O sentido da voz rouca das ruas
Época - 24/06/2013 |
Como entender o que move milhares a protestar, na opinião de dez analistas convidados por Época
Os protestos que se sucederam em
velocidade e proporções espantosas nas ruas do país deixaram um rastro
de perplexidade no público - e dissolveram, como ácido, os
lugares-comuns que pautavam, até então, o debate político no Brasil.
Jovens apáticos e alienados? Pense duas vezes. Uma classe média de bem
com a vida que leva? Nem pensar. A dimensão do que acontece nas ruas do
Brasil provoca muitas incertezas, mas não deixa dúvidas de que algo
vai muito mal no país. O que exatamente? Época convidou analistas para
refletir sobre as possíveis respostas a essas e outras incertezas
ecoadas nas vozes das ruas. Pode-se especular sobre as causas dos
protestos, mas os comentários colhidos deixam claro que o rumo dessa
onda - e o futuro do país - está em aberto, à espera da próxima
manifestação. E da próxima. E da seguinte... A seguir, algumas das
reflexões.
Roberto Romano – Filósofo, professor da Unicamp
"O Estado brasileiro se tornou dono da
política. O Brasil tem um governo autoritário, que confia na
propaganda; um Congresso que representa não o povo, mas suas lideranças
políticas; e partidos que se multiplicam, sem ligação com a sociedade -
apenas com líderes que fazem o diabo em troca de favores do governo.
Até a UNE foi cooptada. A sociedade deu mais de 1 milhão de assinaturas
para o projeto da lei Ficha Limpa - e o que o Congresso faz? Está
pisando nisso, tentando mudar a lei. O Congresso está dizendo: "O
Estado sou eu, vocês paguem impostos e calem a boca". É natural, então,
que esses estudantes nas ruas tenham ojeriza à política e aos
partidos. Esses jovens estão aprendendo a fazer política sem a tutela
do Estado. É uma espécie de rompimento"
Fernando Abrucio – cientista político, professor da FGV
"O Movimento Passe Livre, que iniciou
as manifestações, tem membros ligados a pequenos partidos. Mas o MPL é
minoria hoje. A maioria dos manifestantes é desorganizada. Essa parte
dos manifestantes, que faz discursos contra a política, cresceu porque o
poder público se recusou a dialogar. Foi um erro. Há tempos esses
movimentos querem falar. Os movimentos sociais arrefeceram desde o
governo Lula, passaram a olhar apenas para o próprio umbigo. O governo
Dilma se distanciou deles. O poder público não entendeu que a vida está
melhor, o desemprego é baixo, mas o dia a dia nas grandes cidades
beira o insuportável. O acesso a bens e serviços públicos está difícil e
caro"
Carlos Guilherme Mota – Historiador, professor emérito da USP
"O Brasil, apesar das aparências, vive o
que o educador Anísio Teixeira chamava de "miséria farta". Vive também
uma aparência de República, quando, na verdade, o sistema político se
liquefez. Quando se chega ao ponto em que o povo não se identifica mais
com o sistema político e começa a haver manifestações, a saída
histórica é a reformulação. Aqui, seria a convocação de uma Assembleia
Constituinte, onde poderia haver representantes desses movimentos que
estão nas ruas. O novo está se apresentando. As elites políticas
brasileiras, praticamente iletradas, não perceberam. A presidente Dilma
Rousseff poderia convocar uma assembleia e abrir discussões sobre
novos modelos políticos para o país"
Maria Rita Kehl – Psicanalista, membro da Comissão Nacional da Verdade
"Nos últimos dez anos, as eleições de
Lula e Dilma levantaram esperanças, especialmente nos jovens. Mas o
modo de fazer política não mudou: continuamos a nos escandalizar com
episódios de corrupção. Isso foi deixando a sociedade num estado
depressivo. O que nos leva a sair dessa expressão depressiva é essa
raiva que eclodiu, a partir das manifestações pela revogação do aumento
de tarifas em São Paulo, mais especificamente da reação da polícia a
essas manifestações. O que vemos não é apenas indignação - passageira.
Vemos uma dor social, provocada pela injustiça. A juventude que está na
rua não tem consciência disso. Está lá porque quer transformar essa
sensação"
Eduardo Giannetti – Economista, autor dos livros Felicidade e Autoengano
"Existe uma correlação entre
participação cívica e o nível de felicidade de uma população. No
Brasil, esse engajamento é pequeno. Espero que esses protestos sejam o
início de uma mudança, não apenas um desabafo. Por trás desses
manifestos está a insatisfação com os serviços públicos oferecidos num
país em que a carga tributária é altíssima: 36%. O aumento da passagem
de ônibus é somente a parte mais visível dessa insatisfação. A inflação
também incomoda. A política de represar o aumento das tarifas públicas
para ajudar a segurar a inflação, depois realizar aumentos expressivos
de uma só vez, assusta a população. A sensação de bem-estar advinda do
aumento da renda ficou para trás, em 2011 e 2010"
David Fleischer – Cientista político, professor da Universidade de Brasília
"O motivo das manifestações é a
oportunidade que surge com a Copa das Confederações. O mundo inteiro
está assistindo. A questão dos 20 centavos foi só um pretexto. Ao final
da Copa das Confederações, veremos um esvaziamento. Com a atenção
despertada pela Copa do Mundo no ano que vem, os manifestos serão ainda
mais intensos. Marina Silva pode se favorecer, porque não está ligada a
nenhum partido tradicional, a nenhum no poder. Os deputados e os
senadores ainda não entendem o que está se passando. E de fato difícil,
porque não é uma mobilização tradicional, com líderes constituídos. É
uma manifestação anárquica, que se organiza por meio das redes sociais.
O "pibinho" e a inflação também ajudam a fortalecer os protestos"
Rony Rodrigues – Publicitário, presidente da agência Box 1824
"O jovem de hoje se organiza em rede.
As diversas perspectivas são colocadas na linha do tempo do Facebook e
formam uma consciência coletiva, descentralizada e sem hierarquia. Além
de mobilizar os jovens a ir para as ruas, esse ativismo permite que
mesmo aqueles que ficam em casa também contribuam disseminando
informação. O jovem de hoje é pragmático, realista. Ele quer promover
mudanças no que afeta seu cotidiano. Esse jovem sempre teve vontade de
fazer microrrevoluções. Desde 2010, já vinham ocorrendo passeatas
isoladas, como pela construção do metrô em Higienópolis ou contra o
(deputado Marco) Feliciano. Como o aumento na tarifa do transporte
afeta todo mundo, foi o estopim para todos irem para as ruas"
Alberto Almeida – Cientista político, pesquisador do Instituto Análise
"Os protestos no Brasil são resultado
de duas coisas: a melhoria das condições de vida e a perda de respeito
da população em relação aos políticos. Quando a vida melhora, o povo se
comporta como no ditado: "Dá a mão, quer o braço". A condição
econômica melhorou com o aumento de consumo, agora querem mais - mas
não respeitam mais os políticos. A visão hierárquica de mundo, do "Você
sabe com quem está falando?", perdeu legitimidade. Os manifestantes
querem melhor uso dos recursos públicos e mais austeridade na vida dos
políticos. Não se trata de uma demanda romântica, mas também não é algo
que possa ser atendido da noite para o dia. Os políticos, todos eles,
dariam um bom sinal para a população se tomassem medidas que
resultassem em cortar mais que gordura: cortar a própria carne"
José Augusto Guilhon Albuquerque - Sociólogo, professor da USP, pesquisador da Unicamp
"Dois pontos unificam essas
manifestações. O primeiro é o temor da volta da inflação, representado
pelo aumento nas tarifas do transporte. O segundo é o sentimento de que
há uma enorme discrepância entre aquilo com que cada um contribui e o
que recebe de volta do poder público. Essa insatisfação aparece nos
pedidos por qualidade de serviços, como os cartazes que exigem
hospitais com padrão Fifa. Para um movimento popular avançar
politicamente, precisa de ideias, identidades e opositores. As ideias
já estão lançadas. As identidades ainda não estão sólidas, não há
líderes firmes, mas isso ainda aparecerá. O papel de opositor ninguém
quer assumir. Neste momento há duas atitudes possíveis para os
governantes: esperar e apostar que o movimento se canse ou chamá-lo ao
diálogo"
Denis Rosenfiel – Filosofo, professor da UFRGS
"Há uma mensagem implícita em todos os
atos e bandeiras que têm sido levantadas nas últimas semanas. Ela pode
ser formulada da seguinte maneira: "Quem paga?". Quem paga o aumento da
tarifa de ônibus? Quem paga o mensalão? Quem paga os estádios da Copa
das Confederações e a Copa do Mundo do próximo ano? Quem paga uma
educação pública de baixa qualidade? Quem paga por um sistema público
de saúde precário? Note-se que todas essas bandeiras estiveram
presentes em manifestações por todo o país, onde o "pagamento" da
tarifa de ônibus se traduziu pelo "pagamento" de todos os problemas
sociais que afligem a vida dos cidadãos brasileiros. E, aqui, nenhuma
instância do Estado se encontra a salvo. Todas sucumbem a essas formas
de "pagamento"
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