Correio Popular de Campinas, 1/02/2005, na coluna de Roberto Romano
A jovem boçalidade nacional
Roberto Romano
“Eu daria vagões cheios de vidas moderninhas em troca de minutos das conversas entre Eckermann e Goethe”. (Nietzsche)
A imprensa noticiou beijos e abraços de Chico Buarque de Holanda com anônima jovem, parece que bonita. É difícil distinguir a imprensa marrom e a séria, dada a busca de notícias já ter ultrapassado, desde longa data, os limites do bom senso. Aliás, nos seus primeiros passos, a imprensa serviu, ainda no século 16, ao plano econômico (na Renascença os jornais informavam as condições das estradas e das rotas marítimas, os desastres ocorridos nas colheitas, as cotações nos mercados etc.) e como pasto para a curiosidade perversa das novas massas urbanas. O prosaico preço das mercadorias, nas páginas dos periódicos, unia-se ao maravilhoso, ao sensacional, ao monstruoso. Publiquei um livro sobre o tema (Moral e Ciência, a monstruosidade no século 18, São Paulo, Ed. Senac).
A morbidez dos olhos vulgares fornece a sobrevida para muitos jornais. Na TV, a coisa piora, mas fiquemos por aqui. Karl Kraus escreveu um libelo ainda útil em nossos dias: A imprensa como prostituta. A virulência das redações contra o pensador crítico não impediu nem impede que as pessoas sensatas olhem as páginas nas quais jovens de ambos os sexos se oferecem ou são oferecidos enquanto mercadoria para o gozo sexual de pessoas bem instaladas na vida, com dinheiro e poder. Os quadrinhos que ofertam “massagens” e outras facilidades são exibidos por veículos de comunicação que se permitem julgar a vida de pessoas públicas, contra ela jogando o vilipêndio. Uma das marcas importantes daquelas ofertas é o alarde que afirma serem jovens “as mercadorias”. Nesta estrada, a pedofilia, hipocritamente discutida nas conversas bem pensantes, se insinua como forma “comum”, aceita por todos.
Volto ao bom Chico Buarque e à mocinha. Como a imprensa passou a perseguir a jovem, seu marido veio a público para “esclarecer as coisas”. Em entrevista concedida ao jornalista Daniel Bergamasco (Folha de São Paulo, no dia 9 e março), o moçoilo afirmou viver num matrimônio moderno, tão moderno que o casal não se interessa pelo que fazem os seus integrantes. “A gente respeita a liberdade um do outro.” Bem, o rapazola diz perdoar a mulher, porque “o perdão está em meu coração”. Depois dessa frase própria ao romantismo bocó, vem a sua marca ética, comum na boçalidade brasileira de hoje: “Só quero que ele (Buarque de Holanda) deixe nossa vida em paz, bote na balança que temos família e vá procurar alguém da idade dele. Talvez em uma clínica geriátrica.”
Não sou admirador de Chico Buarque. Fora algumas letras mais trabalhadas (Construção e Apesar de você fogem à regra do mel em demasia, comum nas suas produções), o cansaço logo se instala no ouvido, o que é letal em se tratando de música. Mas Buarque de Holanda não se limita a ser apenas o artista que, do palco, provoca gritinhos femininos e masculinos. Ele é um dos raros privilegiados que no período militar lutou contra a censura, as torturas, a canalhice dos intelectuais caudatários de qualquer poder, sobretudo do não democrático. Sem as batalhas de Chico Buarque e de poucos seres dignos de respeito (como o ancião Alceu Amoroso Lima; o vetusto Helder Câmara; o matusalém Sobral Pinto. que defendeu seu inimigo ideológico, Luis Carlos Prestes, invocando a lei de proteção aos animais; o macróbio Evandro Lins e Silva, cassado do Supremo Tribunal Federal pela sua defesa dos direitos cidadãos; e mais alguns outros idosos da República contrários à tirania) muito seguramente o rapazote que hoje aponta a senectude como vergonha viveria numa enorme jaula chamada Brasil. Dada a ferocidade tola que o move, talvez a idéia da jaula não fosse assim tão ruim.
Admirei muitas coisas em Dom Helder Câmara, mas nunca – mesmo quando eu era jovem – pude deglutir a sua adulação da juventude, algo que sempre me pareceu demagogia desnecessária para um homem da sua envergadura. Neste ponto, sempre dei razão a Nelson Rodrigues e às suas caçoadas dirigidas ao antístete, porque eram justas. Um boçal é boçal na infância, na juventude, na velhice. Um jovem pode ser inteligente, ético, corajoso. Mas o velho Platão disse o bastante na República, ao zombar dos velhos que, por medo dos jovens imbecis e por desejo de serem aceitos, adulam os moços e a sua “liberdade”, imitam seus trejeitos, suas roupas, seu modo de falar. A frase sobre os asilos geriátricos, na entrevista do leniente marido jovem da moçoila que foi vista beijando Chico Buarque, entra no mesmo – sim senhores, no mesmo – círculo da canalhice geral que levou o jovem governo do PT a empurrar para as filas da Previdência pessoas de 90 anos para “provar que existiam”. Para a dolorida testa inchada do jovem marido e para os ministros de Lula, as pessoas idosas são lixo a ser varrido ou a ser depositado nos asilos. Espero que sua velhice lhes traga os frutos que semeiam. E continuo firme na companhia de Nietzsche: não troco um minuto de conversa com o idoso Goethe, por milhões de vidas tenras, idiotizadas pelos demagogos de todos os calibres.