terça-feira, 3 de março de 2009

Os candidatos aos cabides, ou seja, a Câmara de Vereadores, insistem. Vale recordar o "passado".

São Paulo, quarta-feira, 17 de novembro de 2004



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TENDÊNCIAS/DEBATES

Eleitos e pães quentinhos

ROBERTO ROMANO

Antes das eleições, reuniram-se os vereadores de Mogi-Guaçu. Na pauta, a extinção de uma experiência pedagógica, a Câmara Jovem. Ali os moços aprenderiam a servir a cidadania. Mas alguns vereadores mirins discutiram os ritos religiosos (leitura da Bíblia e outros) que marcam a liturgia da Câmara adulta. Se o Estado brasileiro é laico, disseram, seria errado evocar símbolos clericais nos debates. Os vereadores consideraram a pergunta insuportável. A mordaça imposta aos jovens lhes ensinou que não existia liberdade de palavra no "Legislativo" a eles destinado. A lição os une aos brasileiros descrentes na democracia e que, em pesquisa atual, admitem ditaduras.

Mas aquele ensino não é o único na ata referida. Um edil propõe "valorizar o Poder Legislativo porque chegou a nossa hora. Muita gente que está lá fora gostaria muito de estar em nosso lugar. Quanta gente tem ciúmes da gente por estarmos aqui". E não é de sentir inveja? Com salários, carros, assessores, título de "Excelência", que permite atacar os que pagam impostos (os invejosos), ninguém desdenha cargos eletivos.



Se o parlamentar sente os cidadãos "comuns" como adversários, fica estabelecida uma disputa desleal



O mesmo edil denunciou o decréscimo de vereadores imposto pela Justiça: "Todos nós que vamos voltar aqui saímos do forno agora; nós somos pães quentinhos, nós fomos votados, o povo votou em nós. Se quisessem tirar a gente daqui, as urnas iriam tirar, mas, se fossem 19 vereadores, acho que todos voltariam". A confusão semântica, devida à oralidade, deve ser traduzida: o parlamentar afirma que ele e alguns colegas foram eleitos em data recente. Se o número dos vereadores fosse maior do que o permitido, o povo ainda assim neles confiaria.

Como a fé pública (a famosa "accountability" ideada pelos revolucionários ingleses do século 17, a começar por John Milton) é o campo onde o povo percebe a confiança merecida pelos que exercem um poder, é possível dizer que existe uma enorme deficiência de credibilidade no Legislativo brasileiro. Quando edis referem-se aos que estão "fora" do Parlamento como "invejosos", eles confessam pertencer a uma casta cujos privilégios deturpam a República.

Elias Canetti ("Massa e Poder") mostra que os deputados são emissários da paz no corpo social. Neste último impera a guerra de todos contra todos. A função dos eleitos é garantir uma trégua no mundo dos negócios (em que todos se matam por interesse e concorrência), das lutas entre os setores profissionais, dos ódios entre as pessoas privadas. Se, em vez de empunhar a bandeira branca, os parlamentares se julgam adversários dos que "estão fora" do poder, eles continuam naquele recinto -a luta de todos contra todos- e se mostram indignos dos cargos. Esse é o núcleo vital do necessário decoro parlamentar.

Núcleo que novamente foi desprezado com a nova investida da "base aliada" do governo, que, logo após as eleições municipais, reiterou o vergonhoso "é dando que se recebe". E os gabinetes ministeriais cedem agora porque não cumpriram em tempo certo a distribuição normal dos recursos. O único espetáculo de crescimento que observamos é o da falta do mínimo decoro na administração do país. Se deputados deixam sua dignidade de representantes do povo soberano e assumem o papel de chantagistas do Poder Executivo, escolhem o estatuto de simples particulares, o que esgarça os laços de solidariedade entre eles e os cidadãos.

É nessa hora que eleitores podem ter "inveja" dos eleitos, visto que estes últimos não garantem mais a lei que protegeria a ordem civil. Se o parlamentar sente os cidadãos "comuns" como adversários, fica estabelecida uma disputa desleal. Os pagadores de impostos não dominam o monopólio da força física (e os outros atributos do Estado, a norma jurídica e a taxação do excedente econômico), enquanto quem exerce cargo público aproveita oportunidades proibidas ou mais difíceis para os particulares, inclusive a muito possível corrupção.

Lembremos Rousseau: ou os governantes servem a cidadania soberana, ou instalam um Estado paralelo (Norberto Bobbio insistiu sobre tal ponto), que se alimenta da usurpação predatória exercida à socapa. O destino dos parasitas é desaparecer com a morte da República. Assim, acautelem-se os que se apegam aos cargos e desprezam os cidadãos.

"Pães quentinhos", conforme a fala imprudente do edil acima referido, são assados no forno do inferno em que vive a população. Calor dolorido destrói os contribuintes que perdem direitos com a cumplicidade dos representantes. O foro privilegiado instaurou no Brasil uma casta que defende interesses próprios, vende favores ao Executivo, dobra-se diante dos oligarcas e de setores mercantis. Por motivos assim, pesquisas de opinião pública colocam os Parlamentos nacionais entre os organismos com a menor taxa de confiança da cidadania.

O clamor pela reforma política começa com a fidelidade partidária: parlamentares infiéis vendem o mandato que não lhes pertence, mas ao povo. Praticam estelionato político. O eleitorado amadurece. As urnas chamuscaram os "pães", quentinhos ou amanhecidos, da política nacional. Arrogantes de todos os lados, incluindo os do PT, devem respeito a quem os sustenta com impostos. Caso contrário sairão ainda mais queimados das próximas eleições.

Roberto Romano, 58, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - a Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).