segunda-feira, 9 de março de 2009

Carl Schmitt, personagem que se apresentará na audiência de Tarso Genro no Senado.

Algumas considerações sobre o segredo, a democracia, a ditadura. *

Roberto Romano


Depois dos Estados totalitários que desgraçaram o século 20, o poder estatal apresenta agudos problemas. Na dialética contraditória ocorrida no âmbito democrático —os demagogos prometem plena transparência ao povo, mas precisam assumir o segredo estatal, são eleitos pelo voto secreto e, nos palácios, usam o segredo para domar as massas que os sufragaram— o pêndulo vai da licença às tiranias como a nazista. A resposta do poder ao segredo do voto foi o recrudescimento e a manipulação inaudita do segredo de Estado. Examinemos o citado pêndulo num autor estratégico, Carl Schmitt, no livro A ditadura, das origens da idéia moderna de soberania à luta de classes proletárias (1921) ( 1) É dele a mais famosa fórmula do segredo no mundo político moderno : “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. ( 2) Contra Hans Kelsen, Schmitt pensa que o problema da soberania ainda existe no mundo moderno. (3) Schmitt é coerente crítico dos Parlamentos e do sistema representativo (4).

Falando-se seriamente em democracia, pensa Schmitt, só o povo pode decidir o seu destino e jamais os deputados. A expressão “democracia representativa” é um meio de enganar as massas. Da impossível democracia parlamentar Schmitt segue ao Chefe do Estado, o protetor da Constituição posto acima dos entraves da legislação e das regras. O dirigente opera segundo a lógica da excepcionalidade. Em O Protetor da Constituição (5) encontra-se a referência ao Poder Moderador, tal como definido no Império Brasileiro. A importância daquele poder situa-se no controle da soberania popular ou das pretensões parlamentares. Como em outros trabalhos, Schmitt afirma que apenas o Reichspräsident pode defender a Constituição em tempo de crise. O tema gira ao redor do Artigo 48 da Constituição de Weimar. (6) Ao apelar ao Protetor da Constituição, o jurista nega que o judiciário possa exercer aquele papel, porque judiciário é idêntico a normas e age post factum, sempre atrasado na correção dos desvios e fraturas institucionais. Para remediar aquelas situações, apenas o Reichspräsident poderia ser movido, legal e constitucionalmente. Segundo Hans Kelsen, Schmitt reduz a Constituição de Weimar ao artigo 48. (7) Se, como diz Schmitt, “a independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição” e se os juizes ou deputados não podem cumprir aquele mister, segue-se que eles não são independentes, ou independentes o bastante para garantir o Estado. Desse modo, ele retira dos demais poderes a possibilidade de controlar e limitar o Protetor em seu poder excepcional.

O ponto estratégico, julga Schmitt, encontra-se na defesa da exceção, mais relevante no seu entender do que a regra (defendida pelos liberais). A exceção nega a soberania popular ao modo liberal e permite a Schmitt o retorno ao Leviatã. Em Hobbes existiria a tese de um “governo que pode se reclamar da necessidade concreta, do estado das coisas, da força da situação, para outras justificações não determinadas pelas normas, mas pelas situações (…). Isso encontra o seu princípio existencial na adequação ao fim, na utilidade (…) na conformidade imediatamente concreta das suas medidas”. (8) Nas crises, o Estado “suspende o direito em virtude de um direito de auto-conservação”. ( 9) Nas categorias schmittianas sobre o inimigo na ordem estatal, sobretudo no campo diplomático, temos um prenúncio do que se passa em nossos dias no Ocidente. Seja porque o jurista —apesar de totalitário— previu situações perigosas, seja porque seus discípulos (como Leo Strauss), circularam as teses sobre o segredo no Estado, Schmitt fornece pressupostos para conceituar as máquinas de guerra e segredo que determinam os Estados e tendem a conduzir o mundo na era do terrorismo.

Um comentário exato desse status encontra-se em texto de Eva Horn, do qual cito um trecho: “permeado pela guerra em sua dupla essencia e natureza, a inteligência não liga-se ao tipo de poder tipificado pela soberania estatal, mas pela (…) ´máquina de guerra´, um movimento múltiplo de deslocamento no território tão oposto aos princípios de hierarquia e estratificação do ´aparelho estatal´. Guerra é rapidez, segredo, violência, astúcia, enquanto o Estado é entendido como fixidez e enraizamento num lugar, representação, o fim do bellum omnium contra omnes: a lei. A máquina de guerra (…) é externa ao Estado, mesmo quando seus elementos podem ser integrados no aparelho de estado (exército, polícia, e serviços de inteligência). (…) A máquina de guerra é (…) uma dinâmica segundo a qual tudo se aparenta à guerra: sua capacidade de metamorfose e camuflagem, para rapidez e relação estratégica no espaço. Segredo e traição de segredos, desinformação e violação de tratados, propaganda e conspiração são elementos da máquina de guerra, que não pode ser inserida sob os principios da soberania nacional. É o moderno partisan, o clandestino e lutador irregular´ que poderia ser chamado a corporificação paradigmática da máquina (…) de guerra”. ( 10)

A última frase citadas por Eva Horn é marca registrada de Carl Schmitt na Theorie des Partisanen (11). As consequências dessa corrosão do Estado trazem muitos desafios para a vida política internacional. As guerrilhas e as formas rápidas de luta contra inimigos fortes serviram nas batalhas de libertação nacional, da Espanha de 1808 ao Vietnã. Mas as “máquinas de guerra” geradas para enfrentar os movimentos guerrilheiros e inseridas nos Estados colonialistas e imperiais dos séculos 19 e 20, aprenderam as lições da guerrilha. Elas agem na fímbria da ordem estatal. Com o segredo, conduzem uma política marcada pela razão técnica, sem as cautelas diplomáticas que asseguraram a razão de Estado. Os movimentos que apelaram para a guerrilha, em muitos países, seguiram para a desestabilização do Estado de direito e para a truculência ditatorial. O Camboja revelou-se como o máximo de horror nesta linha, com milhões de seres humanos trucidados nos campos da morte. Mas Cuba, que exemplifica uma ditadura surgida de movimentos partisans, tornou-se um problema quase sem solução no século 21. O segredo e a máquina de guerra, num polo da vida política mundial e os terroristas que usam técnicas de guerrilha combinadas com sacrifícios rituais de corpos (os atentados suicidas), em outro, usurpam as prerrogativas legítimas do poder. (12)

Com a Segunda Guerra, a Guerra Fria, o Macarthismo e as formas autoritárias que visualizamos no mundo, o segredo aumentou sua abrangência. Se os países socialistas, supostamente repúblicas populares, quebraram a base da accountability e da fé pública em proveito dos governos, algo similar ocorre hoje na Europa e nos EUA. Hannah Arendt afirma que a vida totalitária deve ser entendida como reunião de “sociedades secretas estabelecidas públicamente”. (13) O paradoxo é só aparente. Hitler examinou os principios das sociedades secretas como corretos modelos para a sua própria. Ele promulgou em maio de 1939 algumas regras do seu partido: primeira regra: ninguém que não tenha necessidade de ser informado deve receber informação. Segunda : ninguém deve saber mais do que o necessário. Terceira: ninguém deve saber algo antes do necessário. ( 14)

Consideremos a lição de Norberto Bobbio: “O governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente à urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (…) o poder oculto não transforma a democracia, a perverte. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus orgãos essenciais, mas a assassina”. (15 )

A democracia moderna surge com a exigência de accountability a ser cobrada dos governos. A radicalidade dos democratas inglêses rendeu frutos na Europa e na América do Norte. Os seus postulados suportam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Woodrow Wilson, insiste sobre o elo entre fé pública e responsabilidade, o que deve atenuar o segredo de Estado. (15 ) A recusa, durante a Guerra Fria, dos elementos jurídicos e políticos sobre a accountability levaram os governos norte-americanos à quebra de padrões democráticos. Isto redundou em prejuízo dos povos em terras hegemônicas e calamidades para os dominados, do Vietnã ao Chile e deste ao Irã e Iraque. O segredo permitiu casos como o Irã-contras, a ajuda aos Talibãs, cuja ascensão ao poder foi entendida como vitória sobre a quase defunta URSS. O segredo permitiu que nas duas guerras do Iraque informações vitais fossem negadas ao público. A administração G. W. Bush conduz o segredo ao máximo ( 16) possível, incluindo-se o engano usado deliberadamente, como no caso das armas de destruição em massa. O segredo embaralha interesses de grupos privados e assuntos de governo, como nas licitações para a reconstrução do Iraque ao redor do petróleo.

A administração Bush empregou meios segretos para atingir alvos internos e internacionais, não raro retrocedendo na política doméstica, quando se trata do mesmo segredo. Em abril de 1994, foi editada uma Public Law (número 103-236) do governo estadunidense criando uma Comissão para reduzir o segredo governamental, tendo a frente Daniel Patrick Moyniham, do Partido Democratico, antigo membro de gabinete dos presidentes Kennedy, Johnson, Nixon and Ford. A comissão publicou um relatório (3/05/1997) cujas palavras iniciais eram as seguintes: "It is time for a new way of thinking about secrecy." Após essa tentativa o secredo retomou a iniciativa.

A tensa passagem do secreto ao público define o destino da democracia. Assistimos, nos últimos tempos, a derrocada quase absoluta de governos democráticos diante de forças antigas da vida social, religiões que exigem o retrocesso à legitimidade com base no divino e novas forças, como o “mercado”. Em nome da “confiança” deste último, programas expostos em longos anos aos cidadãos seguem para o vazio absoluto. Com uso do segredo “planos” econômicos são impostos, lesam os contribuintes em nome de interesses alheios aos seus países. Por outro lado, grupos terroristas atacam os três antigos monopólios estatais, a começar com o da força física, ameaçam a norma juridica. Ao mesmo tempo, os sistemas de narco-tráfico (não raro, como no Afeganistão, unidos ao terror) desafiam tribunais e governos, amealham cúmplices nos três poderes do Estado.

Notas

(1) Die Diktatur. Von den Anfängen des modernen Souveränitätsgedankens bis zum proletarischen Klassenkampf- Munique/Leipzig, Duncker &Humblot Ed., 1928 (2a ed.). Como estigma contra os brasileiros, a terceira edição daquela obra foi editada na Alemanha exatamente em 1964.

(2) Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet . Esta é a primeira frase do escrito sobre a teologia política de Carl Schmitt. Cf. Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveranität. Munique, Duncker & Humblot, 1934. O enunciado apresenta-se não apenas em autores da chamada “direita” internacional, mas também em textos da “esquerda”, como por exemplo em Walter Benjamin. Tem toda razão Jean Pierre Faye, linguista e teórico do pensamento totalitário, quando refere-se à uma “ferradura” terminológica que reúne os vários matizes da paleta ideológica. Durante o nazismo, com a “colaboração” entre URSS e Alemanha, chegou a ser cunhada a expressão tremenda: “nacional-bolchevismo”.

(3) Kelsen, em Das Problem der Souveränität, no contexto das relações juridicas —internacionais sobretudo— diz que “o conceito de soberania deve ser radicalmente eliminado”. Cf. Kelsen, Hans : Il problema della sovranità. (Milano, Giufrrè, 1989). Para uma análise crítica do pensamento de Hans Kelsen, cf. o escrito de Felippe, Márcio Sotelo : Razão Jurídica e Dignidade Humana (SP, Max Limonad, 1996).

(4) Cf. Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus. Munique, Duncker & Humblot Ed., 1926. Existe uma edição brasileira: Carl Schmitt, A crise da Democracia Parlamentar. Trad. Inês Lohbauer, São Paulo, Scritta Ed., 1996.

(5) Carl Schmitt : Der Hüter der Verfassung. Texto ideado em 1929, mas publicado mais tarde. Uso a edição de 1969 (Berlim, Duncker & Humblot).

(6) Recordemos o artigo 48 citado : "Caso a segurança e a ordem públicas forem seriamente (erheblich) perturbadas ou feridas no Reich alemão, o presidente do Reich debe tomar as medidas necessárias para restabelecer a segurança e a ordem públicas, com ajuda se necessário das forças armadas. Para este fim ele deve total ou parcialmente suspender os direitos fundamentais (Grundrechte) definidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124, and 153." Não por acaso disse Carl Schmitt que "nenhuma Constituição sobre a terra legalizou com tamanha facilidade um golpe de Estado quanto a constituição de Weimar”.

(7) Kelsen, H.: “Wer soll der Hüter der Verfassung sein?” Die Justiz 6, 1930-1931. Citado por John P. Mccormick : Carl Schmitt´s Critique of Liberalism. Against Politic as Technology (Cambridge University Press, 1997), página 144.

(8)Cf. Schmitt, Carl: Legalität und Legitimität (1932). Cito a edição italiana: Le categorie del ´politico´ (Bologna, Il Mulino, 1972), página 217.

(9) Cf. Schmitt, Carl : “Definição da soberania”, in Le categorie del ´politico´, ed. Cit. p, 39.

(10) Eva Horn: “Geheime Dienste. Über Praktiken und Wissensformen der Spionage" in Lettre International, 53, 07/ 2001, pp. 56-64. Versão inglêsa na Internet: Knowing the Enemy: “The Epistemology of Secret Intelligence”, no endereço seguinte :
http://www.kuwi.euv-frankfurt-o.de/westeuropaeischeliteraturen/mitarbeiter/horn/knowing%20the%20enemy.html#fn12

(11) 1963, com republicação em Berlim: Duncker & Humblot, 1995.

(12) Segue um trecho do meu artigo "A Razão Terrorista"in O Caldeirão de Medéia (SP, Ed. Perspectiva).

(13) Hannah Arendt : Le système totalitaire. Trad. Bourget, Ed. Davreu et Lévy, Paris, p. 103. 1972. Esta passagem é aproximada, por Jean-Pierre Chrétien-Goni, de um artigo publicado por Alexandre Koyré na revista Contemporary Jewish Record, em junho de 1945, com o título de “The Political function of the modern lie”. Cf. Goni, Jean-Pierre Chrétien: “Institutio arcanae” in Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: Le pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, p. 179.

(14) Citado por Arendt, op. cit. p. 268, nota 90. Cf. Chrétien-Goni, op. cit. p. 179. Para uma análise do pensamento de H. Arendt, cf. Celso Lafer Pensamento, persuasão e poder, RJ, Paz e Terra, 1979.

(15) “Il potere in maschera.” In L´Utopia capovolta. Torino, La Stampa, 1990.p. 62.

(16) Dean, John W.: “Worse than Watergate”, The New York Times, 02/05/04. “…a presiência Bush-Cheney é claramente nixoniana e apenas no que diz respeito ao segredo ela é pior (…). Dick Cheney, que dirige suas próprias operações governamentais secretas declara abertamente pretender que o relógio volte para antes de Watergate, tempo de uma presidência imperial, extra-constitucional e inconfiável (unaccountable). Declarar a sua presidência secreta como anti-democrática é pouco.(…)Woodrow Wilson, com base em seu longo estudo sobre a arte de governar, conclui o que todo mundo sabe, ou seja, que a corrução vigora nos lugares secretos e foge

(17) Cf. Jos C.N. Raadschelders : “Woodrow Wilson on Public Office as a Public Trust” No endereço eletrônico : bush.tamu.edu/pubman/papers/2002/raadschelder.pdf

*Trechos do artigo mais amplo sobre "A Filosofia do Segredo".