Mentiras
(*) Roberto Romano
Correio Popular de Campinas.
Estive no Rio Grande
do Sul, terra de civismo e cultura, além da fina gentileza, para
integrar o seminário internacional “Fronteiras do Pensamento”, em
companhia do excelente Jon Elster. Discuti a mentira nas eleições, na
Justiça e na política. A mais conhecida definição ocidental da mentira
encontra-se no platônico Agostinho. Todos recordam a censura, na
República, dirigida aos mendazes deuses homéricos e define os atores
divinos como inocentes. A nossa vontade, ainda no Paraíso escolheu o
mal, pensa Agostinho. No mundo finito tudo é pervertido. O Estado existe
devido ao primeiro ato maléfico e mentiroso, que consiste em “dizer o
contrário do que se pensa, com a intenção de enganar”. (De mendacio).
A mentira é um ato de fala.
Estes dependem, segundo J.L. Austin (How to do things with Words:
Oxford, Clarendon, 1962) do ajuste de quem enuncia a um “procedimento
convencional aceito (…) que inclui a emissão de certas palavras, por
parte de certas pessoas em certas circunstâncias”. Tal aspecto é
determinado como ilocução (o que fazemos ao dizer algo), mas não como
perlocução (o que fazemos pelo fato de dizer algo). A perlocução é o
efeito de um ato lingüístico, o objeto ou a simples seqüela daquele ato.
A perlocução pode ser intencional ou inintencional. A perlocução não é
convencional e se produz, ou deixa de ocorrer, independentemente da
correta efetivação do ilocutivo. Exemplo: “mate-o” é locutivo.
“Ordenou-me que o matasse”, ilocutivo. “Persuadiu-me a matá-lo”,
perlocutivo.
“Persuadir”, “convencer”,
“assustar”, “alarmar” são perlocutivos que não dependem do fato de usar
certas expressões ou situá-las em contexto adequado, mas da astúcia do
falante, fraqueza ou vulnerabilidade do ouvinte, circunstâncias nem
sempre previsíveis ou controláveis pelos próprios sujeitos do ato de
fala. Austin afirma que um juiz decide, pela oitiva de testemunhas,
quais locutivos ou ilocutivos foram empregados no delito, mas não sabe
quais foram os perlocutivos por não ter provas para tal exame. O
ilocutivo consiste em dizer algo. O perlocutivo resulta do ter dito
algo, não consiste em outro ato de dizer. Ele não é convencional e isto
se verifica no fato de que ele não pode ser explícito, caso contrário
perde eficácia. Não se diz: “eu te persuado”, ou “eu te assusto” quando
se deseja persuadir ou assustar. O perlocutivo pode ser intencional ou
inintencional, um fim querido, ou seqüela do ilocutivo.
Se a mentira é “dizer o
contrário do que se pensa com a intenção de enganar”, como considerá-la?
Falar mentira, para Austin, é transgredir a condição dos atos de fala,
a sinceridade. No ilocutivo, a mentira está em não cumprir a regra que
exige dos partícipes, numa troca de enunciados, que eles possuam os
pensamentos e sentimentos expressos, tenham a intenção de falar em
conseqüência. Os partícipes do xadrez devem ter a competência e o
intento de jogar xadrez, não dominó. A sinceridade, assim entendida, é a
base da conversa. A mentira nega a comunicação e não é ilocutiva,
mas perlocutiva. Se falarmos “ao dizer X, eu o enganei”, o intento e a
conseqüência se amparam na falta de explicitação, a inconexão encoberta
entre o dito e o pretendido, sem que o outro o perceba, pois se trata de
enganá-lo.
Na Razão de Estado ocorre a
inconexão entre quem fala pelo poder e quem obedece. O político mente
para ganhar eleições; o desempregado mente para conseguir emprego, e até
existe quem minta exclusivamente para chamar a atenção. Mentir é
recurso próximo da manipulação: eu engano e ele não deve perceber (C.
Castilla del Pino: El discurso de la mentira. Madrid, Alianza, 1988) . A
razão de Estado reduz a fala à manipulação dos dirigidos, neles cria a
aceitação temporária do que se diz e se faz. A adesão ao governante é
fabricada com astúcia. A mentira é abuso da linguagem: se descoberta,
precisa de escusas. A verdade não requer desculpas, salvo diante da
razão de Estado, como nos julgamentos de Vichy ou Moscou e nas farsas
encenadas para enganar multidões.