quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Comentário: há menos de um mes atrás, na Globo News, em debate sobre o exagero do Congresso quanto ao número de vereadores, um grão tucano, com ares de Infalível Santidade (o que é inevitável em intelectuais tucanos), me "corrigiu"quando eu disse que sem trocas no Parlamento entre Executivo e oligarquias, os prefeitos do interior ficariam sem verbas. Parece que outras pessoas, com informações idênticas às minhas, deveriam também receber "correções" do Vaticano tucanístico. No próprio programa o dogmático recebeu correções, sobre o mesmo assunto, de outra convidada. É assim o mundo: quando as "teses" (melhor dizendo, dogmas) devem ser impostas aos alheios às seitas, se ocorre de fato um debate os pontos fracos dos enunciados aparecem, para desespero dos que pensam ter à disposição apenas ouvidos obedientes. Os trechos sublinhados em vermelho se devem ao Blog República de Itapeva, e com eles concordo.
RR


"Viver de província"

MARCO ANTONIO VILLA, FOLHA SP


Apesar do grande progresso econômico e de concentrar parte expressiva do PIB, o interior continua marcado pelo provincianismo


NO FINAL do Império, em meio às turbulências políticas, Júlio Ribeiro -escritor, gramático e polemista republicano- cunhou a expressão "viver de província", nas suas "Cartas Sertanejas". Era uma definição sarcástica do pobre cotidiano político-cultural do interior de São Paulo. Depois de 120 anos, pouco mudou:apesar do grande progresso econômico e de concentrar parte expressiva do PIB brasileiro, o interior continua marcado pelo provincianismo.A inexpressividade política do interior é suprapartidária. Vez ou outra algum grupo tenta ter espaço regional, mas acaba fracassando. O último foi a conhecida "República de Ribeirão Preto", expressão cunhada para designar os aliados do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, em Brasília.

Porém, a denúncia de uso pouco ortodoxo de uma mansão, na capital federal, levou ao naufrágio do grupo, mesmo com a eleição de Palocci para deputado federal. E o interior, para o bem ou para o mal, continuou sem liderança expressiva.A Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) poderia ser um palco para o aparecimento de lideranças interioranas. Contudo, das suas atividades pouco ou nada se sabe. Muitos nem sequer imaginam onde, na capital paulista, se localiza o prédio de um dos Poderes do Estado.

Dos seus 94 deputados, mesmo os que acompanham a política regional sabem, se tanto, o nome de meia dúzia. O noticiário político prioriza o Congresso Nacional. A Alesp é solenemente ignorada: só é notícia quando ocorre denúncia de um suposto escândalo administrativo. Outra possibilidade seria a ação de alguma administração municipal que se notabilizasse pela inovação. Mas, dos mais de 600 municípios interioranos, quais poderiam ser destacados pela originalidade administrativa?

A política estadual concentra-se na capital e, no máximo, na Grande São Paulo. Os líderes partidários que têm presença nacional também atuam nessa região. O interior é marcado pelo situacionismo, pela política do "sim, senhor". Os prefeitos mudam de partido acompanhando a base política do governador. Não têm opinião formada. E os deputados são cobrados pelos seus eleitores para trazer recursos para suas bases, e o preço é sempre apoiar o governo.

No campo cultural, apesar do grande número de faculdades e universidades instaladas no interior, não houve mudança. O conservadorismo local venceu a potencialidade transformadora da universidade.

Eventualmente professores universitários passaram a participar da política local, mas sempre buscando alguma forma de composição política com os poderosos locais. E, quando necessário, os conservadores utilizaram-se da violência para expulsar os professores indesejáveis, como em São José do Rio Preto, logo após o golpe de 1964, na faculdade local e que hoje é parte da Unesp.Há uma valorização absoluta do dinheiro e um desprezo pela cultura.

Em muitas cidades há mais joalherias que livrarias. As políticas culturais são fadadas ao fracasso. O poder público -tal qual a maioria dos eleitores- não tem interesse nas atividades culturais: elas não dão voto e, por vezes, dão problemas.Em Araraquara, depois do espetáculo "Mistérios Gozosos", de Oswald de Andrade, José Celso Martinez Corrêa e grupo foram processados, acusados de "vilipendiar atos e objetos de culto religiosos". O processo foi movido por araraquarenses incomodados "moralmente" com o trabalho de Zé Celso.

Uma "atividade cultural" muito conhecido no interior, espécie de marca regional, é o massacre anual de animais conhecido como Festa do Peão Boiadeiro, em Barretos. Como tudo que é ruim, prolifera rapidamente: os rodeios espalharam-se pelo Estado. No Vale do Paraíba, criaram até um rodeio para Cristo, que, certamente, deixaria o Nazareno horrorizado.A maioria dos jornais é subsidiada pelo poder público ou por algum potentado local. O nível das publicações é rasteiro. O espaço da coluna social é várias vezes superior ao destinado a temas políticos.

Quando surge uma imprensa independente, os jornalistas passam imediatamente a ser perseguidos e ameaçados. Basta recordar, entre tantos outros exemplos, dos tristes episódios de Marília, que envolveram um conhecido político local e o ataque criminoso às instalações do "Diário".Júlio Ribeiro morreu em 1890, aos 45 anos. Viu muito pouco do Brasil com que sonhou: sem escravos e republicano. Mas o interior não mudou: tal qual no final do século 19, continua impressionando pelo dinamismo econômico e pelo provincianismo.


MARCO ANTONIO VILLA, 52, é professor de história da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor, entre outras obras, de "Vida e Morte no Sertão - História das Secas no Nordeste nos Séculos 19 e 20" (Ática).