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Revista USP
versão ISSN 0103-9989
Rev. USP no.88 São Paulo fev. 2011
TEXTOS
Sobre o segredo e o silêncio
Roberto Romano
Professor do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e autor de, entre outros, O Caldeirão de Medeia (Perspectiva)
Alguns pensadores como Paul Virillo definem a vida contemporânea com o signo da velocidade. Outros a determinam pelo vínculo entre a ordem particular e pública com o espetáculo. O fato é que as duas vias se encontram quando refletimos sobre o barulho que nos enlouquece a cada instante. Estradas e ruas insuportáveis ao ouvido, divertimentos que fariam o alarido das bacantes parecer murmúrio, cultos religiosos efetuados aos berros, tanto em igrejas ortodoxas quanto nas reformadas, tom de voz humana mais próximo aos urros das selvas. Não apenas a nossa cultura se pauta pela espacialização: o sentido do tempo, a escuta, se perde a cada átimo numa ciranda infinda. Em tal cacofonia, o sentido lógico das palavras se dissolve com rapidez inédita e percebemos o quanto o discurso, em todos os âmbitos, se banaliza e decai nas formas da propaganda e da histeria. Não existem mais comícios políticos, são poucas as procissões religiosas, mas o ritual satânico da incomunicação anuncia o reinado de máquinas inteligentes e usuários "humanos" a cada hora menos atilados. As mônadas, dizia Leibniz, não têm portas nem janelas. No mesmo ímpeto em que nos fechamos numa jaula definida como tecnosfera, perdemos a capacidade de falar e de ouvir. As linhas que seguem pretendem ser uma pequena meditação sobre tal lado de nossa existência, em pleno século XXI.
A poesia contemporânea exprime o silêncio numa espécie de paranoia da palavra escrita, desconfiança renovada em indefinidos modos desde Platão. Sabemos a crítica do faraó Thamus ao deus Teuth, o fabricante das letras. Sócrates, no Fedro (pp. 274-61), recorda que em tempos pretéritos muitos sábios escreveram sobre a retórica, incluindo a refinada Safo. No entender de Sócrates, um de seus interlocutores, Lísias, escreve em demasia. É preciso aprender a julgar os textos para não lhes dar consideração maior do que a merecida. Os estadistas, pessoas prudentes, não costumam escrever pois as suas linhas poderiam ser examinadas com muito rigor pelos pósteros. Se escrevem, tentam ser exímios na arte das letras. É assim que Sócrates enquadra o invento chamado escrita. Esta seria ideada pelo deus Teuth que, por sua vez, a comunicara ao faraó Thamus, soberano de Tebas. O rei não se entusiasma com o feito e diz temer que a escrita, em vez de tornar as pessoas sábias as prejudique, fazendo-as crer que pensam o que enxergam nas letras. E temos o mais conhecido símile entre artes e texto, lugar comum da Grécia clássica, entre palavras redigidas e as artes: "Os produtos da escrita são como os da pintura. Interroguem os quadros; eles responderão por majestoso silêncio. Interroguem os livros; eles sempre darão a mesma resposta. Vocês podem acreditar, ao escutá-los, que eles são muito sábios. Mas, uma vez escrito, um discurso gira por todos os lados, nas mãos dos que o compreendem como daqueles para os quais eles não foram escritos. Ele nem sabe a quem falar ou diante de quem calar. Desprezado ou atacado injustamente, ele sempre precisa de um pai que o socorra; pois ele não resiste nem ajuda a si mesmo".
O poeta, o prosador, todos corrigem o que escrevem. Mas todos eles precisam da palavra interior, e devem cultivá-la com enorme atenção para merecer o nome de filósofo, o amante da sabedoria.
Saltemos os milênios que nos separam de Sócrates e consultemos Camille Mauclair, o amigo de Mallarmé: "O credo do artista moderno é o silêncio". Também Octavio Paz: "A atividade poética nasce do desespero diante da impotência da palavra e culmina no reconhecimento da onipotência do silêncio". O mundo moderno, ainda segundo Paz, é presa do "discurso do afásico". Com o esfacelamento da teologia e do sistema newtoniano do universo, a escrita que deles falava também se desintegra, sendo que hoje a função profissional do escritor é a de ser "jardineiro de epitáfios". Esses testemunhos foram recolhidos por Diana C. Niebylski (1993) num bonito livro (se é possível, com tais confissões, escrever e publicar...) intitulado O Poema no Fio da Palavra: os Limites da Linguagem e o Uso do Silêncio na Poesia de Mallarmé, Rilke e Vallejo. Na verdade, tal desagregação da escrita própria à racionalidade mecânica que ruma para o silêncio teve forte impulso no romantismo e, mesmo, nas Luzes no século XVIII1.
Ao se referir às superstições verbais (o desejo de manter o próprio nome em segredo, por exemplo), autores que publicaram nos inícios do século XX afirmam que o mesmo século "sofre de uma forma ainda mais penosa do que qualquer época anterior" naquele ponto.
"Devido ao desenvolvimento dos métodos de comunicação e à criação de muitos sistemas simbólicos especiais, a forma da enfermidade se alterou consideravelmente; e, além da peculiar sobrevivência da apologética religiosa, toma agora formas ainda mais insidiosas que no passado. As influências que favorecem sua ampla difusão se definem na tediosa complexidade do aparato simbólico disponível hoje; a posse, entre os jornalistas e letrados, de imenso vocabulário semitécnico, sua falta de oportunidade ou vontade de buscar o uso adequado; o êxito de pensadores analíticos em campos limítrofes aos das matemáticas, tornando ainda mais pronunciado o divórcio entre símbolo e realidade e mais atrativa a tendência à hipóstase; a extensão de um conhecimento das formas mais toscas da convenção simbólica (os três R ingleses, ler, escrever, aritmética) combinado com um alargamento do abismo entre o público e o pensamento científico de sua época; e finalmente, a exploração, com fins políticos e comerciais, da imprensa, mediante a disseminação e reiteração dos clichês" (Ogden & Richards, s.d., p. 54)2.
Com esse comentário, somos conduzidos a outro limite da escrita, da fala e do silêncio, o equívoco. A filosofia, desde seus primórdios, tenta arrancar o equívoco da linguagem comum e dos enunciados científicos. No "Plano de Universidade para o governo da Rússia", Diderot imagina a geometria como "a melhor e a mais simples de todas as lógicas, a mais própria para fornecer inflexibilidade ao juízo e à razão". Os equívocos da língua seriam reparados pelas matemáticas: "[...] se nossos dicionários fossem tão bem feitos ou, o que é o mesmo, se as palavras usuais fossem tão bem definidas quanto as palavras 'ângulos' e 'quadrados', sobrariam poucos erros e disputas entre os homens. É a esse ponto de perfeição que todo trabalho sobre a língua deve tender". O pensador logo percebeu que o seu alvo, como o de Platão, Aristóteles ou dos filósofos medievais e modernos, era inatingível. Mas a tarefa de sanar a língua escrita e falada continua hoje, em setores como a filosofia e a lógica, em escritores como Carnap, Quine, Wittgenstein e outros. Ainda agora, no entanto, em especial no plano da ética e da política, segue válida a advertência diderotiana:
"[...] é do idioma de um povo que precisamos nos ocupar, quando queremos dele fazer um povo justo, razoável, sensato. Isto é tão importante que, se o senhor refletir um momento sobre a rapidez incompreensível da conversa, o senhor conceberá que os homens não profeririam vinte frases num dia, se eles se impusessem a necessidade de ver distintamente em cada palavra por eles dita qual é a ideia ou a coleção de ideias que a ela se apegam" (apud Romano, 1989).
Em Ser e Tempo (§ 37) Heidegger analisa a fala equivocada (Die Zweideutigkeit) não apenas entre cientistas e público, mas na própria "comunidade acadêmica". O saber, na era de sua divulgação máxima, tornou-se dificilmente distinto das suas várias expressões vulgares. Com a imprensa "tudo assume a aparência de ter sido o verdadeiro captado, colhido, expresso, mas no fundo, nada o foi". Num mundo onde a informação se acelera ao máximo, a parolagem dogmática de intelectuais e jornalistas é a norma:
"Cada um não apenas conhece e discute o que se passou e o que está vindo, mas cada um sabe também falar sobre o que deveria ocorrer, sobre o que ainda não ocorreu, mas deveria 'evidentemente' ser feito. Cada um sempre farejou e pressentiu de antemão o que os demais farejaram e pressentiram. Este modo de seguir pelos traços e pelo ouvir-dizer [...] é insidioso o bastante para que o equívoco faça entrever ao existente possibilidades que, ao mesmo tempo, ele abafa no germe".
Na sociedade da informação os termos científicos e acadêmicos circulam de modo imediato (Heidegger, 1967, pp. 173 e segs.).
Heidegger, como boa parte dos filósofos contemporâneos, se nutre de Platão e seguidores, embora faça parecer que os combate. Citarei dois textos dos mais influentes na formação da ética ocidental, do helenismo aos nossos dias. São tratados complementares de Plutarco, um sobre a fala em excesso e imprudente e outro sobre a curiosidade. No primeiro3 o médico e filósofo propõe remédios para a cura do equívoco e da garrulice. Trata-se de uma tarefa quase impossível, pois o tratamento supõe o uso do remédio (pharmakon) que, no adoecido de palavrório, perde validade. De fato, o que fala em demasia gastou o poder do logos. Para a sua cura é essencial o mesmo logos. Como fazê-lo ouvir a razão (na língua grega, logos e razão identificam-se) se ele fala e não ouve, não arrazoa antes de jogar palavras ao vento? Tal é o primeiro sintoma, diz Plutarco, do nosso adoecido: "[...] a língua mole torna-se impotência do ouvido". Mas é pior: a surdez do falador é deliberada, o que o faz criticar a natureza que lhe deu apenas uma língua e dois ouvidos4. Na parolagem sem freios o remédio a ser usado é o próprio veneno: trata-se do logos, ele mesmo doente. Se as demais insanidades podem ser curadas pela palavra ou podem ser entendidas5, nesse caso a situação é "embaraçosa", como traduz Amyot, ao ler o paradoxo inicial do texto plutarquiano. O logos adoecido, fluxo instável, não tem solidez alguma. No acometido de logorreia ele é menos remédio e mais veneno. Naquelas pessoas só a boca opera, enquanto o ouvido permanece trancado.
A palavra tem como serventia trazer credibilidade. Se ocorre a inflação de palavra ela perde força. O perigo maior é quando à garrulice somam-se outras doenças como o uso do vinho. "O que está no coração do sóbrio está na língua do ébrio". Dos locais a serem temidos quando um governo possui tagarelas a seu préstimo, a barbearia é a mais ameaçadora. O rei Arquelau respondeu assim ao barbeiro gárrulo que lhe perguntou como desejava cortar o cabelo: "Em silêncio!". Marius dominava a região de Atenas mas um bando de velhotes, conversando no barbeiro, deu a entender aos espiões que um setor da cidade estava desguarnecido. Sylla, sabedor do ponto fraco, ataca à noite e quase arrasa a cidade, a qual ficou cheia de cadáveres a ponto de um riacho de sangue invadir o Cerâmico. Quando ocorreu a conspiração para assassinar Nero, um inconfidente, ao ver passar certo prisioneiro rumo à cela, cochichou para o infeliz que ele deveria tudo fazer para resistir um dia a mais, pois então estaria libertado. O condenado achou de bom aviso contar o que ouviu para Nero. O resto é conhecido. Conselho de Plutarco:
"Se deixas escapar o segredo para depositá-lo em outra pessoa, recorres à discrição alheia, mas renuncias à tua. Se ele se parece contigo, tua perda é justa; se melhor do que tu, salvas-te contra toda lógica ao encontrar, para teu bem, um outro mais seguro do que a tua pessoa, 'mas o amigo é um outro eu!'6. Sim, mas ele também possui um amigo, a quem confidenciará... e que confiará em outro... [...] a palavra que permanece na primeira pessoa é segredo de verdade, mas desde que passou para uma segunda adquire o estatuto de rumor público".
O texto de Plutarco traz muitos exemplos unidos aos boatos políticos que hoje, na política dominada pela fala inglesa, é tarefa dos spin doctors7. O Senado romano manteve reuniões secretas e a mulher de um senador exigia de seu marido informações sobre os encontros. O político finge anuir e diz-lhe o "segredo": tratava-se de uma ave com lança e capacete dourado, que surgira na cidade. O rumor seguiu até o fórum, antes do homem que o inventou. Para punir sua mulher, ao chegar em casa ele fingiu que a coisa era séria e, pela inconfidência, seria exilado. "Que desejas partilhar comigo?". A resposta do poeta Filipides ao rei Lisímaco é a correta: "Tudo, menos teus segredos".
Enfim, a "cura" do palavrório, segundo Plutarco, não pode ser conseguida de modo violento, mas criando-se outros hábitos. O autor insiste nesse ponto, essencialmente ético: o falador deve ser treinado para ficar em silêncio, prestar atenção ao dito (treinar o ouvido) e fugir das conversas gratas aos faladores. Se militar, ele deve ser afastado das narrativas heroicas e assim por diante. Diríamos que os pescadores devem ser impedidos de se imiscuir em histórias de pescaria... Isso porque se entram no fluxo discursivo predileto podem falar mais do que o necessário para engrandecer e embelezar o relato, o que dirige a língua ao exagero sem o freio do pensamento. Basófias são fonte segura de segredos que se escoam. Um conselho: quando não se puder deixar de vez as ondas palavrosas, tente-se passar da oralidade à escrita. A literatura, embora ainda possa exercer a indiscrição (certo filósofo foi chamado de "pena que berra" em Atenas), pode ser mais controlada pelo autor. Outra cura: fazer o linguarudo frequentar pessoas dele diferentes, deixando o círculo dos seus iguais. O respeito de opiniões ponderadas lhe fornecerá o hábito de calar.
Além da cura ética (mudança da postura, héxis), Plutarco recomenda reflexão e vigilância antes de falar. Diante da possível enunciação, perguntar sempre: "Qual o propósito? É urgente? Que se ganha ao falar? O que se perde?". A via régia foi aberta por Simonides, o poeta: nos arrependemos com frequência do que falamos, mas nunca do que silenciamos8. O treino tudo pode dominar. Muitos pensadores modernos, para falar do segredo e da necessária disciplina que ele exige, usam Plutarco mas esquecem de indicar a fonte. É o que se passa com Heidegger. Em sua análise da comunicação moderna o filósofo sublinha a perda radical do segredo na publicidade. No mundo em que reina o "se", todos os indivíduos estão sujeitos à discrição alheia. O que em Plutarco era doença de alguns, em nossos dias tornou-se pandemia. Mas o alheio, hoje, não possui determinação certa, pode ser alguém e ninguém ao mesmo tempo. Quando o indivíduo fala algo, ou faz, afirma de imediato a culpa como advinda "dos outros". Trata-se de um truque bem conhecido pois a fórmula "os outros" recolhe também quem fala ou faz. "Os outros" surgem na imprensa, no ônibus, nos passeios, nas reuniões sociais, e neles todos são dissolvidos, o ego incluído. Trata-se de uma indiferença ou indistinção generalizada na qual pouco importa o que eu ou você fala, porque ambos "falamos" o que "se fala" e "como se" fala. O discurso perde sabor individual. Mesmo no "escândalo" não ocorre falha entre o público e o privado: ambos são diversificações do indistinto modo de agir e julgar preestabelecido, o "se" (fala-se, diz-se, ouviu-se dizer que, etc.). Julgamos escandaloso o que "se" (o público) julga escandaloso.
Heidegger, como indiquei, identifica na mídia a grande força de pasteurização ou esmigalhamento dos indivíduos e da linguagem. Na mídia nada é secreto porque nela inexiste o contato efetivo com o que é, mas apenas com a média das percepções e da linguagem sobre eventos e seres. A mediania não desce fundo nas coisas e palavras, ela inscreve-se num horizonte medíocre que "facilita" a compreensão de todos. Desse modo, a mídia não admite exceções, ela é democrática e igualitária. Assim, ela não autoriza a surpresa diante de novos conhecimentos. Se aparece algo assim, ela sempre tenta "mostrar" que o saber alegado é antigo. Na mídia não existe reconhecimento do que foi conquistado em muito tempo e pesquisa. A novidade é a sua regra, o instantâneo, o seu procedimento, o público é seu alvo e pressuposição. Com a mediania, "todo segredo perde a força e o mistério. A preocupação da média evidencia uma nova tendência do existente (Dasein), e nós a chamaremos nivelamento de todas as possibilidades de ser". Esse nivelamento constitui a essência da "opinião pública". O referido público, como o freguês no mercado, sempre está com a razão e "decide" a correta interpretação de tudo: aplausos mais ou menos longos decidem a verdade, a beleza, a maestria técnica dos candidatos nos programas de auditório. O mesmo ocorre nas pesquisas de opinião pública que decidem quais são os melhores aspirantes ao governo do Estado. O que é o "público" no qual imperam os hábitos encobertos pela forma do "se"?
O "se" é a impessoalidade coletiva que "descarrega" os indivíduos de si mesmos, deixando-os sem qualquer responsabilidade ou culpa. Eles "fazem" ou "fizeram" o que "se" faz. Desse modo, nada é sério para os indivíduos, nada é grave, tudo é frívolo. Eles jamais têm culpa e tudo é objeto de risadas, comentários, falatórios, fofocas. A covardia penetra o comportamento mediano obediente ao "se". Nada, ali, que não pudesse encontrar em Rousseau uma descrição cortante9. Quanto mais o "se" parece manifesto em toda parte, mais ele é imperceptível e dissimulado. E agora entramos na parte de Ser e Tempo que retoma sem citar o texto de Plutarco indicado acima, o De Garrulitate. O § 35 escrito por Heidegger tem a mesma estrutura e andamento igual ao do tratado plutarquiano. Indiquei, ao passar por aquele texto, que o primeiro ponto nele inscrito é a dificuldade de curar o palavrório, visto que a doença está inserida no instrumento da cura, o logos que deve ser ouvido pelo enfermo. Este não escuta porque tem toda a sua alma voltada para a língua. Heidegger, no início de seu parágrafo, distingue entre escutar e ouvir.
Ouvir e compreender agarram-se ao que se diz, enquanto se diz. Não ocorre preocupação imediata com o objeto, com o que se diz. Quando alguém fala sem prestar atenção ao falado, apenas transmite e repete a fala. Quanto mais pessoas ouvem um discurso mais ele toma caráter autoritário, "isto é assim porque assim se diz". A parolagem chega ao máximo quando se rompe todo elo entre a palavra e o objeto que ela deveria colher. E a parolagem oral ou escrita é nutrida por leituras maquinais. Temos a compreensão média, repetitiva, pública10. Tal forma de compreender é dogmática e dispensa todas as distinções entre a fala e os objetos. Ela é a verdade em andamento. A garrulice não dissimula, não se esconde em nenhum segredo porque ela mesma já é dissimuladora. Quando um linguarudo fala ele esconde sem saber ou desejar o que deveria ser dito, joga um véu de sons acima dos entes que deveriam ser pensados. Quando fala o tagarela, ele impede toda discussão posterior. "Tudo está dito." E nada deve ser perguntado. Desaparece o segredo no mais banal, na opinião pública11.
No De Garrulitate Plutarco afirma que a doença próxima, gêmea do falatório, é a curiosidade12. O tratado em que o moralista analisa o tema possui acentuado sentido político entre os gregos. Como indica Jean Dumortier (Plutarque, 1975, pp. 261 e segs.), tradutor e intérprete de Plutarco citado há pouco, a prática da polupragmonsune13 reside na tendência a se imiscuir indiscretamente nos assuntos alheios, sejam eles privados ou públicos. Os atenienses criaram um termo para designar o sujeito que especula o que não lhe diz respeito: sicofanta (na origem, com bastante probabilidade, sicofanta era o delator dos que roubavam figos, nas comédias de Aristófanes os delatores e os sicofantas são ridicularizados). O emprego de alcaguetes marca os tiranos. Na República, quando Platão traça a pintura sinistra do tirano, entra a imagem dos mercenários que, caso sua terra possua cidadãos prudentes e sábios, dela saem para servir em cidade estranha "como ladrões, furadores de muralhas, cortadores de bolsas, afanadores de roupas, pilhadores de templos, praticantes de tráfico escuso; por vezes, caso sejam capazes de falar, tornam-se sicofantas, falsas testemunhas, agentes da corrupção"14. Tais pessoas são usadas pelo tirano para dominar os cidadãos livres. Possui importância estratégica a atividade do sicofanta, delator a soldo do tirano. Mas para delatar é preciso seguir o segredo onde ele se encontra.
A diatribe de Heidegger contra o palavrório (Gerede) tem origem em Platão, por mais que o pensador germânico se coloque em sentido contrário ao autor dos Diálogos. No que tange ao palavrório da massa, da imprensa e dos universitários modernos, combatido por Heidegger, a origem da crítica também se localiza em Platão, na República e nas Leis. No caso das Leis, a base do processo contra o falatório situa-se na crítica endereçada aos poetas, quando estes últimos abalam a medida prudencial a que deveriam se submeter, ameaçando a vida pública.
A justa medida, diz Platão, é essencial na ordem política e nas relações do corpo (alimentos) ou técnicas (nos navios, não se pode usar mais velas do que o preciso). Na alma não podem ser usufruídos direitos excessivos. Sem justa medida tudo se inverte. Ali a abundância de carnes que leva à doença, aqui a ilimitação (hybris) que gera a injustiça (adikia). A alma dos jovens não suporta o peso do poder, logo é infectada da mais grave doença, a desrazão (anóia). Contra tais excessos cabe ao legislador prudente, graças à justa medida, tomar precauções.
E chega o instante dos pesos e contrapesos do poder. Em Esparta, em vez do rei único, existia uma dupla de reis reduzindo o poder à justa medida. Além disso, o voto de 28 anciãos que possuem, nos assuntos mais graves, poder igual ao dos reis. Há um terceiro salvador com o poder dos Eforos, algo que se aproxima do sorteio. O governo de Esparta combina poderes, o que leva à salvação coletiva. Juramentos não controlam a alma de um jovem candidato à tirania. Importa limitar a medida dos poderes, fundir num só os três poderes.
No mundo conhecido, adianta Platão, existe de um lado o poder autocrático dos persas e o temperado de Esparta. É preciso sempre o tempero, o acorde correto. Tal teoria do poder tem como pressuposto uma visão do universo e da sociedade como harmonia. Na ordem política deve ser mantida a ordem antiga sob o domínio das antigas leis. Nela, o povo não tinha soberania nos assuntos mas era escravo voluntário das leis.
Quais leis seriam as referidas? As relativas à música. Na época antiga a música era dividida segundo espécies e formas próprias. As preces aos deuses eram cantos, hinos. Depois havia uma espécie de canto oposto: lamentos chamados "trenos". Os peans eram uma espécie distinta, outra ligada ao nascimento de Dionisos seria o ditirambo, etc. Reguladas as coisas, não era permitido abusar de uma das formas, transpondo-a para outras. O poder de julgar sobre elas e julgar com conhecimento de causa e punir os transgressores não pertencia às vaias ou aplausos, mas era decidido por homens sábios que tudo ouviriam em silêncio e, com a varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam crianças e professores. Esta a ordem aceita pelos cidadãos, sem que eles tivessem a audácia de recorrer à gritaria para opinar.
Os poetas foram os primeiros a corroer as leis da música. Eles são dotados para a poesia mas nada conhecem da Musa enquanto fonte de legitimidade e fé pública, misturam as formas e levam tudo a se confundir, pretendem mentirosamente, em sua desrazão involuntária, que na música não existe lugar para a retidão e que, além do prazer que se encontra no seu gozo, não existe meio correto de decisão, melhor ou pior. Eles inculcam na massa o hábito de infringir as leis e a audácia de se acreditar capaz de decidir. Resultado: antes, o público não falava no teatro (era ), depois, começou a falar como se entendesse o que é belo na música, ou não, surge então uma "teatrocracia" () depravada que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música apenas, surgisse uma democracia composta por indivíduos de uma cultura liberal, não ocorreria algo tão desastroso. Mas na verdade é pela música que se iniciou, entre nós, com a crença na sabedoria de todo mundo para julgar, a atitude subversiva. Nenhum medo os retinha pois se acreditavam sábios, e essa ausência de medo gerou a impudência, audácia de não temer a opinião de quem vale mais do que nós. Eis a impudência detestável, efeito de uma liberdade cuja arrogância é levada ao excesso.
Embora seja possível recolher nos textos platônicos elementos para nos aproximar do silêncio (a Carta Sétima é decisiva na condenação da escrita e da fala excessivas), também é permitido ler os Diálogos como prelúdio do mundo em que são votados ao silêncio involuntário todos os que se encontram no terreno da alteridade, os que não entram no campo do supostamente normal. Platão propõe um papel ativo para as mulheres, à diferença de outros filósofos como Aristóteles15. Shoshana Felman (1978, pp. 138 e segs.), em certa altura de seu livro intitulado A Loucura e a Coisa Literária, começa um capítulo importante ("As Mulheres e a Loucura: História Literária e Ideologia") com uma epígrafe assustadora: "O silêncio dá às mulheres as suas graças próprias". Trata-se de uma passagem de Sófocles na peça Ajax. E Felman (1978, p. 141) aponta o truque muito comum dos que falam sempre "em nome de"16. Ela se refere ao "gesto opressivo da representação pelo qual, na história do logos, o homem ocidental reduziu, precisamente, o outro (a mulher) a objeto silencioso e subordinado".
Felman analisa um conto de Balzac chamado "Adeus". Dois caçadores se perdem na floresta e perguntam a duas mulheres onde estavam. Uma delas é surda e muda e a outra, louca afásica. As duas mergulham no silêncio. A única palavra que a triste afásica repete é "adeus". Um dos homens, diante da palavra, desmaia pois reconhece a companheira que o seguira na viagem para a Rússia durante as guerras napoleônicas. Quando a situação se tornou insuportável ele a colocou numa jangada e dela se despediu com um adeus. O sujeito tenta curar o antigo amor. O tratamento começa com pequenos grãos de açúcar dados à senhora, uma espécie de amestramento. O alvo era fazer com que ela o reconhecesse. Ele resolve montar uma cena, exatamente a última que ocorreu entre eles na Rússia, com direito ao rio, à jangada, ao adeus. E no palco erguido ele pergunta se ela o reconhece. O falocentrismo é mais do que evidente. Ela não é, ele é e deve ser reconhecido. Ele fala, ela mergulha ainda mais no silêncio da morte. "Não me reconheces? Sou eu, teu Filipe!". Filipe não articula a questão "quem é ela?" mas sim "quem sou eu". A resposta joga o silêncio sobre ela. A coisa piora quando ele afirma ansioso: "Tu és a minha Stefânia", ou seja, uma propriedade perdida de Filipe...
Mas o outro, além da mulher, pode ser o judeu e o homossexual. Em sua meditação sobre a alteridade na literatura moderna e romântica, Hans Mayer, ao falar do segundo sexo e seus marginalizados, se refere às femmes fatales do romantismo, todas "inatingíveis, infantis, fatais, impossíveis de serem afetadas pela palavra e pela razão masculina". E adiante: "[...]só se pode discutir a femme fatale como se 'discute' bruxaria". Em relação ao homossexualismo a estrutura de marginalização se retoma com matizes tão sombrios quanto no caso da mulher. E quanto aos judeus, algo próximo se apresenta. Não irei analisar o livro de Mayer, rico quando se trata de perceber as armadilhas supostamente libertárias dos que se erigem em "salvadores" da alteridade, mas que de fato instituem dominações mais sutis dos que as anteriores, mantendo a capa de silêncio sobre os que não entram na senda do normal, comum, correto (Mayer, 1989).
Tomemos a exigência platônica de silêncio dos não especialistas em filosofia ou música (para Platão, as duas ordens se confundem). Poderíamos nos espantar se no século XVIII, na Inglaterra e França, o teatro fosse destinado ao consumo da elite nobre ou econômica. Os lugares são caros. Mas existe espaço para os "negativamente privilegiados" (o termo é de Max Weber) como em Paris, na plateia, os lugares em pé para os da classe média, estudantes e intelectuais. Em 1781 a Comédie-Française se instala em novo edifício e a plateia é provida de assentos. Com a nova disposição do mobiliário, aumenta o silêncio no teatro. Como diz um comentador, "não existem mais gritos vindos do fundo da sala, nem gente que comia em pé, assistindo às peças. O silêncio do público parecia diminuir o prazer de assistir a uma representação. Essa reação nos permite adivinhar o sentido da participação do público". Na Inglaterra, os nobres tinham assento no palco. Eles faziam o que bem quisessem naquele espaço: gritavam para seus amigos, misturados aos atores. Havia uma troca de conivências, não apenas entre atores e nobres, como entre atores e público geral. Este, por sua vez, mantinha o autocontrole. "Era objetivo e muito crítico em relação aos atores e atrizes que o faziam chorar. O público queria interferir diretamente com o ator; e o fazia graças a um sistema de 'pontos' e um sistema chamado settling (literalmente, regulação de contas)". Voltando a Paris, ainda no século XVIII. Numa das Cartas Persas o herói de Montesquieu vai à Comédie-Française e ali "não distingue os atores na cena e os espectadores na sala. Todo mundo se exibe, assume poses, se diverte. A distração, a tolerância cínica, o prazer partilhado em companhia dos outros, tais são alguns dos sentimentos contidos na concepção comum do homem ator"17.
No século XIX as mutações do espaço social e das artes permitem o desdobramento dos indivíduos entre atores e não atores.
"Quando a personalidade irrompe no domínio público, a identidade do homem público se desdobra. Certa minoria de indivíduos continua a se exprimir ativamente, perpetuando a tradição de homem ator instaurada no Antigo Regime. No meio do século XIX, essa minoria é constituída de atores profissionais. Mas, paralelamente, se forma uma nova espécie de espectador. Esse espectador não participa da vida pública, mas se abriga para melhor observá-la. Pouco seguro de seus próprios sentimentos [...] este homem, à diferença do homem do Antigo Regime, tem sua realização pública não mais em seu ser social, mas em sua personalidade. Se ele se mantém disciplinado e sobretudo silencioso em público, ele viverá coisas que não pode viver por si mesmo".
O espectador, indivíduo isolado, ao se tornar passivo, espera sentir mais. "Olhar a vida que passa em silêncio, eis o que significa para este indivíduo a 'liberdade'". Então, "observadores silenciosos frequentam o espaço público [...] as necessidades projetadas sobre o ator se transmutam, os espectadores se fazem voyeurs. Eles se isolam uns aos outros e se liberam por uma espécie de fantasia ou sonho desperto, olhando a vida que passa na rua. Temos aqui, em germe, o paradoxo moderno do isolamento no interior da visibilidade" (Sennett, 1979, pp. 152 e segs.).
Em Ser e Tempo, não por acaso, antes de entrar no domínio do falatório, Heidegger examina o olhar. Como sempre, seu empréstimo não confessado a Platão e a Plutarco faz o leitor não perceber que se trata, no caso do olhar, do velho tema da vista maldosa que busca ver o que se passa na casa alheia, ignorando a própria. Em Plutarco, os olhos reúnem duas formas de atenção: a pesquisa (zetesis) e a curiosidade, a chamada "polupragmosine". Enquanto o zetetés, o investigador, usa os olhos para captar o permanente e atinge um conhecimento dificilmente comunicável, o curioso atarefado recolhe informações sobre tudo e todos, sobremodo das coisas e atos sem relevância para o Bem. Ao redor da mesma imagem, vemos se produzir, na crítica do conhecimento e da moral, duas atitudes diferentes. A mente curiosa, afirma Plutarco, é como a Lâmia mitológica. "Quando dormia em sua casa, ela depositava os olhos num vaso. Saindo, Lâmia os colocava em seu rosto e podia ver". Todos os homens, quando não se dedicam à pesquisa e à virtude, são Lâmias: "[...] cada um de nós... pratica a indiscrição maldosa com o olho, esquecendo as próprias faltas e taras por ignorância (agnóia), porque não tem o meio de vê-las e de esclarecê-las" (De Curiositate, 2).
A pesquisa leva ao descobrimento de tudo, trazendo para os olhos as formas permanentes das coisas. Enquanto isso,
"curiosidade é a paixão de conhecer o escondido e o dissimulado. Mas ninguém esconde o bem que possui. Às vezes nos atribuímos um bem que não temos. O curioso, em seu desejo de saber o que vai mal entre os demais, é tomado pela maldade, irmã da inveja e da calúnia. Porque a inveja é a tristeza causada pelo contentamento alheio e a maldade é alegria pela sua infelicidade. Ambas nascem de uma cruel paixão, a ruindade" (De Curiositate, 6).
Plutarco tem cura para a curiosidade: a própria pesquisa. Quem se acostumou ao mal curioso deve curá-lo de modo homeopático. O tratamento consiste em "transferir a curiosidade, transformando-a em gosto da alma por assuntos honestos e agradáveis: seja curioso do que se passa no céu e na terra, nos ares e no mar, os segredos da natureza, pois esta não se enraivece quando eles são roubados..." (De Curiositate, 5)18.
Finalmente recordo o imenso autoritarismo de todos os projetos que desejam impor silêncio aos que escapam ao controle da boa norma. Poderia falar sobre a censura, o segredo, molas da razão de Estado moderna, sempre com o fito de fornecer aos governantes maior força física, impostos, leis contra os governados. Carl Schmitt, jurista próximo de Heidegger, chama a burguesia de "classe discutidora"19 retirando esse epíteto de Juan Donoso Cortés, autor do Discurso sobre a Ditadura. Tal diatribe inspirou o fascismo, o nazismo e todas as ditaduras que infernizaram o século XX na América do Sul.
"Uma boa parte do prestígio de que gozam as ditaduras deve-se ao fato de lhes ser concedida a força concentrada do segredo, que nas democracias se reparte e se dilui entre muitos. Com sarcasmo diz-se que nas democracias tudo se dilui em palavrório. Todos falam demais, todos se intrometem em tudo, nada acontece que não se saiba previamente. Tem-se a impressão de que a queixa se origina da falta de decisão, quando na verdade a decepção tem sua origem na falta de segredo. Estamos dispostos a tolerar muitas coisas, desde que elas sejam impostas com violência e em segredo".
Essas frases tremendas de Elias Canetti são precedidas de outras, não menos temíveis no capítulo intitulado "O Segredo" de Massa e Poder: "Uma das características do poder é a distribuição desigual do calar das intenções. O poderoso cala, mas não permite que os demais se calem. Ele mesmo deve ser o mais reservado de todos. Ninguém pode conhecer suas convicções nem suas intenções". E adiante, ao falar dos tiranos antigos e modernos, diz Canetti (1986, pp. 326 e segs.) que
"[...] o poder do silêncio sempre é altamente apreciado. Significa que se é capaz de resistir aos incontáveis motivos externos que nos induzem a falar [...] o silêncio pressupõe um conhecimento exato daquilo que não se diz. Como na prática não se emudece para sempre, faz-se uma opção entre o que se pode dizer e o que não se diz. Silencia-se o que melhor se conhece. É algo mais preciso e também mais precioso [...] o silêncio isola, quem cala está mais solitário do que os que falam. Assim, atribui-se a ele o poder da singularidade. Ele é o guardião do tesouro e o tesouro está dentro dele".
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TAILLARDAT, J. Les Images d'Aristophane. Paris, Le Belles Lettres, 1965.Por motivos editoriais, as notas se encontram no final do texto. [ Links ]
NOTAS
1 Um trabalho sugestivo, ainda em nossos dias, é o de M. H. Abrams (1971). Em meu livro, Silêncio e Ruído, a Sátira em Denis Diderot (Romano, 1997), analiso o campo em questão. Antes dele, no livro Conservadorismo Romântico (Romano, 1997) e em Corpo e Cristal, Mar Romântico (Romano, 1985), examino o plano mais amplo em que o problema da fala e da imagem se instala. Quanto à ordem do discurso teológico e da imagem, a discuto em Brasil, Igreja Contra Estado (Romano, 1979). Autores como Alcir Lenharo (1986) ampliaram as minhas observações em sentido histórico, aplicado à produção cultural brasileira.
2 O trecho citado encontra-se no capítulo cujo título é "O Poder das Palavras".
3 Peri adoleskias (De garrulitate). Uso aqui a edição das Moralia da Loeb Classical Library, volume VI, trad. W. C. Helmbold (Cambridge, Harvard University Press, 1970), pp. 396 e segs.
4 Brincando com termos de medicina, Plutarco diz que o nome da doença do falador é asingesia, ou seja, impossibilidade de manter silêncio. O outro lado da mesma doença seria a anekoía, inabilidade para escutar. Resulta numa doença, também nomeada por Plutarco, a diarréousi, diarreia da língua. Nota de Helmbold.
5 Sobre o tema, a bibliografia é imensa. Não pretendo discutir tais pontos que exigem competência e cautelas próprias. Uma análise cuidadosa encontra-se nos textos de Pedro Lain Entralgo. Refiro-me especialmente ao seu livro: La Relación Médico-enfermo. Historia y Teoria (Entralgo, 1983), "[...] o silêncio é como o húmus em que germinam e assumem sentido as palavras pronunciadas, quando estas são algo mais do que simples algaravia gárrula, quando a fala, Rede diria Heidegger, não se transformou em Gerede (palavrório)" (Entralgo, 1983, p. 313). Outro escrito do mesmo autor trata desse problema: La Curación por la Palabra en La Antiguedad Clásica (Entralgo, 1987). Particular proveito para nosso tema fornecem as páginas l54 e segs. "[...] para Platão, o agente catártico que a 'doença da alma' requer é a palavra idônea e eficaz. Impondo evidências ou infundindo persuasões, a expressão verbal de quem saiba ao mesmo tempo ser professor e médico - 'psicagogo', diria Platão - é capaz de reordenar as almas que sofrem de ametria e reintegrá-las em seu verdadeiro ser" (Entralgo, 1987, pp. 154-5). Para a imagem, cf. Louis P. (1945): "Le Discours". Também Taillardat (1965), "Le Flot des Paroles" e "Le Bavardage".
6 Plutarco cita Aristóteles que, na Ética a Nicômaco (Livro IX, 1166 a31, 1170 b7), afirma: "O homem bom experimenta vários sentimentos para consigo mesmo e porque ele sente para com o seu amigo do mesmo modo que sente por si mesmo (porque um amigo é um outro eu), a amizade também é pensado como consistindo em um ou outro desses sentimentos, e julga-se a posse deles como um teste de um amigo". Uso a edição da Loeb Classical Library (Aristotle, 1990, p. 535).
7 Entre muitos escritos sobre o assunto, cf. Alan Partington (2002).
8 Desse enunciado, uma tradução bem fundamentada encontra-se no Tractatus Logico-Philosophicus de Lugwig Wittgenstein: "Wovon man nicht sprechen kann, daruber muß man schweigen". Na tradução de C. K. Ogden: "Whereof one cannot speak, thereof one must be silent". Cf. no seguinte site: http://www.kfs.org/~jonathan/witt/tlph.html. Para uma análise interessante, cf. Sandra Laugier: "Le Secret et la Voix du Langage Ordinaire", in Modernités, Dossier Dire le Secret (2002). Também no seguinte endereço eletrônico: http://formes-symboliques.org/article.php3?id_article=154#nh62. Cf. também, em outros parâmetros, Emmanuel Rouillé, "Le Secret et l'Alétheia Grecque", Le Portique, Recherches 2 - Cahier 2 2004, endereço eletrônico: http://leportique.revues.org/document465.html.
9 "Aujourd'hui [...] il règne dans nos mŒurs une vile et trompeuse uniformité, et tous les esprits semblent avoir été jetés dans un même moule: sans cesse la politesse exige, la bienséance ordonne: sans cesse on suit des usages, jamais son propre génie. On n'ose plus paraÎtre ce qu'on est ; et dans cette contrainte perpétuelle, les hommes qui forment ce troupeau qu'on appelle société, placés dans les mêmes circonstances, feront tous les mêmes choses si des motifs plus puissants ne les en détournent. [...] Les soupçons, les ombrages, les craintes, la froideur, la réserve, la haine, la trahison se cacheront sans cesse sous ce voile uniforme et perfide de politesse, sous cette urbanité si vantée que nous devons aux lumières de notre siècle. On ne profanera plus par des jurements le nom du maÎtre de l'univers, mais on l'insultera par des blasphèmes, sans que nos oreilles scrupuleuses en soient offensées. On ne vantera pas son propre mérite, mais on rabaissera celui d'autrui. On n'outragera point grossièrement son ennemi, mais on le calomniera avec adresse. Les haines nationales s'éteindront, mais ce sera avec l'amour de la patrie. A l'ignorance méprisée, on substituera un dangereux pyrrhonisme. Il y aura des excès proscrits, des vices déshonorés, mais d'autres seront décorés du nom de vertus ; il faudra ou les avoir ou les affecter." Rousseau: no texto premiado pela Academie de Dijon (1750): Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer les mŒurs. E na Carta a d'Alembert: "Si nos habitudes naissent de nos propres sentiments dans la retraite, elles naissent de l 'opinion d'auttrui dans la société. Quando on ne vit pas en soi, mais dans les autres, ce sont leurs jugements qui réglent tout, rien ne parait bon ni désirable aux particuliers que ce que le public a jugé tel, et le seul bonheur que la plupart des hommes connaissant est d'etre estimés heureux". Pleiade, V. V (Paris, Gallimard, 1995), páginas 61-62. No Discurso sobre a Desigualdade: "le sauvage vit en lui-même; l'homme sociable toujours hors de lui ne fait vivre que dans l'opinion des autres, et c'est, pour ainsi dire, de leur seul jugement qu'il tire le sentiment de sa propre existence". Comentário: o homem social se esvazia nas múltiplas opiniões. Cf. P. Burgelin (2005). Também, A. Hartle (1983).
10 Exemplo excelente dessa parolagem é indicado por Thomas Hobbes: "Na maioria das pessoas [...] o costume tem um poder tão grande que se a mente sugere uma palavra inicial apenas, o resto delas segue-se pelo hábito e não são mais seguidas pela mente. É o que ocorre entre os mendigos quando rezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e de tal modo, como aprenderam com suas babás, companhias ou seus professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às palavras que enunciam. Como aprenderam, ensinam a posteridade. Se levarmos em contra os enganos do sentido e como os nomes foram inconstantemente determinados, o quanto estão submetidos ao equívoco e o quanto se diversificam pela paixão (raramente dois homens concordam sobre o chamado bem e mal, o que é liberalidade, prodigalidade, valor ou temeridade) e o quanto os homens são sujeitos ao paralogismo ou falácia no raciocínio, posso concluir de certa maneira dizendo que é impossível retificar tantos erros de um só homem, como devem proceder daquelas causas, sem começar de novo dos verdadeiros fundamentos iniciais de todo conhecimento, os sentidos; e, em vez de livros, ler ordenamente as nossas próprias concepções; nesse sentido eu entendo o nosce teipsum" (The Elements of Law, 1, 5. "Of Names, Reasoning, and Discourse of the Tongue". Electronic Text Center, University of Virginia Library - http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/Hob2Ele.html).
11 De Platão até hoje, a opinião (doxa) deve ser combatida pela ciência. Em Hegel, a opinião pública (Die öffentliche Meinung) ao mesmo tempo carrega elementos verdadeiros e incertos, produtos da raciocinação sem profundidade (o famoso Räsonieren, forma inferior da Razão). Uma pessoa ponderada não leva a sério a opinião pública, pois a própria opinião pública engana a si mesma. É preciso apreciá-la, pensa Hegel, mas também desprezá-la. Para que algo verdadeiro ou grande seja feito, é preciso que o sujeito tenha independência (Unabhängigkeit) diante dela. Ligada à opinião pública, a imprensa é o lugar do limitado, contingente, com infinita diversidade de conteúdo e modos de falar. O modo científico rompe com as alusões, as palavras postas pela metade. Ele exige uma expressão sem equívoco (cf. Hegel, 1975, pp. 318 e segs.). Estamos a um passo da noção de ideologia e de opinião pública enquanto falsa consciência (cf. J. Habermas, 1984, p. 149). E também Norberto Bobbio (1996), que compara nesse livro as teorias da ideologia em Marx e Pareto.
12 "À garrulice se apega um mal que não lhe é inferior, a curiosidade (periergia): deseja-se saber muito, para muito falar. São especialmente histórias de segredo e de coisas escondidas, das quais se deseja encontrar os traços enfiando as fuças em todas as direções [...]. Diz-se que as enguias do mar e as víperas morrem ao dar a luz aos seus filhotes; assim, os segredos, ao escapar, arruinam e destroem os que não os guardam" (cf. Plutarque, 1975, p. 242).
13 Além de Jean Dumortier, cf. Adkins (1976, pp. 301-27).
14 "[...] hoia kleptousi toichôruchousi, ballantiotomousi, lôpodutousin, hierosulousin, andrapodizontai: esti d' hote sukophantousin, ean dunatoi ôsi legein, kai pseudomarturousi kai dôrodokousin" (República, IX, 575 b). Uso o texto do site Perseus. "Por exemplo, roubam, arrombam as muralhas, surrupiam as bolsas, assaltam os passantes, fazem captura e tráfico de escravos e, às vezes, quando possuem o dom da palavra, tornam-se sicofantas, falsas testemunhas e se deixam subornar" (Platão, 2006, p. 345). E também a tradução francesa de Leon Robin, Oeuvres Complètes de Platon (Paris, Gallimard, 1953, p. 1.180).
15 Analiso esse ponto em "A Mulher e a Des-razão Ocidental" (Romano, 1985),
16 Em Brasil, Igreja contra Estado, me levanto contra os "libertários" eclesiásticos ou leigos que se proclamam "a voz dos que não têm voz". Caracterizo tal atitude como ventriloquismo, interessado no poder que, hipócrita, sequer confessa tal alvo. Como diz Elias Canetti, "nunca vi um só homem deblaterando contra o poder, sem o creto desejo de possuí-lo".
17 Todos esses pontos são extraídos de Sennett (1979).
18 Utilizo a edição Belles Lettres: De la Curiosité, traduzido por Dumortier (Plutarque, 1975, pp 266 e segs.). Na Encyclopédie, o verbete "Curiosité" é quase todo extraído de Plutarco pelo Chevalier de Jaucourt: "A curiosidade inquieta de saber o que os demais pensam de nós, é o efeito de um amor próprio desordenado. O imperador Adriano, que nutria ternamente esta paixão, deve ter sido um mortal muito infeliz. Se tivéssemos um espelho mágico que nos revelasse a toda hora as ideias dos outros sobre nós seria bom quebrá-lo sem usá-lo. (Este enunciado repete Francis Bacon, RR). A curiosidade de algumas pessoas que sob pretexto de amizade informam-se com avidez sobre nossos assuntos, projetos, sentimentos, e segundo o poeta: Scire volunt secreta domûs, atque inde timeri... é um vício vergonhoso. [...] Mas prefiro me fixar na curiosidade digna do homem e a mais digna de todas é o desejo de aumentar os conhecimentos, seja para elevar o espírito rumo às mais altas verdades, seja para torná-lo útil aos concidadãos".
19 Cf. Antonio Bento, "Culto Público do Privado e Segredo no Estado de Direito Liberal", Universidade da Beira Interior (na Internet).
Sobre o segredo e o silêncio
Roberto Romano
Professor do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e autor de, entre outros, O Caldeirão de Medeia (Perspectiva)
Alguns pensadores como Paul Virillo definem a vida contemporânea com o signo da velocidade. Outros a determinam pelo vínculo entre a ordem particular e pública com o espetáculo. O fato é que as duas vias se encontram quando refletimos sobre o barulho que nos enlouquece a cada instante. Estradas e ruas insuportáveis ao ouvido, divertimentos que fariam o alarido das bacantes parecer murmúrio, cultos religiosos efetuados aos berros, tanto em igrejas ortodoxas quanto nas reformadas, tom de voz humana mais próximo aos urros das selvas. Não apenas a nossa cultura se pauta pela espacialização: o sentido do tempo, a escuta, se perde a cada átimo numa ciranda infinda. Em tal cacofonia, o sentido lógico das palavras se dissolve com rapidez inédita e percebemos o quanto o discurso, em todos os âmbitos, se banaliza e decai nas formas da propaganda e da histeria. Não existem mais comícios políticos, são poucas as procissões religiosas, mas o ritual satânico da incomunicação anuncia o reinado de máquinas inteligentes e usuários "humanos" a cada hora menos atilados. As mônadas, dizia Leibniz, não têm portas nem janelas. No mesmo ímpeto em que nos fechamos numa jaula definida como tecnosfera, perdemos a capacidade de falar e de ouvir. As linhas que seguem pretendem ser uma pequena meditação sobre tal lado de nossa existência, em pleno século XXI.
A poesia contemporânea exprime o silêncio numa espécie de paranoia da palavra escrita, desconfiança renovada em indefinidos modos desde Platão. Sabemos a crítica do faraó Thamus ao deus Teuth, o fabricante das letras. Sócrates, no Fedro (pp. 274-61), recorda que em tempos pretéritos muitos sábios escreveram sobre a retórica, incluindo a refinada Safo. No entender de Sócrates, um de seus interlocutores, Lísias, escreve em demasia. É preciso aprender a julgar os textos para não lhes dar consideração maior do que a merecida. Os estadistas, pessoas prudentes, não costumam escrever pois as suas linhas poderiam ser examinadas com muito rigor pelos pósteros. Se escrevem, tentam ser exímios na arte das letras. É assim que Sócrates enquadra o invento chamado escrita. Esta seria ideada pelo deus Teuth que, por sua vez, a comunicara ao faraó Thamus, soberano de Tebas. O rei não se entusiasma com o feito e diz temer que a escrita, em vez de tornar as pessoas sábias as prejudique, fazendo-as crer que pensam o que enxergam nas letras. E temos o mais conhecido símile entre artes e texto, lugar comum da Grécia clássica, entre palavras redigidas e as artes: "Os produtos da escrita são como os da pintura. Interroguem os quadros; eles responderão por majestoso silêncio. Interroguem os livros; eles sempre darão a mesma resposta. Vocês podem acreditar, ao escutá-los, que eles são muito sábios. Mas, uma vez escrito, um discurso gira por todos os lados, nas mãos dos que o compreendem como daqueles para os quais eles não foram escritos. Ele nem sabe a quem falar ou diante de quem calar. Desprezado ou atacado injustamente, ele sempre precisa de um pai que o socorra; pois ele não resiste nem ajuda a si mesmo".
O poeta, o prosador, todos corrigem o que escrevem. Mas todos eles precisam da palavra interior, e devem cultivá-la com enorme atenção para merecer o nome de filósofo, o amante da sabedoria.
Saltemos os milênios que nos separam de Sócrates e consultemos Camille Mauclair, o amigo de Mallarmé: "O credo do artista moderno é o silêncio". Também Octavio Paz: "A atividade poética nasce do desespero diante da impotência da palavra e culmina no reconhecimento da onipotência do silêncio". O mundo moderno, ainda segundo Paz, é presa do "discurso do afásico". Com o esfacelamento da teologia e do sistema newtoniano do universo, a escrita que deles falava também se desintegra, sendo que hoje a função profissional do escritor é a de ser "jardineiro de epitáfios". Esses testemunhos foram recolhidos por Diana C. Niebylski (1993) num bonito livro (se é possível, com tais confissões, escrever e publicar...) intitulado O Poema no Fio da Palavra: os Limites da Linguagem e o Uso do Silêncio na Poesia de Mallarmé, Rilke e Vallejo. Na verdade, tal desagregação da escrita própria à racionalidade mecânica que ruma para o silêncio teve forte impulso no romantismo e, mesmo, nas Luzes no século XVIII1.
Ao se referir às superstições verbais (o desejo de manter o próprio nome em segredo, por exemplo), autores que publicaram nos inícios do século XX afirmam que o mesmo século "sofre de uma forma ainda mais penosa do que qualquer época anterior" naquele ponto.
"Devido ao desenvolvimento dos métodos de comunicação e à criação de muitos sistemas simbólicos especiais, a forma da enfermidade se alterou consideravelmente; e, além da peculiar sobrevivência da apologética religiosa, toma agora formas ainda mais insidiosas que no passado. As influências que favorecem sua ampla difusão se definem na tediosa complexidade do aparato simbólico disponível hoje; a posse, entre os jornalistas e letrados, de imenso vocabulário semitécnico, sua falta de oportunidade ou vontade de buscar o uso adequado; o êxito de pensadores analíticos em campos limítrofes aos das matemáticas, tornando ainda mais pronunciado o divórcio entre símbolo e realidade e mais atrativa a tendência à hipóstase; a extensão de um conhecimento das formas mais toscas da convenção simbólica (os três R ingleses, ler, escrever, aritmética) combinado com um alargamento do abismo entre o público e o pensamento científico de sua época; e finalmente, a exploração, com fins políticos e comerciais, da imprensa, mediante a disseminação e reiteração dos clichês" (Ogden & Richards, s.d., p. 54)2.
Com esse comentário, somos conduzidos a outro limite da escrita, da fala e do silêncio, o equívoco. A filosofia, desde seus primórdios, tenta arrancar o equívoco da linguagem comum e dos enunciados científicos. No "Plano de Universidade para o governo da Rússia", Diderot imagina a geometria como "a melhor e a mais simples de todas as lógicas, a mais própria para fornecer inflexibilidade ao juízo e à razão". Os equívocos da língua seriam reparados pelas matemáticas: "[...] se nossos dicionários fossem tão bem feitos ou, o que é o mesmo, se as palavras usuais fossem tão bem definidas quanto as palavras 'ângulos' e 'quadrados', sobrariam poucos erros e disputas entre os homens. É a esse ponto de perfeição que todo trabalho sobre a língua deve tender". O pensador logo percebeu que o seu alvo, como o de Platão, Aristóteles ou dos filósofos medievais e modernos, era inatingível. Mas a tarefa de sanar a língua escrita e falada continua hoje, em setores como a filosofia e a lógica, em escritores como Carnap, Quine, Wittgenstein e outros. Ainda agora, no entanto, em especial no plano da ética e da política, segue válida a advertência diderotiana:
"[...] é do idioma de um povo que precisamos nos ocupar, quando queremos dele fazer um povo justo, razoável, sensato. Isto é tão importante que, se o senhor refletir um momento sobre a rapidez incompreensível da conversa, o senhor conceberá que os homens não profeririam vinte frases num dia, se eles se impusessem a necessidade de ver distintamente em cada palavra por eles dita qual é a ideia ou a coleção de ideias que a ela se apegam" (apud Romano, 1989).
Em Ser e Tempo (§ 37) Heidegger analisa a fala equivocada (Die Zweideutigkeit) não apenas entre cientistas e público, mas na própria "comunidade acadêmica". O saber, na era de sua divulgação máxima, tornou-se dificilmente distinto das suas várias expressões vulgares. Com a imprensa "tudo assume a aparência de ter sido o verdadeiro captado, colhido, expresso, mas no fundo, nada o foi". Num mundo onde a informação se acelera ao máximo, a parolagem dogmática de intelectuais e jornalistas é a norma:
"Cada um não apenas conhece e discute o que se passou e o que está vindo, mas cada um sabe também falar sobre o que deveria ocorrer, sobre o que ainda não ocorreu, mas deveria 'evidentemente' ser feito. Cada um sempre farejou e pressentiu de antemão o que os demais farejaram e pressentiram. Este modo de seguir pelos traços e pelo ouvir-dizer [...] é insidioso o bastante para que o equívoco faça entrever ao existente possibilidades que, ao mesmo tempo, ele abafa no germe".
Na sociedade da informação os termos científicos e acadêmicos circulam de modo imediato (Heidegger, 1967, pp. 173 e segs.).
Heidegger, como boa parte dos filósofos contemporâneos, se nutre de Platão e seguidores, embora faça parecer que os combate. Citarei dois textos dos mais influentes na formação da ética ocidental, do helenismo aos nossos dias. São tratados complementares de Plutarco, um sobre a fala em excesso e imprudente e outro sobre a curiosidade. No primeiro3 o médico e filósofo propõe remédios para a cura do equívoco e da garrulice. Trata-se de uma tarefa quase impossível, pois o tratamento supõe o uso do remédio (pharmakon) que, no adoecido de palavrório, perde validade. De fato, o que fala em demasia gastou o poder do logos. Para a sua cura é essencial o mesmo logos. Como fazê-lo ouvir a razão (na língua grega, logos e razão identificam-se) se ele fala e não ouve, não arrazoa antes de jogar palavras ao vento? Tal é o primeiro sintoma, diz Plutarco, do nosso adoecido: "[...] a língua mole torna-se impotência do ouvido". Mas é pior: a surdez do falador é deliberada, o que o faz criticar a natureza que lhe deu apenas uma língua e dois ouvidos4. Na parolagem sem freios o remédio a ser usado é o próprio veneno: trata-se do logos, ele mesmo doente. Se as demais insanidades podem ser curadas pela palavra ou podem ser entendidas5, nesse caso a situação é "embaraçosa", como traduz Amyot, ao ler o paradoxo inicial do texto plutarquiano. O logos adoecido, fluxo instável, não tem solidez alguma. No acometido de logorreia ele é menos remédio e mais veneno. Naquelas pessoas só a boca opera, enquanto o ouvido permanece trancado.
A palavra tem como serventia trazer credibilidade. Se ocorre a inflação de palavra ela perde força. O perigo maior é quando à garrulice somam-se outras doenças como o uso do vinho. "O que está no coração do sóbrio está na língua do ébrio". Dos locais a serem temidos quando um governo possui tagarelas a seu préstimo, a barbearia é a mais ameaçadora. O rei Arquelau respondeu assim ao barbeiro gárrulo que lhe perguntou como desejava cortar o cabelo: "Em silêncio!". Marius dominava a região de Atenas mas um bando de velhotes, conversando no barbeiro, deu a entender aos espiões que um setor da cidade estava desguarnecido. Sylla, sabedor do ponto fraco, ataca à noite e quase arrasa a cidade, a qual ficou cheia de cadáveres a ponto de um riacho de sangue invadir o Cerâmico. Quando ocorreu a conspiração para assassinar Nero, um inconfidente, ao ver passar certo prisioneiro rumo à cela, cochichou para o infeliz que ele deveria tudo fazer para resistir um dia a mais, pois então estaria libertado. O condenado achou de bom aviso contar o que ouviu para Nero. O resto é conhecido. Conselho de Plutarco:
"Se deixas escapar o segredo para depositá-lo em outra pessoa, recorres à discrição alheia, mas renuncias à tua. Se ele se parece contigo, tua perda é justa; se melhor do que tu, salvas-te contra toda lógica ao encontrar, para teu bem, um outro mais seguro do que a tua pessoa, 'mas o amigo é um outro eu!'6. Sim, mas ele também possui um amigo, a quem confidenciará... e que confiará em outro... [...] a palavra que permanece na primeira pessoa é segredo de verdade, mas desde que passou para uma segunda adquire o estatuto de rumor público".
O texto de Plutarco traz muitos exemplos unidos aos boatos políticos que hoje, na política dominada pela fala inglesa, é tarefa dos spin doctors7. O Senado romano manteve reuniões secretas e a mulher de um senador exigia de seu marido informações sobre os encontros. O político finge anuir e diz-lhe o "segredo": tratava-se de uma ave com lança e capacete dourado, que surgira na cidade. O rumor seguiu até o fórum, antes do homem que o inventou. Para punir sua mulher, ao chegar em casa ele fingiu que a coisa era séria e, pela inconfidência, seria exilado. "Que desejas partilhar comigo?". A resposta do poeta Filipides ao rei Lisímaco é a correta: "Tudo, menos teus segredos".
Enfim, a "cura" do palavrório, segundo Plutarco, não pode ser conseguida de modo violento, mas criando-se outros hábitos. O autor insiste nesse ponto, essencialmente ético: o falador deve ser treinado para ficar em silêncio, prestar atenção ao dito (treinar o ouvido) e fugir das conversas gratas aos faladores. Se militar, ele deve ser afastado das narrativas heroicas e assim por diante. Diríamos que os pescadores devem ser impedidos de se imiscuir em histórias de pescaria... Isso porque se entram no fluxo discursivo predileto podem falar mais do que o necessário para engrandecer e embelezar o relato, o que dirige a língua ao exagero sem o freio do pensamento. Basófias são fonte segura de segredos que se escoam. Um conselho: quando não se puder deixar de vez as ondas palavrosas, tente-se passar da oralidade à escrita. A literatura, embora ainda possa exercer a indiscrição (certo filósofo foi chamado de "pena que berra" em Atenas), pode ser mais controlada pelo autor. Outra cura: fazer o linguarudo frequentar pessoas dele diferentes, deixando o círculo dos seus iguais. O respeito de opiniões ponderadas lhe fornecerá o hábito de calar.
Além da cura ética (mudança da postura, héxis), Plutarco recomenda reflexão e vigilância antes de falar. Diante da possível enunciação, perguntar sempre: "Qual o propósito? É urgente? Que se ganha ao falar? O que se perde?". A via régia foi aberta por Simonides, o poeta: nos arrependemos com frequência do que falamos, mas nunca do que silenciamos8. O treino tudo pode dominar. Muitos pensadores modernos, para falar do segredo e da necessária disciplina que ele exige, usam Plutarco mas esquecem de indicar a fonte. É o que se passa com Heidegger. Em sua análise da comunicação moderna o filósofo sublinha a perda radical do segredo na publicidade. No mundo em que reina o "se", todos os indivíduos estão sujeitos à discrição alheia. O que em Plutarco era doença de alguns, em nossos dias tornou-se pandemia. Mas o alheio, hoje, não possui determinação certa, pode ser alguém e ninguém ao mesmo tempo. Quando o indivíduo fala algo, ou faz, afirma de imediato a culpa como advinda "dos outros". Trata-se de um truque bem conhecido pois a fórmula "os outros" recolhe também quem fala ou faz. "Os outros" surgem na imprensa, no ônibus, nos passeios, nas reuniões sociais, e neles todos são dissolvidos, o ego incluído. Trata-se de uma indiferença ou indistinção generalizada na qual pouco importa o que eu ou você fala, porque ambos "falamos" o que "se fala" e "como se" fala. O discurso perde sabor individual. Mesmo no "escândalo" não ocorre falha entre o público e o privado: ambos são diversificações do indistinto modo de agir e julgar preestabelecido, o "se" (fala-se, diz-se, ouviu-se dizer que, etc.). Julgamos escandaloso o que "se" (o público) julga escandaloso.
Heidegger, como indiquei, identifica na mídia a grande força de pasteurização ou esmigalhamento dos indivíduos e da linguagem. Na mídia nada é secreto porque nela inexiste o contato efetivo com o que é, mas apenas com a média das percepções e da linguagem sobre eventos e seres. A mediania não desce fundo nas coisas e palavras, ela inscreve-se num horizonte medíocre que "facilita" a compreensão de todos. Desse modo, a mídia não admite exceções, ela é democrática e igualitária. Assim, ela não autoriza a surpresa diante de novos conhecimentos. Se aparece algo assim, ela sempre tenta "mostrar" que o saber alegado é antigo. Na mídia não existe reconhecimento do que foi conquistado em muito tempo e pesquisa. A novidade é a sua regra, o instantâneo, o seu procedimento, o público é seu alvo e pressuposição. Com a mediania, "todo segredo perde a força e o mistério. A preocupação da média evidencia uma nova tendência do existente (Dasein), e nós a chamaremos nivelamento de todas as possibilidades de ser". Esse nivelamento constitui a essência da "opinião pública". O referido público, como o freguês no mercado, sempre está com a razão e "decide" a correta interpretação de tudo: aplausos mais ou menos longos decidem a verdade, a beleza, a maestria técnica dos candidatos nos programas de auditório. O mesmo ocorre nas pesquisas de opinião pública que decidem quais são os melhores aspirantes ao governo do Estado. O que é o "público" no qual imperam os hábitos encobertos pela forma do "se"?
O "se" é a impessoalidade coletiva que "descarrega" os indivíduos de si mesmos, deixando-os sem qualquer responsabilidade ou culpa. Eles "fazem" ou "fizeram" o que "se" faz. Desse modo, nada é sério para os indivíduos, nada é grave, tudo é frívolo. Eles jamais têm culpa e tudo é objeto de risadas, comentários, falatórios, fofocas. A covardia penetra o comportamento mediano obediente ao "se". Nada, ali, que não pudesse encontrar em Rousseau uma descrição cortante9. Quanto mais o "se" parece manifesto em toda parte, mais ele é imperceptível e dissimulado. E agora entramos na parte de Ser e Tempo que retoma sem citar o texto de Plutarco indicado acima, o De Garrulitate. O § 35 escrito por Heidegger tem a mesma estrutura e andamento igual ao do tratado plutarquiano. Indiquei, ao passar por aquele texto, que o primeiro ponto nele inscrito é a dificuldade de curar o palavrório, visto que a doença está inserida no instrumento da cura, o logos que deve ser ouvido pelo enfermo. Este não escuta porque tem toda a sua alma voltada para a língua. Heidegger, no início de seu parágrafo, distingue entre escutar e ouvir.
Ouvir e compreender agarram-se ao que se diz, enquanto se diz. Não ocorre preocupação imediata com o objeto, com o que se diz. Quando alguém fala sem prestar atenção ao falado, apenas transmite e repete a fala. Quanto mais pessoas ouvem um discurso mais ele toma caráter autoritário, "isto é assim porque assim se diz". A parolagem chega ao máximo quando se rompe todo elo entre a palavra e o objeto que ela deveria colher. E a parolagem oral ou escrita é nutrida por leituras maquinais. Temos a compreensão média, repetitiva, pública10. Tal forma de compreender é dogmática e dispensa todas as distinções entre a fala e os objetos. Ela é a verdade em andamento. A garrulice não dissimula, não se esconde em nenhum segredo porque ela mesma já é dissimuladora. Quando um linguarudo fala ele esconde sem saber ou desejar o que deveria ser dito, joga um véu de sons acima dos entes que deveriam ser pensados. Quando fala o tagarela, ele impede toda discussão posterior. "Tudo está dito." E nada deve ser perguntado. Desaparece o segredo no mais banal, na opinião pública11.
No De Garrulitate Plutarco afirma que a doença próxima, gêmea do falatório, é a curiosidade12. O tratado em que o moralista analisa o tema possui acentuado sentido político entre os gregos. Como indica Jean Dumortier (Plutarque, 1975, pp. 261 e segs.), tradutor e intérprete de Plutarco citado há pouco, a prática da polupragmonsune13 reside na tendência a se imiscuir indiscretamente nos assuntos alheios, sejam eles privados ou públicos. Os atenienses criaram um termo para designar o sujeito que especula o que não lhe diz respeito: sicofanta (na origem, com bastante probabilidade, sicofanta era o delator dos que roubavam figos, nas comédias de Aristófanes os delatores e os sicofantas são ridicularizados). O emprego de alcaguetes marca os tiranos. Na República, quando Platão traça a pintura sinistra do tirano, entra a imagem dos mercenários que, caso sua terra possua cidadãos prudentes e sábios, dela saem para servir em cidade estranha "como ladrões, furadores de muralhas, cortadores de bolsas, afanadores de roupas, pilhadores de templos, praticantes de tráfico escuso; por vezes, caso sejam capazes de falar, tornam-se sicofantas, falsas testemunhas, agentes da corrupção"14. Tais pessoas são usadas pelo tirano para dominar os cidadãos livres. Possui importância estratégica a atividade do sicofanta, delator a soldo do tirano. Mas para delatar é preciso seguir o segredo onde ele se encontra.
A diatribe de Heidegger contra o palavrório (Gerede) tem origem em Platão, por mais que o pensador germânico se coloque em sentido contrário ao autor dos Diálogos. No que tange ao palavrório da massa, da imprensa e dos universitários modernos, combatido por Heidegger, a origem da crítica também se localiza em Platão, na República e nas Leis. No caso das Leis, a base do processo contra o falatório situa-se na crítica endereçada aos poetas, quando estes últimos abalam a medida prudencial a que deveriam se submeter, ameaçando a vida pública.
A justa medida, diz Platão, é essencial na ordem política e nas relações do corpo (alimentos) ou técnicas (nos navios, não se pode usar mais velas do que o preciso). Na alma não podem ser usufruídos direitos excessivos. Sem justa medida tudo se inverte. Ali a abundância de carnes que leva à doença, aqui a ilimitação (hybris) que gera a injustiça (adikia). A alma dos jovens não suporta o peso do poder, logo é infectada da mais grave doença, a desrazão (anóia). Contra tais excessos cabe ao legislador prudente, graças à justa medida, tomar precauções.
E chega o instante dos pesos e contrapesos do poder. Em Esparta, em vez do rei único, existia uma dupla de reis reduzindo o poder à justa medida. Além disso, o voto de 28 anciãos que possuem, nos assuntos mais graves, poder igual ao dos reis. Há um terceiro salvador com o poder dos Eforos, algo que se aproxima do sorteio. O governo de Esparta combina poderes, o que leva à salvação coletiva. Juramentos não controlam a alma de um jovem candidato à tirania. Importa limitar a medida dos poderes, fundir num só os três poderes.
No mundo conhecido, adianta Platão, existe de um lado o poder autocrático dos persas e o temperado de Esparta. É preciso sempre o tempero, o acorde correto. Tal teoria do poder tem como pressuposto uma visão do universo e da sociedade como harmonia. Na ordem política deve ser mantida a ordem antiga sob o domínio das antigas leis. Nela, o povo não tinha soberania nos assuntos mas era escravo voluntário das leis.
Quais leis seriam as referidas? As relativas à música. Na época antiga a música era dividida segundo espécies e formas próprias. As preces aos deuses eram cantos, hinos. Depois havia uma espécie de canto oposto: lamentos chamados "trenos". Os peans eram uma espécie distinta, outra ligada ao nascimento de Dionisos seria o ditirambo, etc. Reguladas as coisas, não era permitido abusar de uma das formas, transpondo-a para outras. O poder de julgar sobre elas e julgar com conhecimento de causa e punir os transgressores não pertencia às vaias ou aplausos, mas era decidido por homens sábios que tudo ouviriam em silêncio e, com a varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam crianças e professores. Esta a ordem aceita pelos cidadãos, sem que eles tivessem a audácia de recorrer à gritaria para opinar.
Os poetas foram os primeiros a corroer as leis da música. Eles são dotados para a poesia mas nada conhecem da Musa enquanto fonte de legitimidade e fé pública, misturam as formas e levam tudo a se confundir, pretendem mentirosamente, em sua desrazão involuntária, que na música não existe lugar para a retidão e que, além do prazer que se encontra no seu gozo, não existe meio correto de decisão, melhor ou pior. Eles inculcam na massa o hábito de infringir as leis e a audácia de se acreditar capaz de decidir. Resultado: antes, o público não falava no teatro (era ), depois, começou a falar como se entendesse o que é belo na música, ou não, surge então uma "teatrocracia" () depravada que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música apenas, surgisse uma democracia composta por indivíduos de uma cultura liberal, não ocorreria algo tão desastroso. Mas na verdade é pela música que se iniciou, entre nós, com a crença na sabedoria de todo mundo para julgar, a atitude subversiva. Nenhum medo os retinha pois se acreditavam sábios, e essa ausência de medo gerou a impudência, audácia de não temer a opinião de quem vale mais do que nós. Eis a impudência detestável, efeito de uma liberdade cuja arrogância é levada ao excesso.
Embora seja possível recolher nos textos platônicos elementos para nos aproximar do silêncio (a Carta Sétima é decisiva na condenação da escrita e da fala excessivas), também é permitido ler os Diálogos como prelúdio do mundo em que são votados ao silêncio involuntário todos os que se encontram no terreno da alteridade, os que não entram no campo do supostamente normal. Platão propõe um papel ativo para as mulheres, à diferença de outros filósofos como Aristóteles15. Shoshana Felman (1978, pp. 138 e segs.), em certa altura de seu livro intitulado A Loucura e a Coisa Literária, começa um capítulo importante ("As Mulheres e a Loucura: História Literária e Ideologia") com uma epígrafe assustadora: "O silêncio dá às mulheres as suas graças próprias". Trata-se de uma passagem de Sófocles na peça Ajax. E Felman (1978, p. 141) aponta o truque muito comum dos que falam sempre "em nome de"16. Ela se refere ao "gesto opressivo da representação pelo qual, na história do logos, o homem ocidental reduziu, precisamente, o outro (a mulher) a objeto silencioso e subordinado".
Felman analisa um conto de Balzac chamado "Adeus". Dois caçadores se perdem na floresta e perguntam a duas mulheres onde estavam. Uma delas é surda e muda e a outra, louca afásica. As duas mergulham no silêncio. A única palavra que a triste afásica repete é "adeus". Um dos homens, diante da palavra, desmaia pois reconhece a companheira que o seguira na viagem para a Rússia durante as guerras napoleônicas. Quando a situação se tornou insuportável ele a colocou numa jangada e dela se despediu com um adeus. O sujeito tenta curar o antigo amor. O tratamento começa com pequenos grãos de açúcar dados à senhora, uma espécie de amestramento. O alvo era fazer com que ela o reconhecesse. Ele resolve montar uma cena, exatamente a última que ocorreu entre eles na Rússia, com direito ao rio, à jangada, ao adeus. E no palco erguido ele pergunta se ela o reconhece. O falocentrismo é mais do que evidente. Ela não é, ele é e deve ser reconhecido. Ele fala, ela mergulha ainda mais no silêncio da morte. "Não me reconheces? Sou eu, teu Filipe!". Filipe não articula a questão "quem é ela?" mas sim "quem sou eu". A resposta joga o silêncio sobre ela. A coisa piora quando ele afirma ansioso: "Tu és a minha Stefânia", ou seja, uma propriedade perdida de Filipe...
Mas o outro, além da mulher, pode ser o judeu e o homossexual. Em sua meditação sobre a alteridade na literatura moderna e romântica, Hans Mayer, ao falar do segundo sexo e seus marginalizados, se refere às femmes fatales do romantismo, todas "inatingíveis, infantis, fatais, impossíveis de serem afetadas pela palavra e pela razão masculina". E adiante: "[...]só se pode discutir a femme fatale como se 'discute' bruxaria". Em relação ao homossexualismo a estrutura de marginalização se retoma com matizes tão sombrios quanto no caso da mulher. E quanto aos judeus, algo próximo se apresenta. Não irei analisar o livro de Mayer, rico quando se trata de perceber as armadilhas supostamente libertárias dos que se erigem em "salvadores" da alteridade, mas que de fato instituem dominações mais sutis dos que as anteriores, mantendo a capa de silêncio sobre os que não entram na senda do normal, comum, correto (Mayer, 1989).
Tomemos a exigência platônica de silêncio dos não especialistas em filosofia ou música (para Platão, as duas ordens se confundem). Poderíamos nos espantar se no século XVIII, na Inglaterra e França, o teatro fosse destinado ao consumo da elite nobre ou econômica. Os lugares são caros. Mas existe espaço para os "negativamente privilegiados" (o termo é de Max Weber) como em Paris, na plateia, os lugares em pé para os da classe média, estudantes e intelectuais. Em 1781 a Comédie-Française se instala em novo edifício e a plateia é provida de assentos. Com a nova disposição do mobiliário, aumenta o silêncio no teatro. Como diz um comentador, "não existem mais gritos vindos do fundo da sala, nem gente que comia em pé, assistindo às peças. O silêncio do público parecia diminuir o prazer de assistir a uma representação. Essa reação nos permite adivinhar o sentido da participação do público". Na Inglaterra, os nobres tinham assento no palco. Eles faziam o que bem quisessem naquele espaço: gritavam para seus amigos, misturados aos atores. Havia uma troca de conivências, não apenas entre atores e nobres, como entre atores e público geral. Este, por sua vez, mantinha o autocontrole. "Era objetivo e muito crítico em relação aos atores e atrizes que o faziam chorar. O público queria interferir diretamente com o ator; e o fazia graças a um sistema de 'pontos' e um sistema chamado settling (literalmente, regulação de contas)". Voltando a Paris, ainda no século XVIII. Numa das Cartas Persas o herói de Montesquieu vai à Comédie-Française e ali "não distingue os atores na cena e os espectadores na sala. Todo mundo se exibe, assume poses, se diverte. A distração, a tolerância cínica, o prazer partilhado em companhia dos outros, tais são alguns dos sentimentos contidos na concepção comum do homem ator"17.
No século XIX as mutações do espaço social e das artes permitem o desdobramento dos indivíduos entre atores e não atores.
"Quando a personalidade irrompe no domínio público, a identidade do homem público se desdobra. Certa minoria de indivíduos continua a se exprimir ativamente, perpetuando a tradição de homem ator instaurada no Antigo Regime. No meio do século XIX, essa minoria é constituída de atores profissionais. Mas, paralelamente, se forma uma nova espécie de espectador. Esse espectador não participa da vida pública, mas se abriga para melhor observá-la. Pouco seguro de seus próprios sentimentos [...] este homem, à diferença do homem do Antigo Regime, tem sua realização pública não mais em seu ser social, mas em sua personalidade. Se ele se mantém disciplinado e sobretudo silencioso em público, ele viverá coisas que não pode viver por si mesmo".
O espectador, indivíduo isolado, ao se tornar passivo, espera sentir mais. "Olhar a vida que passa em silêncio, eis o que significa para este indivíduo a 'liberdade'". Então, "observadores silenciosos frequentam o espaço público [...] as necessidades projetadas sobre o ator se transmutam, os espectadores se fazem voyeurs. Eles se isolam uns aos outros e se liberam por uma espécie de fantasia ou sonho desperto, olhando a vida que passa na rua. Temos aqui, em germe, o paradoxo moderno do isolamento no interior da visibilidade" (Sennett, 1979, pp. 152 e segs.).
Em Ser e Tempo, não por acaso, antes de entrar no domínio do falatório, Heidegger examina o olhar. Como sempre, seu empréstimo não confessado a Platão e a Plutarco faz o leitor não perceber que se trata, no caso do olhar, do velho tema da vista maldosa que busca ver o que se passa na casa alheia, ignorando a própria. Em Plutarco, os olhos reúnem duas formas de atenção: a pesquisa (zetesis) e a curiosidade, a chamada "polupragmosine". Enquanto o zetetés, o investigador, usa os olhos para captar o permanente e atinge um conhecimento dificilmente comunicável, o curioso atarefado recolhe informações sobre tudo e todos, sobremodo das coisas e atos sem relevância para o Bem. Ao redor da mesma imagem, vemos se produzir, na crítica do conhecimento e da moral, duas atitudes diferentes. A mente curiosa, afirma Plutarco, é como a Lâmia mitológica. "Quando dormia em sua casa, ela depositava os olhos num vaso. Saindo, Lâmia os colocava em seu rosto e podia ver". Todos os homens, quando não se dedicam à pesquisa e à virtude, são Lâmias: "[...] cada um de nós... pratica a indiscrição maldosa com o olho, esquecendo as próprias faltas e taras por ignorância (agnóia), porque não tem o meio de vê-las e de esclarecê-las" (De Curiositate, 2).
A pesquisa leva ao descobrimento de tudo, trazendo para os olhos as formas permanentes das coisas. Enquanto isso,
"curiosidade é a paixão de conhecer o escondido e o dissimulado. Mas ninguém esconde o bem que possui. Às vezes nos atribuímos um bem que não temos. O curioso, em seu desejo de saber o que vai mal entre os demais, é tomado pela maldade, irmã da inveja e da calúnia. Porque a inveja é a tristeza causada pelo contentamento alheio e a maldade é alegria pela sua infelicidade. Ambas nascem de uma cruel paixão, a ruindade" (De Curiositate, 6).
Plutarco tem cura para a curiosidade: a própria pesquisa. Quem se acostumou ao mal curioso deve curá-lo de modo homeopático. O tratamento consiste em "transferir a curiosidade, transformando-a em gosto da alma por assuntos honestos e agradáveis: seja curioso do que se passa no céu e na terra, nos ares e no mar, os segredos da natureza, pois esta não se enraivece quando eles são roubados..." (De Curiositate, 5)18.
Finalmente recordo o imenso autoritarismo de todos os projetos que desejam impor silêncio aos que escapam ao controle da boa norma. Poderia falar sobre a censura, o segredo, molas da razão de Estado moderna, sempre com o fito de fornecer aos governantes maior força física, impostos, leis contra os governados. Carl Schmitt, jurista próximo de Heidegger, chama a burguesia de "classe discutidora"19 retirando esse epíteto de Juan Donoso Cortés, autor do Discurso sobre a Ditadura. Tal diatribe inspirou o fascismo, o nazismo e todas as ditaduras que infernizaram o século XX na América do Sul.
"Uma boa parte do prestígio de que gozam as ditaduras deve-se ao fato de lhes ser concedida a força concentrada do segredo, que nas democracias se reparte e se dilui entre muitos. Com sarcasmo diz-se que nas democracias tudo se dilui em palavrório. Todos falam demais, todos se intrometem em tudo, nada acontece que não se saiba previamente. Tem-se a impressão de que a queixa se origina da falta de decisão, quando na verdade a decepção tem sua origem na falta de segredo. Estamos dispostos a tolerar muitas coisas, desde que elas sejam impostas com violência e em segredo".
Essas frases tremendas de Elias Canetti são precedidas de outras, não menos temíveis no capítulo intitulado "O Segredo" de Massa e Poder: "Uma das características do poder é a distribuição desigual do calar das intenções. O poderoso cala, mas não permite que os demais se calem. Ele mesmo deve ser o mais reservado de todos. Ninguém pode conhecer suas convicções nem suas intenções". E adiante, ao falar dos tiranos antigos e modernos, diz Canetti (1986, pp. 326 e segs.) que
"[...] o poder do silêncio sempre é altamente apreciado. Significa que se é capaz de resistir aos incontáveis motivos externos que nos induzem a falar [...] o silêncio pressupõe um conhecimento exato daquilo que não se diz. Como na prática não se emudece para sempre, faz-se uma opção entre o que se pode dizer e o que não se diz. Silencia-se o que melhor se conhece. É algo mais preciso e também mais precioso [...] o silêncio isola, quem cala está mais solitário do que os que falam. Assim, atribui-se a ele o poder da singularidade. Ele é o guardião do tesouro e o tesouro está dentro dele".
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NOTAS
1 Um trabalho sugestivo, ainda em nossos dias, é o de M. H. Abrams (1971). Em meu livro, Silêncio e Ruído, a Sátira em Denis Diderot (Romano, 1997), analiso o campo em questão. Antes dele, no livro Conservadorismo Romântico (Romano, 1997) e em Corpo e Cristal, Mar Romântico (Romano, 1985), examino o plano mais amplo em que o problema da fala e da imagem se instala. Quanto à ordem do discurso teológico e da imagem, a discuto em Brasil, Igreja Contra Estado (Romano, 1979). Autores como Alcir Lenharo (1986) ampliaram as minhas observações em sentido histórico, aplicado à produção cultural brasileira.
2 O trecho citado encontra-se no capítulo cujo título é "O Poder das Palavras".
3 Peri adoleskias (De garrulitate). Uso aqui a edição das Moralia da Loeb Classical Library, volume VI, trad. W. C. Helmbold (Cambridge, Harvard University Press, 1970), pp. 396 e segs.
4 Brincando com termos de medicina, Plutarco diz que o nome da doença do falador é asingesia, ou seja, impossibilidade de manter silêncio. O outro lado da mesma doença seria a anekoía, inabilidade para escutar. Resulta numa doença, também nomeada por Plutarco, a diarréousi, diarreia da língua. Nota de Helmbold.
5 Sobre o tema, a bibliografia é imensa. Não pretendo discutir tais pontos que exigem competência e cautelas próprias. Uma análise cuidadosa encontra-se nos textos de Pedro Lain Entralgo. Refiro-me especialmente ao seu livro: La Relación Médico-enfermo. Historia y Teoria (Entralgo, 1983), "[...] o silêncio é como o húmus em que germinam e assumem sentido as palavras pronunciadas, quando estas são algo mais do que simples algaravia gárrula, quando a fala, Rede diria Heidegger, não se transformou em Gerede (palavrório)" (Entralgo, 1983, p. 313). Outro escrito do mesmo autor trata desse problema: La Curación por la Palabra en La Antiguedad Clásica (Entralgo, 1987). Particular proveito para nosso tema fornecem as páginas l54 e segs. "[...] para Platão, o agente catártico que a 'doença da alma' requer é a palavra idônea e eficaz. Impondo evidências ou infundindo persuasões, a expressão verbal de quem saiba ao mesmo tempo ser professor e médico - 'psicagogo', diria Platão - é capaz de reordenar as almas que sofrem de ametria e reintegrá-las em seu verdadeiro ser" (Entralgo, 1987, pp. 154-5). Para a imagem, cf. Louis P. (1945): "Le Discours". Também Taillardat (1965), "Le Flot des Paroles" e "Le Bavardage".
6 Plutarco cita Aristóteles que, na Ética a Nicômaco (Livro IX, 1166 a31, 1170 b7), afirma: "O homem bom experimenta vários sentimentos para consigo mesmo e porque ele sente para com o seu amigo do mesmo modo que sente por si mesmo (porque um amigo é um outro eu), a amizade também é pensado como consistindo em um ou outro desses sentimentos, e julga-se a posse deles como um teste de um amigo". Uso a edição da Loeb Classical Library (Aristotle, 1990, p. 535).
7 Entre muitos escritos sobre o assunto, cf. Alan Partington (2002).
8 Desse enunciado, uma tradução bem fundamentada encontra-se no Tractatus Logico-Philosophicus de Lugwig Wittgenstein: "Wovon man nicht sprechen kann, daruber muß man schweigen". Na tradução de C. K. Ogden: "Whereof one cannot speak, thereof one must be silent". Cf. no seguinte site: http://www.kfs.org/~jonathan/witt/tlph.html. Para uma análise interessante, cf. Sandra Laugier: "Le Secret et la Voix du Langage Ordinaire", in Modernités, Dossier Dire le Secret (2002). Também no seguinte endereço eletrônico: http://formes-symboliques.org/article.php3?id_article=154#nh62. Cf. também, em outros parâmetros, Emmanuel Rouillé, "Le Secret et l'Alétheia Grecque", Le Portique, Recherches 2 - Cahier 2 2004, endereço eletrônico: http://leportique.revues.org/document465.html.
9 "Aujourd'hui [...] il règne dans nos mŒurs une vile et trompeuse uniformité, et tous les esprits semblent avoir été jetés dans un même moule: sans cesse la politesse exige, la bienséance ordonne: sans cesse on suit des usages, jamais son propre génie. On n'ose plus paraÎtre ce qu'on est ; et dans cette contrainte perpétuelle, les hommes qui forment ce troupeau qu'on appelle société, placés dans les mêmes circonstances, feront tous les mêmes choses si des motifs plus puissants ne les en détournent. [...] Les soupçons, les ombrages, les craintes, la froideur, la réserve, la haine, la trahison se cacheront sans cesse sous ce voile uniforme et perfide de politesse, sous cette urbanité si vantée que nous devons aux lumières de notre siècle. On ne profanera plus par des jurements le nom du maÎtre de l'univers, mais on l'insultera par des blasphèmes, sans que nos oreilles scrupuleuses en soient offensées. On ne vantera pas son propre mérite, mais on rabaissera celui d'autrui. On n'outragera point grossièrement son ennemi, mais on le calomniera avec adresse. Les haines nationales s'éteindront, mais ce sera avec l'amour de la patrie. A l'ignorance méprisée, on substituera un dangereux pyrrhonisme. Il y aura des excès proscrits, des vices déshonorés, mais d'autres seront décorés du nom de vertus ; il faudra ou les avoir ou les affecter." Rousseau: no texto premiado pela Academie de Dijon (1750): Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer les mŒurs. E na Carta a d'Alembert: "Si nos habitudes naissent de nos propres sentiments dans la retraite, elles naissent de l 'opinion d'auttrui dans la société. Quando on ne vit pas en soi, mais dans les autres, ce sont leurs jugements qui réglent tout, rien ne parait bon ni désirable aux particuliers que ce que le public a jugé tel, et le seul bonheur que la plupart des hommes connaissant est d'etre estimés heureux". Pleiade, V. V (Paris, Gallimard, 1995), páginas 61-62. No Discurso sobre a Desigualdade: "le sauvage vit en lui-même; l'homme sociable toujours hors de lui ne fait vivre que dans l'opinion des autres, et c'est, pour ainsi dire, de leur seul jugement qu'il tire le sentiment de sa propre existence". Comentário: o homem social se esvazia nas múltiplas opiniões. Cf. P. Burgelin (2005). Também, A. Hartle (1983).
10 Exemplo excelente dessa parolagem é indicado por Thomas Hobbes: "Na maioria das pessoas [...] o costume tem um poder tão grande que se a mente sugere uma palavra inicial apenas, o resto delas segue-se pelo hábito e não são mais seguidas pela mente. É o que ocorre entre os mendigos quando rezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e de tal modo, como aprenderam com suas babás, companhias ou seus professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às palavras que enunciam. Como aprenderam, ensinam a posteridade. Se levarmos em contra os enganos do sentido e como os nomes foram inconstantemente determinados, o quanto estão submetidos ao equívoco e o quanto se diversificam pela paixão (raramente dois homens concordam sobre o chamado bem e mal, o que é liberalidade, prodigalidade, valor ou temeridade) e o quanto os homens são sujeitos ao paralogismo ou falácia no raciocínio, posso concluir de certa maneira dizendo que é impossível retificar tantos erros de um só homem, como devem proceder daquelas causas, sem começar de novo dos verdadeiros fundamentos iniciais de todo conhecimento, os sentidos; e, em vez de livros, ler ordenamente as nossas próprias concepções; nesse sentido eu entendo o nosce teipsum" (The Elements of Law, 1, 5. "Of Names, Reasoning, and Discourse of the Tongue". Electronic Text Center, University of Virginia Library - http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/Hob2Ele.html).
11 De Platão até hoje, a opinião (doxa) deve ser combatida pela ciência. Em Hegel, a opinião pública (Die öffentliche Meinung) ao mesmo tempo carrega elementos verdadeiros e incertos, produtos da raciocinação sem profundidade (o famoso Räsonieren, forma inferior da Razão). Uma pessoa ponderada não leva a sério a opinião pública, pois a própria opinião pública engana a si mesma. É preciso apreciá-la, pensa Hegel, mas também desprezá-la. Para que algo verdadeiro ou grande seja feito, é preciso que o sujeito tenha independência (Unabhängigkeit) diante dela. Ligada à opinião pública, a imprensa é o lugar do limitado, contingente, com infinita diversidade de conteúdo e modos de falar. O modo científico rompe com as alusões, as palavras postas pela metade. Ele exige uma expressão sem equívoco (cf. Hegel, 1975, pp. 318 e segs.). Estamos a um passo da noção de ideologia e de opinião pública enquanto falsa consciência (cf. J. Habermas, 1984, p. 149). E também Norberto Bobbio (1996), que compara nesse livro as teorias da ideologia em Marx e Pareto.
12 "À garrulice se apega um mal que não lhe é inferior, a curiosidade (periergia): deseja-se saber muito, para muito falar. São especialmente histórias de segredo e de coisas escondidas, das quais se deseja encontrar os traços enfiando as fuças em todas as direções [...]. Diz-se que as enguias do mar e as víperas morrem ao dar a luz aos seus filhotes; assim, os segredos, ao escapar, arruinam e destroem os que não os guardam" (cf. Plutarque, 1975, p. 242).
13 Além de Jean Dumortier, cf. Adkins (1976, pp. 301-27).
14 "[...] hoia kleptousi toichôruchousi, ballantiotomousi, lôpodutousin, hierosulousin, andrapodizontai: esti d' hote sukophantousin, ean dunatoi ôsi legein, kai pseudomarturousi kai dôrodokousin" (República, IX, 575 b). Uso o texto do site Perseus. "Por exemplo, roubam, arrombam as muralhas, surrupiam as bolsas, assaltam os passantes, fazem captura e tráfico de escravos e, às vezes, quando possuem o dom da palavra, tornam-se sicofantas, falsas testemunhas e se deixam subornar" (Platão, 2006, p. 345). E também a tradução francesa de Leon Robin, Oeuvres Complètes de Platon (Paris, Gallimard, 1953, p. 1.180).
15 Analiso esse ponto em "A Mulher e a Des-razão Ocidental" (Romano, 1985),
16 Em Brasil, Igreja contra Estado, me levanto contra os "libertários" eclesiásticos ou leigos que se proclamam "a voz dos que não têm voz". Caracterizo tal atitude como ventriloquismo, interessado no poder que, hipócrita, sequer confessa tal alvo. Como diz Elias Canetti, "nunca vi um só homem deblaterando contra o poder, sem o creto desejo de possuí-lo".
17 Todos esses pontos são extraídos de Sennett (1979).
18 Utilizo a edição Belles Lettres: De la Curiosité, traduzido por Dumortier (Plutarque, 1975, pp 266 e segs.). Na Encyclopédie, o verbete "Curiosité" é quase todo extraído de Plutarco pelo Chevalier de Jaucourt: "A curiosidade inquieta de saber o que os demais pensam de nós, é o efeito de um amor próprio desordenado. O imperador Adriano, que nutria ternamente esta paixão, deve ter sido um mortal muito infeliz. Se tivéssemos um espelho mágico que nos revelasse a toda hora as ideias dos outros sobre nós seria bom quebrá-lo sem usá-lo. (Este enunciado repete Francis Bacon, RR). A curiosidade de algumas pessoas que sob pretexto de amizade informam-se com avidez sobre nossos assuntos, projetos, sentimentos, e segundo o poeta: Scire volunt secreta domûs, atque inde timeri... é um vício vergonhoso. [...] Mas prefiro me fixar na curiosidade digna do homem e a mais digna de todas é o desejo de aumentar os conhecimentos, seja para elevar o espírito rumo às mais altas verdades, seja para torná-lo útil aos concidadãos".
19 Cf. Antonio Bento, "Culto Público do Privado e Segredo no Estado de Direito Liberal", Universidade da Beira Interior (na Internet).
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