Poderes e corrupção
23 de junho de 2013 | 2h 16
ROBERTO ROMANO *
As fraturas no Estado brasileiro fortalecem a corrupção
que entre nós está sedimentada. Naquele artefato político anacrônico o
Poder Executivo é essencial, os demais setores são adjetivos. Ele não se
modificou em profundidade desde 1824 e o poder de quem o controla foi
hipertrofiado após as ditaduras do século 20. A Presidência, para se
manter, deve pedágios aos oligarcas do Congresso e garante a escolha de
seus candidatos aos tribunais superiores. Da crise entre o Judiciário e
parlamentares pode vir um fortalecimento desastroso do Executivo. A
Constituição de 1988 em farrapos não encontra quem a interprete de
maneira inconteste. O mito da harmonia entre poderes é desmentido a cada
minuto. Para entender o desarrazoado que nos rege, podem ajudar algumas
achegas ao pensamento jurídico conservador e liberal.
O Congresso abriga líderes sem compromisso com os programas
oferecidos nas urnas. Eles fazem política sem doutrinas, domesticados
por verbas ou cargos num farsesco realismo miúdo. Em vez de atenuar os
delitos políticos, tal atitude reforça na população a esperança em algum
salvador que, da Presidência e de modo autoritário, limparia os
costumes. O golpe de 1964, recordemos, foi justificado pelo combate à
corrupção. Figuras como Jânio Quadros, Collor de Mello e outras usaram a
indignação das massas para chegar à Presidência, lá ficando por breve
tempo, sem apoio político.
Na história recente as teses da direita elogiam o Executivo em
detrimento dos outros poderes.
É o caso de Carl Schmitt, o autor de A
ditadura. Emulado por juristas como Francisco Campos, Schmitt cunhou a
fórmula segundo a qual "soberano é quem decide sobre o estado de
exceção". Ele foi crítico (e, não raro, com acerto) do Parlamento. Para
levar a sério a democracia, afirmava, só o povo pode decidir o seu
destino e jamais os deputados. Em O Protetor da Constituição, ele apela
ao presidente da República, o único vigia seguro da Carta, e menciona o
Poder Moderador brasileiro posto acima das pretensões parlamentares.
Nega também que o Judiciário possa guardar a Constituição porque age
atrasado para sanar desvios institucionais. "A independência é a
necessidade primeira para um protetor da Constituição", juízes e
deputados não podem cumprir o mister, pois não são independentes o
bastante para garantir o Estado. Só o presidente suspende o direito "em
virtude de um direito de autoconservação". É o golpe e a ditadura.
Schmitt retoma o slogan contra o regime democrático: nele se discute,
pouco se decide. Mas a democracia é um processo no qual não existem
garantias de vitórias sem amarguras. Cada costume melhorado incentiva o
bem público. Hoje, infelizmente, boa parte de nossos parlamentares age
como lobistas. Quando se ouve falar em "bancadas" no Congresso, o que
temos são grupos que atuam em prol de interesses particularíssimos.
Carl Schmitt não cita por acaso a Carta brasileira de 1824. O Poder
Moderador, nela, foi um golpe contra a soberania popular e o Parlamento.
Os idealizadores de nosso Estado seguiram a contrarrevolução europeia. O
movimento de 1789, no seu entendimento, resultou em anarquia. Para
barrar tal ameaça, fomos submetidos ao monarca "pela graça de Deus".
Segundo o conservador Guizot, "o mais simples bom senso reconhece a
necessidade da limitação de todos os poderes, quaisquer que sejam seus
nomes e formas. Abri o livro em que o sr. Benjamin Constant tão
engenhosamente representou a realeza como poder neutro, moderador,
elevado acima dos acidentes, das lutas sociais, e que só intervém nas
grandes crises. É preciso que haja nesta ideia algo muito próprio a
mover os espíritos, pois ela passou com uma rapidez singular dos livros
para os fatos. Um soberano dela fez, na Constituição do Brasil, a base
de seu trono; a realeza é representada como Poder Moderador elevado
acima dos poderes ativos, com espectador e juiz".
Segundo Constant, o Poder Moderador é neutro e apanágio da realeza,
os ministros respondem pelo governo e os legisladores nada recebem. O
julgamento pelo júri é a norma e impera a livre imprensa. No elogio do
Poder Moderador feito por Guizot há um desvio do conceito. Constant
define aquele poder como neutro para coordenar os demais. Pôr os quatro
poderes numa hierarquia vertical foi o golpe em 1824. A tendência
centralizadora definiu o Estado com privilégio do chefe, amesquinhando o
Parlamento e o Judiciário.
As prerrogativas do Poder Moderador, inconfessadas, persistem hoje na
Presidência da República, o que leva às fraturas no Estado, pois o
Executivo negocia apoio parlamentar (com várias técnicas), nomeia os
juízes do Supremo, controla o Senado, mas é praticamente destituído de
responsabilidade. Vivemos como se ainda vigorasse o Título 5, Capítulo
primeiro, artigo 99 da Constituição de 1824. Sagrada, a pessoa
presidencial não está sujeita a sérios questionamentos. Ela domestica,
pela propaganda e controle dos recursos públicos, a soberania popular,
distorce a representação do Parlamento. As duas ditaduras que marcaram o
século anterior levaram ao paroxismo a distorção da máquina estatal. A
Presidência brasileira é absolutista e propensa à ditadura. A lei da
reeleição, as medidas provisórias que se eternizam, a prerrogativa de
foro para agentes dos poderes definem alguns dos principais óbices para a
democracia. E temos a sucessão de crise após crise, porque não existe
limite efetivo para o Executivo. Se este último ignora barreiras, o
mesmo tentam fazer os demais.
Reaparece, surgida da indecisão jurídica
nacional, outra fórmula cunhada por Carl Schmitt: política é o campo
onde os inimigos são definidos. Inimigo harmônico é quimera, algo tão
fantasioso quanto as leis no Estado brasileiro.
* ROBERTO ROMANO É FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP, E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA' (PERSPECTIVA).