domingo, 10 de junho de 2012

A Revista Veja desta semana traz um artigo de dois antropólogos, que visa refutar o ambientalismo. O modo das seitas deixado de lado, tanto nos refutados quanto nos que refutam o ambientalismo (aliás, o "ismo"sempre marca a polêmica em todos os setores do pensamento), peço aos leitores que comparem os trechos abaixo. Nos primeiros, do artigo saido em Veja, são usados os mesmos elementos que eu movi. A diferença é que eu cito André Leroi Gourhan, etnólogo da técnica, que mostra ser o homem, desde seu início, um ser técnico, modelando assim seu próprio corpo. Basta comparar para saber que a fonte é Gourhan, com a diferença que eu o cito extensamente. Náo é o caso do artigo em questão.



A NOSSA NATUREZA É MUDAR A NATUREZA
(…)
A transformação das mãos e dos pulsos permitiu aos nossos antepassados andar cada vez mais eretos, caçar, comer carne e, assim, evoluir. Com a mudança na postura, o homem conseguiu correr atrás de animais atingidos por suas armas. A corrida de longa distância foi facilitada por glândulas sudoríparas que substituíram os pelos. O uso do fogo para cozinhar a carne adicionou uma quantidade muito maior de proteína à dieta, o que resultou em crescimento significativo do cérebro - tanto que algumas de nossas ancestrais começaram a dar à luz prematuramente. Esses bebês prematuros sobreviveram graças à criação de ferramentas feitas com vesículas e peles de animais que amarravam os recém-nascidos ao peito da mãe. A tecnologia, resumindo, nos tornou humanos.

É claro que, conforme nosso corpo, nosso cérebro e nossas ferramentas evoluíram, também evoluiu nossa habilidade de modificar radicalmente o ambiente. Caçamos mamutes e outras espécies até a extinção. Queimamos florestas e savanas inteiras para encontrar mais facilmente a caça e limpar a terra para a agricultura. E, muito antes de as emissões de CO² pela ação humana começarem a afetar o clima, já tínhamos alterado o albedo da Terra, substituindo muitas das florestas do planeta por áreas de agricultura cultivada. Mesmo que a capacidade do homem de alterar o ambiente, ao longo do último século, tenha aumentado substancialmente, essa tendência é antiga. A Terra de 100, 200 ou 300 anos atrás já havia sido profundamente moldada pelos esforços humanos — os entretítulos são deste escriba.
(…)
 

Michael Schellenberger/Ted Nordhaus

E agora leiam, por favor, o trecho do artigo que reproduzo abaixo, texto de 2010, de minha autoria :

André Leroi -Gourhan (7) em Evolução e técnica (8) examina as artes de fabricação, aquisição ou consumo. Ali ele expõe o quanto o elemento tecnológico define a vida social e mostra a vida forjada pela técnica como um sistema onde, dado um traço os demais se definem, com maior ou menor densidade e coerência. O sistema de ciências e técnicas ergue-se contra o acaso. Assim, “o processo humano, surgido dos constrangimentos biológicos, desenvolvendo-se na ordem dos signos, apressado pela indústria e figurado pelas técnicas da comunicação, é processo cumulativo. O passado da espécie condiciona o futuro da etnia”. (9)

Os movimentos tecnológicos e científicos são conquistas milenares: a postura ereta, a linguagem, a imaginação, a memória. Gourhan aceita a explicação de que o aumento de nosso cérebro vem da solidariedade funcional entre ele e as mãos. O primeiro ganha com os progressos da adaptação locomotora e não a provoca. “Tudo se passa como se o cérebro viesse progressivamente ocupar os territórios anteriores, na medida que eles se liberavam dos constrangimentos mecânicos da face”. Cede o prognatismo, o qual diminui progressivamente “em coesão estreita com a base de sustento do edifício craniano”. Dada a regressão dentária, segue-se a expansão cerebral: “Somos inteligentes porque ficamos de pé”.

Também por tal motivo nossa mão pode segurar e transformar. Ficamos erguidos por adaptação. Esta é a constante no movimento evolutivo. “O técnico comporta-se frente à matéria, que ele ataca, em função de certos meios de atividade, do mesmo jeito que o ser vivo, no interior de seu meio”. Só há produção para o ente vivo, para a técnica, para as sociedades, sob constrangimento. A evolução transforma o constrangimento em tendência adquirida pela espécie. As faculdades do cérebro e das mãos, em milênios, se tornam tendências inconscientes, mas ativas nas sociedades.

O instrumento é conseqüência da mão. “O homem não é um resultado, ele é um produto, e mesmo seu produto, um ser que soube e pode acomodar sua contingência, aproveitar a si mesmo e ao meio”. A humanidade vive, desde época remota, no “meio técnico” cuja tendência é substituir o natural.
Nenhuma técnica existe isolada e toda sociedade é politécnica. O instrumento ou processo ausente num coletivo humano encontra-se em outro, premido à sua invenção pelos desafios naturais. São fatos diferentes “ter” um instrumento e “fixar” o mesmo instrumento. Só na segunda via o objeto é “digerido” pelo meio, “integrado ao seu capital, porque é harmônico à politécnica preexistente ao grupo.” (Guérin). (10) Entre a vida e a morte, o instrumento técnico possibilita uma tripla sequência comportamental (agressão, aquisição, alimentação), de preensão (lábio-dental, digito-palmar, interdigital e projeção), de percussão (dentária, manual, unguear). (11) Para quem se apresta a olhar o ente humano com as lentes da etnologia, portanto, nada surpreende quando se trata de perceber os acréscimos trazidos ao corpo e à mente pelas próteses avançadas de nossos dias. Se nós mesmos somos o resultado técnico de nossa atividade corporal, quando novos instrumentos auxiliam a aumentar nossa força e poder sobre o universo e sobre a sociedade, tal fenômeno inscreve-se numa continuidade milenar, durante a qual produzimos o que entendemos como homo sapiens.
Permanece, no entanto, o problema ético sempre espantoso: todas as melhorias que fazemos em nossa estrutura somática e funcional têm mão dupla. Elas podem nos conduzir para o convívio que nos refina em termos éticos, estéticos, religiosos, científicos, ou à destruição dos que julgamos estrangeiros, inferiores, bárbaros. É semelhante ponto o examinado no livro pungente de Jonathan D. Moreno, Mind Wars, brain research and National Defense. (12)





Técnica, guerra, ética
Roberto Romano
11 de março de 2010

Existem valores perenes na luta em prol dos direitos humanos. Como em tudo o que é finito, tais valores possuem o seu lado oposto, os quais não raro os arruinam. Impossível pensar a humanidade sem a técnica e a ciência. Mas é necessário olhar para os desvios acarretados por semelhantes forças. Vejamos um traço grave, antigo mas que hoje preocupa os que defendem direitos, as intervenções técnicas no corpo humano, implicados nos avanços da engenharia eletrônica. Como é sempre possível esperar, tais investigações ligam-se ao fato guerreiro.

Recordemos os antigos elos entre pesquisa médica e o treino para a guerra, traço comum entre ciência e morte nas batalhas. O tema assume característica nuclear nas culturas que iniciaram a nossa ética e política. Torna-se preciso, hoje, quando o fato bélico mostra face múltipla (do terrorismo sectário ao terror do Estado), meditar sobre os vínculos entre laboratórios e guerra. 


A Grécia legou ao Ocidente a concepção de história, racionalidade, ciência, técnica e guerra. Aspecto essencial na preparação grega para as batalhas é a sua violência. O ateniense é formado para ser amável, simpático, educado para com os seus iguais. Como o cão, ele protege o clube político chamado polis. Mas deve ser violento como os lobos face aos inimigos. A palavra agon resume o caráter daquela cultura, analisada por Victor Davis Hanson (1) em livro cujo nome diz tudo : Carnage and Culture. A “superioridade” grega encontra-se no combate aos “bárbaros” e na violência racional. Aristóteles e outros filósofos criticam as técnicas da simples melhoria física sem a simultânea valorização ética (“A honra, não a ferocidade deve ser a primeira parte da educação; pois não é o lobo nem algum outro animal selvagem que fará nobres aventuras, mas um bom homem. Quem leva os meninos a seguir exercícios árduos em demasia e não os treina nas coisas realmente necessárias, os fazem vulgares e baixos”).

A violência da cultura grega não era percebida pelos seus próprios educadores e políticos. Para eles, os bárbaros seriam “os outros”. A beleza e a bondade teriam morada na terra grega. Aristóteles critica a tortura dos jovens, que só os torna aptos ao uso da força sem inteligência. A ética deve reunir a melhor forma física e os valores. A truculência ateniense se revelou na guerra do Peloponeso descrita por Tucídides. Não por acaso, aquele texto foi traduzido por Thomas Hobbes, um exercício preliminar para se entender a guerra de todos contra todos, na qual o homem é o lobo do homem. 

 Assim, temos a questão ética que incomoda a educação técnica do corpo para a guerra. A ciência, a técnica, a racionalidade estratégica, a coragem dos lobos, inspira a Grécia e o mundo ocidental ao colonialismo e ao imperialismo.

Passo a outro problema das culturas ocidentais. A tendência a espacializar o tempo também nasce na Grécia. A racionalidade grega, incluindo-se a estratégia para vencer o tempo, reduz os fenômenos físicos e espirituais ao espaço. Tal espacialização é unida à técnica e à ciência que transformam homens em objetos passíveis de mudança, correção, “educação”. 


Os “bárbaros” orientais, para os gregos e para os europeus até os dias recentes, estavam presos ao mundo externo, não o dominavam. Em semelhante tradição, os alheios à Europa estariam presos ao mundo externo. O primeiro passo para dominar a natureza é dominá-la em nosso corpo, eis a lição grega. Segundo Hegel, a história universal é a educação (Zucht) da vontade. O vocábulo carrega o sentido violento de repressão. “Zuchthaus é casa de correção, cadeia. Zuchtigen implica em açoitar, castigar. O indivíduo bem-comportado, educado, honesto e casto porta uma zuchtigkeit. Zuchtmeister pode ser tanto o preceptor quanto o carcereiro. Finalmente, o vocábulo adquire seu pleno sentido de apuro, de refinamento das potencialidades naturais, quando se lembra que zuchtvieh é gado de raça”. (2)

Passamos, no mundo ocidental, por tentativas de conseguir o “apuro” da ordem humana. Os esportes (3) a educação física uniram-se, não raro, à tentativa de “melhorar a raça”. E os “inferiores” (os pobres habitantes das montanhas norte-americanas, os judeus, os ciganos, os homossexuais, os asiáticos, os negros) sofreram uma guerra de extermínio cujo nome é eugenia. (4) Não me detenho em tal aspecto, ele mesmo herdeiro da Grécia e de sua visão pedagógica e bélica.

Importa, do ponto de vista ético lembrar a tecnologia de controle de corpos e de almas, aplicada em campanhas de extermínio dos “inaptos” (assim decretam os “superiores”) para a vida no planeta. As pesquisas médicas, de engenharia e genética em nossos dias podem seguir (isto não é necessário, nem está definido na essência do saber científico) o rumo iniciado pela antiga e renitente história do “aperfeiçoamento” dos pretensos superiores e das ameaças contra os supostos inferiores. Existe a tentação de reduzir o ato educacional ao “apuro” e disciplina, à seleção dos “melhores”. Mas é possível sugerir caminhos diferentes na ética e na ciência. Esta última, mais as técnicas, não se destinam apenas à tarefa que frutificou na guerra ocidental ou nas lutas pela eugenia. Recordo a análise de um pensador de nossos dias, em livro ainda recente. 



Massimo De Carolis discute a engenharia cognitiva e biológica e tenta fugir de um risco comum às análises favoráveis ou contrárias às ciências e técnicas. É redutor, no seu entender, todo exame que elude o fato de que os significados do mundo humano podem ser compreendidos cientificamente. E para tal fim, é necessário que a informação sobre a humanidade seja tão acessível quanto a informação sobre os demais campos da natureza. Existe, constata ele, informação e existe rumor (palavra com sentido ou palavrório, diriam os filósofos clássicos). 


Os homens compreendem informações e rumores no interior da natureza e no seu campo específico. Eles distinguem a si mesmos do ambiente natural. E captam sentidos sobre a sua vida. Nesta faina, De Carolis distingue três aspectos essenciais: a performatividade, a virtualidade, a auto-referência. A performatividade é o poder de constituir um sentido por um ato fundador. A virtualidade é a marca dos eventos de sentido nunca estabelecidos definitivamente, mas re-definidos sempre, em novos nexos entre signo e rumor. Auto-referência é a força de representar a si mesmo e distinguir a si mesmo do mundo externo. 


Os animais parecem incapazes de constituir e reconstruir o sentido dos signos, eles movem-se num circulo automático de resposta aos estímulos. O automatismo permite responder aos estímulos de modo sempre mais perfeito, excluindo a massa de signos supérfluos. Na base da técnica da qual partem os humanos, não se encontram a performaticidade, a auto-referência, a virtualidade, elementos do ato ético livre. (5) Sublinho a última palavra.

Desde o pensamento grego, o universo e a política foram entendidos com a metáfora da máquina. A modernidade consagrou o automatismo para o ser humano, o tool making animal. Produzimos os nossos corpos como instrumentos de nossa mente e a sociedade como instrumento de nossos alvos, inventamos máquinas de guerra e paz. E nos habituamos ao referido horizonte, como se as máquinas tivessem significado em si mesmas. 


Hoje somos praticamente presos da técnica que permite transmitir informações –esta inclui a Internet mas soma a mídia, o cinema, etc.– que atenua o sentido e a liberdade. No aperfeiçoamento corporal, máquinas são oferecidas como substitutas eficazes da ação volitiva, tendem a dispensar os intentos humanos. O Estado e o mercado dispensam entes voluntariosos que decidem este ou aquele rumo coletivo. A política econômica e a política representam automatismos que operam como se fossem instrumentos infalíveis.

As guerras são vividas como espetáculo televisivo ou fílmico pelos que não as sentem no corpo, pelo menos nos seus primeiros instantes. O treino para o automatismo conduz às mesmas atitudes dos antigos gregos diante dos outros povos e culturas, vistos como estranhos, perigosos e inferiores. É “natural” que eles sejam vencidos em batalhas “científicas”, com bombas “inteligentes”. Mas um traço pouco discutido, neste âmbito, é o nexo entre a ciência, o ensino e a guerra. Vejamos um exemplo. 


Em 1983 E. Pozzi analisa a tendência ao controle maquinal das atividades lúdicas e do esporte. Refiro-me ao artigo intitulado “Giochi di guerra e tempi di pace”. O texto examina a espacialização do tempo cujos exemplos mais relevantes, no mundo contemporâneo, são os jogos de guerra e o esporte. As duas formas de diversão expõem formas da consciência ética automatizada e prestes a ser movida no interesse do extermínio dos “inferiores”. 

Os jogos de guerra surgem com o Estado moderno, entendido e praticado como imensa fábrica de controle político. Desde Platão a idéia de que o universo físico e humano são artefatos produzidos com arte e técnica, os quais devem ser dirigidos por sábios competentes, habita as mais importantes teorias políticas. Basta que se pense em Thomas Hobbes. O Estado-máquina é desafio importante: não por acaso Platão o ideou contra a democracia ateniense, lugar onde nasce a nossa imaginação política. Confiantes na eficácia da polis dirigida por sábios, contra a instabilidade das massas, o pensamento assumiu o cálculo e a eficácia que instauram o Estado e se oferecem para Max Weber na figura do “Estado fábrica” onde todas as conexões são artificiais e mecânicas. A essência burocrática seria o resultado lógico dos séculos de razão mecânica (6).

André Leroi -Gourhan (7) em Evolução e técnica (8) examina as artes de fabricação, aquisição ou consumo. Ali ele expõe o quanto o elemento tecnológico define a vida social e mostra a vida forjada pela técnica como um sistema onde, dado um traço os demais se definem, com maior ou menor densidade e coerência. O sistema de ciências e técnicas ergue-se contra o acaso. Assim, “o processo humano, surgido dos constrangimentos biológicos, desenvolvendo-se na ordem dos signos, apressado pela indústria e figurado pelas técnicas da comunicação, é processo cumulativo. O passado da espécie condiciona o futuro da etnia”. (9)

Os movimentos tecnológicos e científicos são conquistas milenares: a postura ereta, a linguagem, a imaginação, a memória. Gourhan aceita a explicação de que o aumento de nosso cérebro vem da solidariedade funcional entre ele e as mãos. O primeiro ganha com os progressos da adaptação locomotora e não a provoca. “Tudo se passa como se o cérebro viesse progressivamente ocupar os territórios anteriores, na medida que eles se liberavam dos constrangimentos mecânicos da face”. Cede o prognatismo, o qual diminui progressivamente “em coesão estreita com a base de sustento do edifício craniano”. Dada a regressão dentária, segue-se a expansão cerebral: “Somos inteligentes porque ficamos de pé”.

Também por tal motivo nossa mão pode segurar e transformar. Ficamos erguidos por adaptação. Esta é a constante no movimento evolutivo. “O técnico comporta-se frente à matéria, que ele ataca, em função de certos meios de atividade, do mesmo jeito que o ser vivo, no interior de seu meio”. Só há produção para o ente vivo, para a técnica, para as sociedades, sob constrangimento. A evolução transforma o constrangimento em tendência adquirida pela espécie. As faculdades do cérebro e das mãos, em milênios, se tornam tendências inconscientes, mas ativas nas sociedades.

O instrumento é conseqüência da mão. “O homem não é um resultado, ele é um produto, e mesmo seu produto, um ser que soube e pode acomodar sua contingência, aproveitar a si mesmo e ao meio”. A humanidade vive, desde época remota, no “meio técnico” cuja tendência é substituir o natural.
Nenhuma técnica existe isolada e toda sociedade é politécnica. O instrumento ou processo ausente num coletivo humano encontra-se em outro, premido à sua invenção pelos desafios naturais. São fatos diferentes “ter” um instrumento e “fixar” o mesmo instrumento. Só na segunda via o objeto é “digerido” pelo meio, “integrado ao seu capital, porque é harmônico à politécnica preexistente ao grupo.” (Guérin). (10) Entre a vida e a morte, o instrumento técnico possibilita uma tripla sequência comportamental (agressão, aquisição, alimentação), de preensão (lábio-dental, digito-palmar, interdigital e projeção), de percussão (dentária, manual, unguear). (11) Para quem se apresta a olhar o ente humano com as lentes da etnologia, portanto, nada surpreende quando se trata de perceber os acréscimos trazidos ao corpo e à mente pelas próteses avançadas de nossos dias. Se nós mesmos somos o resultado técnico de nossa atividade corporal, quando novos instrumentos auxiliam a aumentar nossa força e poder sobre o universo e sobre a sociedade, tal fenômeno inscreve-se numa continuidade milenar, durante a qual produzimos o que entendemos como homo sapiens.
Permanece, no entanto, o problema ético sempre espantoso: todas as melhorias que fazemos em nossa estrutura somática e funcional têm mão dupla. Elas podem nos conduzir para o convívio que nos refina em termos éticos, estéticos, religiosos, científicos, ou à destruição dos que julgamos estrangeiros, inferiores, bárbaros. É semelhante ponto o examinado no livro pungente de Jonathan D. Moreno, Mind Wars, brain research and National Defense. (12)

Filho de famoso pesquisador que definiu parâmetros de saber sociológico e médico durante a Segunda Guerra Mundial, Moreno inicia seu relato com um episódio significativo. Quando era jovem, certo dia um grupo de quase adolescentes chega à sua casa em ônibus escolar e segue para o laboratório de seu pai. Anos mais tarde ele pergunta à sua genitora o motivo da visita inusitada. E fica sabendo que as quase crianças serviram para testas o LSD. O fascínio com a droga veio de pesquisadores que trabalhavam em Harvard, que estudavam a droga desde 1950. O primeiro ponto ética controverso, portanto, reside nos experimentos com seres humanos, jovens e inexperientes. O segundo, é a pesquisa ter sido conduzida em segredo. E o terceiro é grave como os anteriores: a pesquisa era, em parte mais do que considerável, feita em prol das agência encarregadas pela segurança nacional. Como diz Moreno: os sonhos de Thimothy Leary, um guru do tipo hippie que desejava mudar a sociedade com a droga em questão “could trace their roots to America’s early cold war defense establishment”. (13) 


Anos depois, o filho encontra-se em posição de pesquisa em bioética, numa faculdade de medicina, para trabalhar em certo Comitê Presidencial para o estudo de experimentos em radiação, com as seqüelas nos seres humanos, patrocinados pelo governo norte-americano desde 1940. Seu trabalho seria acompanhar a história secreta (classified) do financiamento oficial em experimentos humanos. Dessa maneira, percebeu as conexões entre o uso do LSD e outros meios de influência sobre o cérebro e a CIA e o Pentágono, pelo menos desde 1960. O interesse anterior, também descobriu ele rapidamente, dos mesmos organismos de espionagem e de guerra, continuam no campo da neurociência.

Pouco a pouco Moreno amealhou dados sobre a defesa nacional e seus financiamentos, e a pesquisa em neurociência. Um outro fato significativo em termos éticos : grande parte dos cientistas, brilhantes, pouco sabia sobre a origem dos financiamentos globais de suas investigações, ou imaginavam que o nexo entre financiamento e o que faziam pouco trazia para ser pensado no campo prudencial. Quando recolheu dados suficientes que lhe permitiam dizer que o vínculo entre segurança nacional e pesquisas em neurociência, neurofarmacologia e áreas conexas era extenso e em crescimento, ele notou também que poucos discutiam “many fascinating ethical and policy issues that might emerge from this relationship”.





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1 Victor Davis Hanson: The Western Way of War. Infantry Battle in Classical Greece. Berkeley, University of California Press, 1989; Carnage and Culture. NY, Random House, 2001.
2 Cf. Roberto Romano : Conservadorismo Romântico, Origem do Totalitarismo (SP, Unesp, 1997).
3 Elias, Norbert e Dunning, Eric. Quest for Excitement: Sport and Leisure in the Civilizing Process. Oxford, Basil Blackwell, 1986.

4 Edwin Black: A guerra contra os fracos. A eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça superior. Tradução Tuca Magalhães, São Paulo, A Girafa Ed., 2003.
5 Massimo de Carolis, La vita nell´ epoca della sua riproducibilità tecnica. Torino, Bollati Boringhieri, 2004.
6 “Do ponto de vista da sociologia, o Estado moderno é uma ‘empresa’ com o mesmo título de uma fábrica. Nisto consiste precisamente seu traço histórico específico. E também deste modo se acha condicionada de maneira homogênea a relação do mando (Herrschafttsverhältnis) no interior da empresa”. Cf. Wirtschaft und Gesellschaft. Fünfte Revidiert Auflage (1972, p. 825). A separação (Trennung) entre os meios de administração e o seu operador, na empresa e no Estado, define a burocracia que opera maquinal e hierarquicamente. No Estado, o maquinismo segue a lógica do cálculo, sem que a sua marcha possa receber modificações políticas. É desse desencanto que Weber partilha e legou aos seus herdeiros de “esquerda” ou “direita”, como Lukács ou Schmitt. Este último, com enorme importância em autores estratégicos do chamado “neo” liberalismo, como F. Hayeck.
7 Existem outras concepções do elemento técnico, como as avançadas por Andre -Leroi Gourhan, Elias Canetti, e outros analistas da vida humana em sociedade. Discuto estes autores em artigos espalhados nos livros que publiquei. Cf. entre outros, Roberto Romano: “Ciência e tecnologia no Brasil, questões de Estado” in O desafio do Islã e outros desafios. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2004, páginas 245-266. Roberto Romano: “soberania, segredo, Estado democrático” in Política Externa, Vol. 13 número 1, Julho/Agosto 2004, pp. 15-28.
8 Evolution et Technique. Paris, Albin Michel , 1973
9 Michel Guerin, “Leroi -Gourhan, notre Buffon”. Révue de Metaphysique et de Morale, 2, 1977, página 174. Sigo passo a passo o comentário de Guerin a Gourhan..
10 Cf. também Canguilhem, Georges: La connaissance de la vie (Paris, Vrin, 1980), p. 124. Canguilhem cita o livro Milieu et techniques de Leroi-Gourhan.
11 Guérin, M. op. cit. páginas 186-187.
12 New York, Dana Press, 2006.
13 Moreno