segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Pessoas sem escrúpulos me enviaram mensagens pessoais (deletadas de imediato por mim) sobre minha pretensa falta de coerência. Se no passado eu criticava a falta da moral, como no artigo abaixo, como hoje critico o moralismo, no texto saído ontem no Estado? Se além de faltos de caráter tais indivíduos soubessem ler (não espero tanto deles, pois não sabem redigir ou interpretar um texto que vá além das palavras de ordem, a eles ditadas pelos seus donos) veriam que em ambos os textos critico os que, usando a moral para subir aos palácios, neles jogam no lixo a ética e a moralidade, cultivando uma razão de Estado mesquinha, a que melhor serve aos seus fins de arrivismo político, social, econômico. Tenho orgulho de dizer: hoje, como há 40 anos, quando iniciei minhas intervenções no debate público, meus proventos vêm todos de meu salário. Nada devo aos grupos ou grupelhos que, a mando dos agora enricados proprietários da ordem política, tentam atacar a honra alheia. Aviso: se continuarem a me remeter insultos, serão publicados neste blog os textos (?) os nomes, a origem das mensagens. Para o uso certo, na justiça.


JORNAL - FOLHA DE SÃO PAULO - 22.03.2006 - PÁG.A 3

Defesa da moralidade, da imprensa e da lei 

ROBERTO ROMANO 

Na sessão que absolveu um político do PT e outro do PFL, tanto os acusados quanto os seus defensores atacaram a moralidade (dita por eles "moralismo") e a opinião pública (a qual separaram do povo), proclamando que algo contrário à lei (o caixa dois, segundo parece, se com origem particular, não é crime) seria inocente. Vejamos a desculpa que fundamenta agora a licença no Congresso Nacional.

No capítulo VII da nossa Carta Magna, lemos que a administração pública, direta ou indireta -nos três Poderes-, obedecerá aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. Deixo o último quesito, porque eficácia no cumprimento de seus deveres não é o forte de nosso Estado.

A legalidade foi pisoteada com a benção do plenário. Temos o paradoxo de uma "Casa de Leis" na qual os seus integrantes não se sujeitam à legalidade. Eles se declaram acima e à margem da lei comum.

A impessoalidade foi violentada pelos deputados, visto que o parecer do Conselho de Ética aplicou a lei "sine ira et studio". No plenário, vigoraram os laços de amizade, o partidarismo, contrário aos fatos e ao direito.

Um deputado chegou a falar em "centavos" para diminuir a carga destinada ao seu colega. Um centavo usufruído contra a lei é passível de punição, pois se trata de moeda extraída, direta ou indiretamente, de todos os contribuintes. Um centavo a mais ou a menos define a diferença entre a República democrática e a desordem dos privilégios autoconcedidos no poder público.

No item moralidade, a nação brasileira ouviu os acusados e seus defensores, num sofisma, confundirem palavras. Foi satirizada a moral com a ajuda do "ismo", para tornar palatáveis práticas proibidas para as consciências retas.

Não apenas a moral sofreu violenta anamorfose no Parlamento. O realismo político, a suposta razão de Estado, foi conduzido a sua pior face. Em um país no qual um político que teve o próprio assessor pego com dinheiro em roupa íntima proibiu tal assessor de confessar o dolo "por razões de Estado", Maquiavel só poderia ter mesmo a sorte lastimável de servir para desculpar o privilégio corporativo de políticos.

Os ataques à opinião pública -vitupérios disfarçados contra a imprensa livre e não corrompida- feriram o quesito da publicidade. Ao contrário do que insinuam os interessados, eles devem prestar contas de seus atos à opinião pública, da qual a mídia é integrante.

O princípio do poder que reside no Parlamento foi conquistado a duras penas na revolução democrática inglesa do século 17, com a tese da "accountability". Nessa doutrina, encontra-se a essência de todas as democracias que merecem esse nome. O mesmo escritor que defendeu a liberdade de imprensa contra a tirania e os privilégios aristocráticos, John Milton, defendeu a tese de que o rei, os deputados e os juízes devem prestar contas à cidadania e à sua opinião. Caso oposto, perdem o cargo.

Ainda no quesito publicidade exigido pela Constituição Federal, temos o segredo que define o passaporte para a impunidade, com a artimanha de esconder o voto, de não apresentá-lo lealmente à cidadania.

Rousseau, outrora admirado pelos jacobinos do PT, louva o costume romano de declarar o voto abertamente. "Esse uso", afirma ele em "O Contrato Social", "era bom enquanto a honestidade reinava entre os cidadãos e cada um tinha vergonha de fornecer publicamente seu sufrágio a um juízo injusto ou num assunto indigno; quando o povo se corrompeu e seus votos foram comprados, foi conveniente que eles o concedessem em segredo para conter os compradores pela desconfiança e fornecer aos salafrários ("fripons") o meio de não serem traidores".

Rousseau considera que o voto secreto é remédio adequado a povos corruptos. Ele aceita a sua inevitabilidade. Se o voto mostra covardia e dissolução ética quando secretamente exercido pelo cidadão, no caso dos seus representantes, ele é técnica de burlar a fé pública, esteio do Estado democrático.

Com o corporativismo do Parlamento e com o desprezo pela moral (mesmo que retoricamente se acrescente o "ismo"), os congressistas dão um tiro no pé e subvertem o Estado.

Que, nas urnas de outubro, a cidadania saiba recuperar a soberania contra a representação perversa exercida nesta legislatura. Os deputados não corporativos nos perdoem, mas eles não souberam ou não puderam moderar a filáucia indevida de seus pares. 

Roberto Romano, 59, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).