Sicofantas e tagarelas
21 de outubro de 2012 | 3h 08
ROBERTO ROMANO - FILÓSOFO,
PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
(UNICAMP); É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA'
(PERSPECTIVA) - O Estado de S.Paulo
A palavra é o maior valor ético na ordem pública. Graves
atentados ao decoro político são cometidos por gestos e incontinências
verbais. Segundo Spinoza, o respeito exige que os governantes sejam
prudentes quando movem a língua e o corpo. Ele adverte: "O Estado, para
garantir o próprio domínio, se obriga a manter as causas do temor e do
respeito (...). Aos que assumem o poder público é proibido se exibir em
plena embriaguez ou sem roupas na companhia de prostitutas, imitar os
palhaços, violar ou desprezar abertamente as leis editadas por eles
mesmos" (Tratado Político). Gestos ou palavras devem ser medidos na
política.
Quem não controla a fala por ela é dominado. A prudência requer
disciplina e caráter. É árduo, diz Plutarco, "fazer dos dentes uma
barreira sólida contra o dilúvio da língua". Usando termos da medicina, o
teórico batiza a moléstia que acomete o falador como asingesia, a
impossibilidade de manter silêncio. Ao piorar a doença, chega-se à
diarréousi, a diarreia da boca (Sobre o Palavrório). As frases devem ser
pesadas (a origem de "pensar" e "pesar" é comum). Caso oposto, elas
aniquilam a sociedade. A ninguém é lícito ignorar a polidez, marca do
convívio civil. Sem respeito pelas normas do pacto social, os líderes
transformam os cidadãos em alcateia facínora cuja boca é usada para
estraçalhar, nunca para exercer o diálogo.
Vejamos a semântica do termo "delator", aplicado pela mídia ao sr.
Roberto Jefferson. A origem do termo é grega, como quase todos os
vocábulos relevantes de nossa política e medicina. Hoje atravessamos uma
crise inédita do Estado. O soberano não consegue exercer na plenitude
os monopólios da ordem jurídica, dos impostos, da violência física.
Preocupa a incerteza quanto aos limites dos Poderes. Há bom tempo se
discute nos meios políticos, ideológicos, religiosos e financeiros a
"judicialização" da vida pública, a hipertrofia do Judiciário (C. Neal
Tate, The Global Expansion of Judicial Power, 1995).
Em Atenas não existia Ministério Público e nenhuma autoridade legal
poderia entrar na Justiça em defesa dos interesses estatais. Cabia "a
quem desejasse" (fórmula democrática instaurada por Sólon) o direito de
falar em nome do Estado. Quem assim fazia se tornava parte do processo
judicial em favor da "polis". Aqueles indivíduos agiam por amor à
justiça? Já nos primórdios da vida democrática grega os magistrados
desconfiaram dos interesses que movem os acusadores. Logo transformada
em profissão, a atividade do sicofanta esmera-se na chantagem pecuniária
(para responder em nome alheio a acusação ou renunciar a um processo
perigoso para o acusado).
O mister de sicofanta, segundo C. R. Kennedy (citado por John Oscar
Lofberg em Sycophancy in Athens, 1976), é "uma feliz mistura de
chicaneiro, denunciador, processualista, apalpador, salafrário,
mentiroso e caluniador. Ela supõe a calúnia, a conspiração, a acusação
mentirosa, a litigância de má-fé, a ameaça de processos judiciais para
extorquir dinheiro e, de modo geral, todos os recursos abusivos nos
procedimentos legais com fins desonestos".
A inflação dos sicofantas ameaçava a democracia ateniense, pois
dividia os cidadãos, enfraquecendo a solidariedade coletiva. Aristófanes
dá o nome de "vespas" aos delatores, porque suas picadas molestam a paz
coletiva. Embora sua existência se universalize, o delator é odiado.
Como no inferno descrito por Sartre, sicofanta é sempre o outro
(Catherine Darbo-Peschanski, Por um punhado de figos, judicialização
moderna e sicofantismo antigo - in Pauline Schmitt Pantel: Athènes et le
Politique).
No Direito Romano, quem denuncia pode funcionar como acusador. Caius
permite que escravos delatem seus mestres, mas Claudius proíbe a prática
e Galba a pune. Constantino veta a oitiva dos delatores e os condena à
morte. No Digesto, a delação é tida como odiosa. Na ordem moderna, o
delator aponta o crime, mas o acusador é o interessado em repará-lo
buscando a justiça dos tribunais.
No século 18, era das Luzes, o problema apaixona pensadores e
políticos. A Enciclopédia coordenada por Denis Diderot disseca o tema.
Em verbete é dito que "denunciar, acusar, delatar são termos relativos
ao mesmo ato por diferentes motivos. O estrito apego à lei parece
motivar quem denuncia, um sentimento honrado ou gesto razoável de
vingança, ou uma outra paixão, são marcas de quem acusa. No caso do
delator a devoção baixa, mercenária ou servil, o prazer malicioso de
fazer o mal aos outros, tudo pode ocorrer sem que ele receba benefícios
em troca. Acreditamos que o delator atraiçoa; que o acusador é uma
pessoa irritada; que o denunciante é alguém indignado. Embora as três
figuras sejam odiosas para a opinião pública, o filósofo às vezes deve
elogiar o denunciante e aprovar o acusador. O delator é sempre
desprezível".
Temos aí o saber dos séculos contra Roberto Jefferson.
E a "tese" sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) como tribunal de
exceção? A língua assim usada contra os juízes é imprudente. O delator
indicou ações cometidas por ele e comparsas e foi sancionado
negativamente. Os juízes do caso não agiram segundo os moldes do
soberano "que decide sobre o estado de exceção". Defensores da Carta
Magna, eles não se colocaram acima dela. Tal realidade represa a
torrente de palavras e de insultos dirigidos contra os magistrados.
Exigir que todos sejam punidos de modo semelhante, sem discriminação
partidária ou ideológica, é um avanço democrático. Nivelar instituições e
malfeitores sinaliza o pior atraso político. Hoje é o mensalão petista.
Amanhã, o tucano e quejandos. Mas todos os partidos dependem da
justiça. Se um deles a recusa alegando "golpismo burguês", a quem apelar
no futuro? Às Forças Armadas, às milícias, à guerrilha?
Prudência, senhores, recordem a lição de Fujimori.