07/01/2008
Artigo: Breve ensaio sobre a mentira
Roberto Romano*
Ao elevar tributos para compensar o fim da CPMF, o governo age como se fosse seu o monopólio da verdade
“É útil enganar o povo?” (Pergunta do rei Frederico 2º à Academia de Berlim, que dela fez o tema de um concurso público em 1778) Nos EUA existe um serviço oficial para fiscalizar a aplicação das leis e a obediência do governo à fé pública. Trata-se do GAO (Government Accountability Office). Ninguém afirma que naquela federação a palavra dos governantes segue padrões perfeitos, mas o princípio é mantido. No Brasil não existe nada semelhante, e a maioria dos políticos - sobretudo os que deixam a oposição e se instalam no poder - nem sequer imagina o significado da palavra empenhada. A prática usual é deixar de lado compromissos solenes tendo em vista interesses eleitorais e outros menos confessáveis.
Em nossa terra, a responsabilidade ética na administração é anulada pela propaganda política, pessoal ou partidária, e as instituições tornam-se meros instrumentos dos governantes. Aqui, autoridades dizem qualquer coisa que lhes permita vencer crises ou agradar a setores sociais. Elas afirmam algo hoje, e amanhã (literalmente, como no caso dos impostos agora aumentados), anunciam o contrário. Só existe fé pública se governantes e cidadãos acreditam sinceramente no Estado de direito. Recordemos o que diz a lógica sobre tal assunto de natureza ética. A sinceridade, afirma John Austin, é pressuposta na comunicação democrática (“How to do things with words”). Austin fala em “atos infortunados” para marcar os abusos da insinceridade: aconselhar com alvo torpe, culpabilizar o inocente, prometer e não querer cumprir, dessa fonte nasce a mentira. A grande definição da fala mendaz vem de Santo Agostinho : “Dizer o contrário do que se pensa, com intento de enganar”.
Os partícipes da linguagem, como os que se dispõem a jogar xadrez, devem ter o intento efetivo de jogar… xadrez, não dominó. Dizer o contrário do que se pensa significa manipular: eu minto, mas “eles” não podem perceber. Descoberta, a mentira deve recorrer a razões escusas. A verdade não precisa se desculpar. Se a política, como tudo na vida, é jogo regrado, trapaceiam os políticos que não respeitam as regras da accountability. E a trapaça não constrói um Estado democrático, porque neste último a palavra empenhada é a essência da política, ao contrario dos regimes ditatoriais.
A mentira torna-se mais danosa quando a competência linguística é assimétrica. No regime político contrário à liberdade, a licença para mentir permite considerar desiguais governantes e governados. O máximo dessa desigualdade ocorreu nos totalitarismos nazista e comunista. O Diário Oficial soviético chamava-se Pravda (Verdade), mas raramente alguma frase verdadeira surgia em suas páginas. Montaigne definiu a mentira como “valentia diante de Deus e covardia diante dos homens”. A sua essência é a dominação tirânica, pois a cidadania não consegue recusar ou mesmo detectar o engodo. Fé pública e verdade são os esteios dos deveres, das leis, dos contratos. Por antítese conhecida na Novilingua (exposta por George Orwell e na qual guerra é paz, ódio é amor, etc.), os totalitarismos “nunca reivindicaram a si mesmos como prováveis, mas como verdadeiros”, lembra Angela Valcárcel, em El Discurso de la Mentira (Madri, Alianza, 1988). O poder mentiroso se caracteriza por reivindicar para si mesmo o monopólio da verdade. É por semelhantes razões que o mundo político brasileiro começa mal o ano de 2008.
O Executivo federal não respeitou acordos com a oposição e deixou os contribuintes indignados com o ardil, para conseguir a DRU, de prometer não aumentar impostos. Ao proclamar que não aumentaria tributos devido à perda da CPMF, o governo disse “o contrário do que se pensava, com intento de enganar”. Como as instituições civis dependem da confiança (isto é verdade no mercado, em vínculos financeiros, na indústria, nas relações familiares, culturais ou esportivas, etc.), quando os administradores do Estado não se comprometem com o que falam, semeiam desconfiança geral. Eles conseguem algum proveito com suas espertezas, mas os ganhos resultam na corrosão da fé pública, único sustento do Estado de direito. ….Ao não cumprir sua palavra, o Executivo federal subverte o Estado. …. A mentira gera corrupção ampla quando ocorre assimetria de poderes entre os que mentem e os enganados. …. Que os poderosos inimigos da ética nos poupem suas desculpas, pois elas insultam a inteligência dos contribuintes.
Ao elevar tributos para compensar o fim da CPMF, o governo age como se fosse seu o monopólio da verdade
“É útil enganar o povo?” (Pergunta do rei Frederico 2º à Academia de Berlim, que dela fez o tema de um concurso público em 1778) Nos EUA existe um serviço oficial para fiscalizar a aplicação das leis e a obediência do governo à fé pública. Trata-se do GAO (Government Accountability Office). Ninguém afirma que naquela federação a palavra dos governantes segue padrões perfeitos, mas o princípio é mantido. No Brasil não existe nada semelhante, e a maioria dos políticos - sobretudo os que deixam a oposição e se instalam no poder - nem sequer imagina o significado da palavra empenhada. A prática usual é deixar de lado compromissos solenes tendo em vista interesses eleitorais e outros menos confessáveis.
Em nossa terra, a responsabilidade ética na administração é anulada pela propaganda política, pessoal ou partidária, e as instituições tornam-se meros instrumentos dos governantes. Aqui, autoridades dizem qualquer coisa que lhes permita vencer crises ou agradar a setores sociais. Elas afirmam algo hoje, e amanhã (literalmente, como no caso dos impostos agora aumentados), anunciam o contrário. Só existe fé pública se governantes e cidadãos acreditam sinceramente no Estado de direito. Recordemos o que diz a lógica sobre tal assunto de natureza ética. A sinceridade, afirma John Austin, é pressuposta na comunicação democrática (“How to do things with words”). Austin fala em “atos infortunados” para marcar os abusos da insinceridade: aconselhar com alvo torpe, culpabilizar o inocente, prometer e não querer cumprir, dessa fonte nasce a mentira. A grande definição da fala mendaz vem de Santo Agostinho : “Dizer o contrário do que se pensa, com intento de enganar”.
Os partícipes da linguagem, como os que se dispõem a jogar xadrez, devem ter o intento efetivo de jogar… xadrez, não dominó. Dizer o contrário do que se pensa significa manipular: eu minto, mas “eles” não podem perceber. Descoberta, a mentira deve recorrer a razões escusas. A verdade não precisa se desculpar. Se a política, como tudo na vida, é jogo regrado, trapaceiam os políticos que não respeitam as regras da accountability. E a trapaça não constrói um Estado democrático, porque neste último a palavra empenhada é a essência da política, ao contrario dos regimes ditatoriais.
A mentira torna-se mais danosa quando a competência linguística é assimétrica. No regime político contrário à liberdade, a licença para mentir permite considerar desiguais governantes e governados. O máximo dessa desigualdade ocorreu nos totalitarismos nazista e comunista. O Diário Oficial soviético chamava-se Pravda (Verdade), mas raramente alguma frase verdadeira surgia em suas páginas. Montaigne definiu a mentira como “valentia diante de Deus e covardia diante dos homens”. A sua essência é a dominação tirânica, pois a cidadania não consegue recusar ou mesmo detectar o engodo. Fé pública e verdade são os esteios dos deveres, das leis, dos contratos. Por antítese conhecida na Novilingua (exposta por George Orwell e na qual guerra é paz, ódio é amor, etc.), os totalitarismos “nunca reivindicaram a si mesmos como prováveis, mas como verdadeiros”, lembra Angela Valcárcel, em El Discurso de la Mentira (Madri, Alianza, 1988). O poder mentiroso se caracteriza por reivindicar para si mesmo o monopólio da verdade. É por semelhantes razões que o mundo político brasileiro começa mal o ano de 2008.
O Executivo federal não respeitou acordos com a oposição e deixou os contribuintes indignados com o ardil, para conseguir a DRU, de prometer não aumentar impostos. Ao proclamar que não aumentaria tributos devido à perda da CPMF, o governo disse “o contrário do que se pensava, com intento de enganar”. Como as instituições civis dependem da confiança (isto é verdade no mercado, em vínculos financeiros, na indústria, nas relações familiares, culturais ou esportivas, etc.), quando os administradores do Estado não se comprometem com o que falam, semeiam desconfiança geral. Eles conseguem algum proveito com suas espertezas, mas os ganhos resultam na corrosão da fé pública, único sustento do Estado de direito. ….Ao não cumprir sua palavra, o Executivo federal subverte o Estado. …. A mentira gera corrupção ampla quando ocorre assimetria de poderes entre os que mentem e os enganados. …. Que os poderosos inimigos da ética nos poupem suas desculpas, pois elas insultam a inteligência dos contribuintes.