São Paulo, quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007
| MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO Sonhando com milhões
NOSSA POLÍTICA é antro de
mentiras. Hilária e tétrica, é
a chanchada "Se meu Dólar
Falasse" vivida não por Dercy Gonçalves, mas pela trinca
assessor-parlamentar-advogado. Preso com
dólares na roupa, Adalberto os atribui ao padrinho, Kennedy, que implica
Guimarães, chefe de Adalberto e irmão de Genoíno, que renuncia e volta
ao Congresso. A ciranda
fecha-se: Adalberto urge com Guimarães: "Corra para cá que é uma
razão de Estado". O rocambole
evolui: os atores brigam, assustam-se, escondem-se; a razão de Estado
murcha em favores partidários e
negócios privados.
Nada de muito novo. Segredo, dissimulação, fraude na governança percorrem séculos. A mentira política já aparece em Platão. Na República, a dinâmica expansiva da cidade inicial, mínima e autosuficiente, rumo à maior complexidade interna e às conquistas exteriores, gera conflitos de soberania. Nascem a guerra e o guardião, apto à defesa pátria e à luta por sua hegemonia. A índole do guerreiro deve unir gentileza (doméstica) e agressividade (externa), compondo uma natureza contraditória, porém não impossível: análogos dons aparecem no cão, dócil com familiares, hostil a estranhos. Capaz de distingui-los, ele conhece e discerne, aprende. Ao construir o corpo político, Sócrates evoca um antigo bestiário para esboçar uma de suas figuras básicas: o jovem de boa cepa e o cão de boa raça são adestráveis. No campo da crença e da opinião, onde se educa o guerreiro, a mentira faz-se útil ao Estado. Não a mentira "verdadeiramente", sobre coisas reais, que é odiosa, mas a mentira "em palavras" que não é pura, porém mista de verdade. Trata-se do veto aos contos infantis e à poesia para incutir no jovem as virtudes políticas. Assim, a fábula sobre a gestação do guerreiro no útero da terra, para que a ame como sua mãe, é "nobre mentira", imagem que atinge sobretudo os sentidos e fecha o debate sobre o preparo do jovem guardião (inclusive ginástica e música). Sobre a credibilidade desses mitos, Sócrates diz que, à força de repetidos, serão aceitos. No Estado aristocrático, o artífice da polis, ciente da verdade, maquina a mentira para crianças e jovens. Ela é vedada ao homem comum, tutelado político. Será diferente quando a cidade platônica completar-se e a razão constituir sua base e penhor. Hoje, na democracia, onde o povo é soberano e decide pelo voto autônomo, não há mentira cívica justificável. Piora, ao amesquinhar-se. Agora, a mentira "em palavras" caberia à literatura, que, desprendendo-se do rotineiro, alcança a verdade. A repetição persuasiva do engodo tem lugar na propaganda. Nossos artífices e legisladores chamam-se Mendonça e Santana. |