento notório dessas coligações deriva
do loteamento entre elas de posições no interior da administração
pública, tornando-a vulnerável às pressões privatistas exercidas em
favor de financiadores de campanhas e de apoiadores políticos.
Nada de novo no diagnóstico, para cujos males há remédios conhecidos
em vários bons projetos em andamento no Parlamento, entre os quais o que
prevê financiamento público das campanhas eleitorais e a extinção das
coalizões partidárias nas eleições proporcionais. O laissez-faire em
política não é menos deletério do que em economia, e desde Maquiavel se
sabe que as Repúblicas que fizeram História começaram com a ação
virtuosa de um legislador.
* PROFESSOR-PESQUISADOR DA PUC-RIO
E-MAIL: LWERNECK096@GMAIL.COM