Oliver Cromwell, líder da revolução puritana
Foto: Getty Images
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As decisões políticas devem ser tomadas em foro intimo, por meio de um
grupo reduzido de privilegiados, ou, ao revés, estar em aberta sintonia
dos agentes políticos para com a opinião pública? Esta é a reflexão
feita pelo professor de filosofia da UNICAMP Roberto Romano exposta a
seguir:
Política, a flauta de Pan
Política já foi definida como a "arte do engano", ofício específico do
demagogo, dos que enganam ou seduzem os votantes com sua retórica
especial. Atuam como se soprassem a flauta de Pan, atraindo os incautos
para o seu redil, emitindo apenas os sons maviosos que os ouvidos deles
gostam de ouvir. Por tanto a mentira passou a ser questão da análise da
ciência política em todos os tempos, sempre sendo um problema atual.
Para Roberto Romano, professor de filosofia e ética, por exemplo, não se
pode separar eleição da mentira, das estratégias de falsidade usadas
pelos que desejam ser escolhidos nas campanhas eleitorais.
Como que para melhor ilustrar sua opinião, invoca a um dos diálogos de
Platão, o famoso 'Górgias' (escrito em 392-1 a. C.), o qual reproduz a
contundente crítica que Sócrates fez exatamente ao uso escandaloso da
mentira para fins políticos. Prática a qual os demagogos recorriam com
absoluta falta de cerimônia. O pior, para o filósofo ateniense, era que a
adulação irresponsável estragava o povo ainda mais, aviltando-lhe o
censo de ética.
A Perplexidade de Sócrates
Neste mesmo diálogo ele narra a perplexidade de Sócrates, o mais sábios dos gregos, em seu debate com Górgias, Pólo e Calicles, seus três contendores, para com o comportamento político do povo. Se bem que qualquer cidadão procure sempre o melhor profissional ou um bom especialista quando deseja que lhe prestem um serviço (arrumar uma porta, concertar o telhado da casa, fazer-lhe um móvel, construí-lhe um navio), ou ainda recorre ao mais competente dos médicos para cuidar da sua saúde, quando se trata de fazer as escolhas eleitorais (aeresis em grego), ele não age com o mesmo discernimento nem com a mesma responsabilidade.
Deixa-se, em geral, levar pelo canto da sereia dos candidatos demagogos e
acaba dando o seu voto aos tipos menos qualificados que se oferecem na
praça.
Exatamente no momento em que tem que indicar para o leme do estado
aquele que fosse o mais sábio, o de maior conhecimento e habilidade para
o cargo, o artesão do estado por ele escolhido era o contrário disso
tudo. Quem vencia o pleito na democracia era o mentiroso, o do discurso
mais enganoso. Esse foi um dos motivos para que Platão designasse o
regime da maioria como uma "teatrocracia".
E tudo isso em função do que? Qual seria o motivo desta irracionalidade
das coisas da política? Para ele, a resposta a essa escolha geralmente
equivocada feita no sistema democrático estava no fato de que do mesmo
modo que qualquer um tem apreço por sua liberdade, devota o mesmo
encanto por si mesmo.
Isso é que faz com que lhe agrade ser bajulado deixando-se seduzir pela
lábia dos espertos. Por conseguinte, é essa paixão infantil dos
indivíduos pelo seu próprio ego (hoje diríamos narcisismo) que os
conduzem ao auto-engano, refugando por isso os verdadeiros estadistas
que apresentam "remédios amargos" para curarem as mazelas da sociedade.
Infantilismo do povo
Numa democracia, o povo é igual a uma criança sempre pronta a se deixar levar por um oportunista ou por um aventureiro que lhe oferece confeito envolto com palavras de mel. Mas então Platão bane da política qualquer tipo de mentira?
Não. Numa situação pelo menos ele a aceita: no caso da "mentira nobre".
Isso se o governante for por acaso o rei-filósofo, o sábio regente
idealizado por ele no diálogo 'A República', que conduz as coisas do
estado com eficácia e sensatez.
As decisões mais importantes, por força das circunstâncias, devem ser
tomadas na intimidade do poder, circunscritas a um grupo fechado. São
acertadas por uma pequena cabala em conciliábulos ou em gabinetes
secretos e que não devem chegar aos ouvidos do povo. E isso ocorre em
benefício do próprio povo, pois somente o magistrado magnífico,
assumindo-se como "autoridade oculta, misteriosa", é quem realmente sabe
o que é e o que não é do interesse público.
O Estado Absolutista
Esta prerrogativa, respaldada por um grande nome da filosofia como o de Platão, dado ao governante, ainda que ilustrado, abriu caminho para que a mentira dita em nome do bem geral do estado e da comunidade se transformasse com o tempo na famosa Razão de Estado, a tão exaltada Raison d´Etat, defendida pelo Cardeal de Richelieu, primeiro-ministro de Luis XIII guardião do Estado-Forte na França do século XVII, que desculpava até os crimes feitos pelo executivo (ver: O Príncipe de Maquiavel e o Testamento Político do Cardeal de Richelieu).
Virou um pretexto para que os ministros ou chefes do executivo lançassem
mão dela para não dar explicações públicas dos seus atos. Toda
estrutura do poder do Estado Absolutista ancorou-se então na premissa de
que o soberano e aqueles que o servem não devem explicações a ninguém,
senão que "somente a Deus".
Ao concentrar em si todas as deliberações importantes e também as menos
importantes, fez do segredo de estado uma arte do bem governar. Era um
estado controlado por uns poucos selecionados apoiados nas largas costas
do Todo-Poderoso e que conduzia os súditos como um pastor faz com suas
ovelhas.
O Principio da Responsabilidade
Este comportamento - o das decisões secretas - dominante em boa parte da Europa na época do auge do absolutismo, entre os séculos XV e XVII, sofreu um formidável abalo com a Revolução Puritana na Inglaterra (1642-1649), liderada por Oliver Cromwell, pois ela introduziu a semente de uma idéia que mais tarde iria se efetivar na república norte-americana (difundindo-se então para todos os demais regimes políticos similares que surgiram na modernidade).
Os ingleses a denominaram de accountability, isto é, o conceito da
responsabilidade, justamente para afastar a cortina que cobria os atos
governamentais e as decisões tomadas na calada da noite. Cabia ao governante, chefe do executivo ou ministro, dar satisfações
públicas dos seus atos. Apresentar ao povo nos foros indicados, em geral
por um pronunciamento dado frente ao parlamento, quais eram as medidas
por ele tomadas e qual sua motivação ou razão de ser.
Com isso invertia-se a situação anterior na qual as autoridades não
apresentavam nenhuma justificativa do que faziam ou pensavam fazer. Para
legitimar sua posição - o cargo que ocupavam, no executivo ou no
legislativo - dali em diante eles tinham que dizer a verdade ao povo.
Governar com transparência tornou-se uma obrigação. Alargou-se então o
caminho para o Estado Democrático dos nossos dias.
O Estado no Brasil
Todavia no Brasil, o verdadeiro estado fundou-se ao contrário desse principio da responsabilidade adotado pelas nações anglo-saxãs. A corte de D.João VI, fugida de Lisboa. implantou por aqui, desde sua chegada em 1808, o Estado Absolutista. Isto é, uma força antiliberal e antidemocrática: antipovo em suma.
Quando se deu a independência, D.Pedro I em seguida, pela Carta
outorgada de 1824, deturpando a idéia do Poder Moderador (concebido por
Benjamin Constant, famoso constitucionalista francês), instituiu um
estado que parecia uma cópia do Estado Absolutista.
Para Constant, aquele quarto poder, além de ser neutro, deveria impedir
que os demais poderes (executivo, legislativo e judiciário), cometessem
qualquer tipo de abuso ou escorregão tirânico.
Pois no Brasil, o Poder Moderador simplesmente foi entendido como algo
bem acima dos outros, estando inteiramente à disposição do imperador,
tornando-o constitucionalmente um ser superior a todos os outros: o
"protetor perpétuo do Brasil".
D.Pedro I, na verdade, ao pairar como se fora um astro-rei sobre a
sociedade e suas instituições, colocou-se na posição da mais absoluta
irresponsabilidade visto que não tinha que responder senão que "ao
Divino" sobre seus atos ou decisões.
O resultado disso ao longo da história nacional (sendo que muito disso
seguiu incorporado pela República de 1889), foi que o poder central,
quase sempre forte e centralizador, interferiu sistematicamente nos
estados, tornando letra morta o principio do federalismo (uma das razões
da proclamação da república). No concreto, o país é dominado pela
conjunção de interesses formados pelo Exército, pela Diplomacia e pelas
Oligarquias regionais, que se consolidaram como sendo os autênticos três
poderes do Brasil.
Além disso, numa aberta rejeição ao conceito da responsabilidade, as
diversas constituições mantiveram o principio do "foro privilegiado",
dando imunidade aos altos escalões políticos e administrativos,
prerrogativa idêntica a que os aristocratas gozavam antes da Revolução
Francesa de 1789. Formam, portanto, uma casta de irresponsáveis, visto
que não precisam explicar-se para ninguém.
Por conseguinte, segundo Roberto Romano, "somos uma federação que não é
uma federação, nós somos uma democracia que não é democracia, nós somos
uma república que não é república, porque num estado que existem seres
superiores não há república."
Nota: a exposição acima é uma síntese da intervenção realizada pelo
professor R. Romano numa das seções do Fronteiras do Pensamento
realizada em Porto Alegre-RS