sexta-feira, 21 de junho de 2013

Artigo de Roberto Romano, no Correio Braziliense de 21/06/2013, sobre uma das causas não debatidas pela midia e por analistas.

CORREIO BRAZILIENSE.
  • Brasília, 21 de Junho de 2013

Estado e cidadania

Autor(es): Roberto Romano
Correio Braziliense - 21/06/2013
 

A história do Estado brasileiro narra o excesso de força movida pelos poderes para controlar a sociedade. Desde a Colônia, foi negada autonomia aos cidadãos. O primeiro Império instaurou a estrutura mantida até hoje, na qual quem domina a vida pública está "acima" do simples pagador de impostos. A repressão estatal atingiu seu ápice nas ditaduras do século 20. Elas usaram os meios estatais para reprimir toda oposição aos dirigentes. E usaram os recursos econômicos coletivos para premiar os poderosos garantidores de suas políticas. Usaram a propaganda para violentar consciências, para obter adesão ao proprietários presuntivos da ordem. Desde o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), na era Vargas, passando pelas agências do regime civil e militar cujo rosto é o AI-5, chegando a Duda Mendonça e a João Santana, os monopólios do Estado (força física, norma jurídica, impostos) servem para potenciar políticos e magistrados em prejuízo dos "cidadãos comuns, os leigos".

Sob o guante do Estado, os brasileiros foram submetidos aos mais diversos golpes, de abril de 1964 até os sucessivos "planos econômicos", derramas ordenadas por burocratas ministeriais. Nenhum deles, ditados pela autocracia, melhorou a vida econômica, social, científica do Brasil. A inflação foi usada pelos ditadores e por seu herdeiro, José Sarney, sem prudência. No processo inflacionário, "o governo que imprime somas excessivas de dinheiro e o desvaloriza, atraiçoa a fé do povo, que acredita, pelo menos durante algum tempo, que o valor prometido e impresso numa nota corresponde ao seu futuro poder de compra".

Tais palavras de Bernd Widdig, analista dos nexos entre vida econômica e espiritual, seguem o capítulo de Elias Canetti sobre a inflação como fenômeno de massa (aMassa e Poder). Em Cultura e inflação na República de Weimar (University of California Press), Widdig mostra até que ponto o corpo e a alma das pessoas recebem uma ferida incurável pelo envilecimento da moeda. Canetti mostrara que os alemães, diluído o dinheiro, sentem um vazio humilhante que termina em vingança executada contra os ainda mais fracos. Se o índice inflacionário de Weimar fosse menor, lemos em Massa e Poder, com muita probabilidade milhões de seres humanos teriam escapado do Holocausto. Widdig mostra como a inflação esteve na base do advento nazista.

Os ditadores de 1964 e o governo Sarney imprimiram moedas sem garantias de que elas poderiam comprar alimentos, moradias, roupas, educação, saúde, traindo a fé pública. Somada tal imprudência (palavra mais polida a ser empregada no caso) à repressão sem freios, o resultado foi o abandono da arena política por considerável número de grupos e indivíduos. Como não existe vácuo no poder, o espaço restante foi preenchido por setores descomprometidos com o bem público, empenhados em defender interesses particulares. O Centrão foi o modo de funcionamento da máquina de moer valores. O "é dando que se recebe" foi o grito de guerra.

Inflação, sociedade intimidada, arrogância governamental e legislativa (o Judiciário é capítulo à parte, mas integra a tragédia). O Estado se liquifaz e a anomia impera nos últimos dias de Sarney. Após a "era Collor", veio a crise do impedimento. Sob Itamar Franco, é tomada a iniciativa de combater a inflação. O Plano Real fornece às camadas sociais a expectativa de segurança econômica. Se foi um ganho público, o plano não deixou de ter relevância perversa ao reforçar o apolitismo imposto aos brasileiros. Ele como que anestesiou grandes massas, impedindo-as de protestar contra abusos em todas as esferas e hierarquias. A ruína da fé pública unida à repressão selvagem, o envilecimento dos serviços (saúde, segurança, educação, transportes) é terreno minado e prestes a explodir. Pesquisas como a de José Álvaro Moisés (USP) mostram a imensa separação entre a "simples cidadania" e os autocratas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.

O gatilho das manifestações que assistimos é a internet e a mobilização das redes sociais. A pólvora é trazida pela insuportável degradação dos serviços. O grito de "fogo" vem com a retomada célere da inflação não combatida por um governo dirigido por João Santana. Agora é esperar os eventos sem neles pespegar etiquetas que aparentemente os explicam, mas só confirmam preconceitos e doutrinas. Enquanto aguardamos, pensemos sobre o dizem dois atilados críticos da política "realista" que nos reprime e explora, Christian Lazzeri e D. Reynié: "O Estado é jogador que não aceita perder. Ele modifica as regras do jogo. O escândalo que encobre a razão de Estado trai nosso cansaço como governados e nosso ceticismo diante das leis constitucionais".

*Professor titular de filosofia e ética da Universidade de Campinas (Unicamp) Correio, página A15-opinião-2103