JORNAL - FOLHA DE SÃO PAULO - 22.03.2006 -
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Defesa da moralidade, da
imprensa e da lei
ROBERTO ROMANO
Na sessão que absolveu um político do PT e outro
do PFL, tanto os acusados quanto os seus defensores atacaram a moralidade (dita
por eles "moralismo") e a opinião pública (a qual separaram do povo),
proclamando que algo contrário à lei (o caixa dois, segundo parece, se com
origem particular, não é crime) seria inocente. Vejamos a desculpa que
fundamenta agora a licença no Congresso Nacional.
No capítulo VII da nossa Carta Magna, lemos que a
administração pública, direta ou indireta -nos três Poderes-, obedecerá aos
princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da
eficiência. Deixo o último quesito, porque eficácia no cumprimento de seus deveres
não é o forte de nosso Estado.
A legalidade foi pisoteada com a benção do
plenário. Temos o paradoxo de uma "Casa de Leis" na qual os seus
integrantes não se sujeitam à legalidade. Eles se declaram acima e à margem da
lei comum.
A impessoalidade foi violentada pelos deputados,
visto que o parecer do Conselho de Ética aplicou a lei "sine ira et
studio". No plenário, vigoraram os laços de amizade, o partidarismo,
contrário aos fatos e ao direito.
Um deputado chegou a falar em
"centavos" para diminuir a carga destinada ao seu colega. Um centavo
usufruído contra a lei é passível de punição, pois se trata de moeda extraída,
direta ou indiretamente, de todos os contribuintes. Um centavo a mais ou a
menos define a diferença entre a República democrática e a desordem dos
privilégios autoconcedidos no poder público.
No item moralidade, a nação brasileira ouviu os
acusados e seus defensores, num sofisma, confundirem palavras. Foi satirizada a
moral com a ajuda do "ismo", para tornar palatáveis práticas
proibidas para as consciências retas.
Não apenas a moral sofreu violenta anamorfose no
Parlamento. O realismo político, a suposta razão de Estado, foi conduzido a sua
pior face. Em um país no qual um político que teve o próprio assessor pego com
dinheiro em roupa íntima proibiu tal assessor de confessar o dolo "por
razões de Estado", Maquiavel só poderia ter mesmo a sorte lastimável de
servir para desculpar o privilégio corporativo de políticos.
Os ataques à opinião pública -vitupérios
disfarçados contra a imprensa livre e não corrompida- feriram o quesito da
publicidade. Ao contrário do que insinuam os interessados, eles devem prestar
contas de seus atos à opinião pública, da qual a mídia é integrante.
O princípio do poder que reside no Parlamento foi
conquistado a duras penas na revolução democrática inglesa do século 17, com a
tese da "accountability". Nessa doutrina, encontra-se a essência de
todas as democracias que merecem esse nome. O mesmo escritor que defendeu a
liberdade de imprensa contra a tirania e os privilégios aristocráticos, John
Milton, defendeu a tese de que o rei, os deputados e os juízes devem prestar
contas à cidadania e à sua opinião. Caso oposto, perdem o cargo.
Ainda no quesito publicidade exigido pela
Constituição Federal, temos o segredo que define o passaporte para a
impunidade, com a artimanha de esconder o voto, de não apresentá-lo lealmente à
cidadania.
Rousseau, outrora admirado pelos jacobinos do PT,
louva o costume romano de declarar o voto abertamente. "Esse uso",
afirma ele em "O Contrato Social", "era bom enquanto a
honestidade reinava entre os cidadãos e cada um tinha vergonha de fornecer
publicamente seu sufrágio a um juízo injusto ou num assunto indigno; quando o
povo se corrompeu e seus votos foram comprados, foi conveniente que eles o
concedessem em segredo para conter os compradores pela desconfiança e fornecer
aos salafrários ("fripons") o meio de não serem traidores".
Rousseau considera que o voto secreto é remédio
adequado a povos corruptos. Ele aceita a sua inevitabilidade. Se o voto mostra
covardia e dissolução ética quando secretamente exercido pelo cidadão, no caso
dos seus representantes, ele é técnica de burlar a fé pública, esteio do Estado
democrático.
Com o corporativismo do Parlamento e com o
desprezo pela moral (mesmo que retoricamente se acrescente o "ismo"),
os congressistas dão um tiro no pé e subvertem o Estado.
Que, nas urnas de outubro, a cidadania saiba
recuperar a soberania contra a representação perversa exercida nesta
legislatura. Os deputados não corporativos nos perdoem, mas eles não souberam
ou não puderam moderar a filáucia indevida de seus pares.
Roberto Romano, 59, filósofo, é professor titular
de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e
autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no
Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).