sábado, 18 de fevereiro de 2012
Neste entrevista, falo sobre ética, política, e outras facetas da vida brasileira. Com pitadas de filosofia e pontapés nos políticos e politiquinhos, sobretudo tucanos. Modifiquei um pouco as frases, para dar ao todo um tom menos coloquial. Mas o conteúdo é exatamente igual ao publicado em forma impressa.
Páginas 20 a 27.
Revista Discutindo Filosofia, Ano 3, número 14
Entrevista
Entre a ética e a moral
Um dos mais importantes e lúcidos pensadores brasileiros fala sobre Igreja Católica, ensino de filosofia na escola, política e sociedade.
Maíra Termero
O filósofo Roberto Romano da Silva, aos 62 anos, é professor titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp). Formado pela Universidade de São Paulo (USP), concluiu mestrado e doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. Sua formação se deu durante os anos mais agitados da política brasileira, no período da ditadura militar. Dominicano do convento de Juiz de Fora, em Minas Gerais, participou ativamente da Juventude Estudantil Católica (JEC) até sua dissolução e também da Ação Popular. Hoje, suas críticas se voltam contra a confusão entre os domínios do público e do privado em nossa sociedade, seja na própria universidade, seja na vida política. É autor de, entre outros, O Caldeirão de Medéia (Perspectiva, 2001) e Ponta de Lança (Ibep, 2007). Em sua casa, em São Paulo, o professor Romano falou à Discutindo Filosofia sobre sua aproximação com religião, ética e política.
Discutindo Filosofia - Como o senhor descobriu a filosofia?
Roberto Romano - Foi através de um filósofo, o professor Ubaldo Puppi, da Faculdade de Filosofia de Marília (SP). Eu fazia parte da Juventude Estudantil Católica, ele foi fazer uma palestra. E então esse professor discorreu longamente sobre os anjos. Nós éramos jovens e tolos, começamos a dar risada. Ele tinha sido assistente de um filósofo neotomista em Paris chamado Jacques Maritain (1882-1973). E nós aprendemos que discutir qualquer objeto, qualquer assunto em filosofia tem a sua importância. E que, portanto, não existe para a Filosofia nenhum limite para o pensamento, a discussão, a análise, a dúvida. Esse foi o meu primeiro contato com a filosofia. A partir dali, por indicação dele, eu li a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino e outros textos tomistas.
DF - Mas popularmente, tem-se a impressão de que há assuntos ‘mundanos’ demais para a filosofia. É só uma impressão ?
RR - Acho que é só impressão. Há um erro muito grande quando se diz que filosofia tem uma relação com os valores ou com o conhecimento científico, com isso ou aquilo. A filosofia, em primeiro lugar, é uma tentativa de compreender, entender, perceber, inteligir o que é - e o que não é. Ou, na formulação mais antiga, entender o relacionamento do ser e do nada. Afinal, por que existe algo e não o nada? Se existe alguma razão para a existência humana.
DF- E ai qualquer assunto encaixa.
RR - Todos os assuntos podem entrar. E aí você tem filósofos que ajudam na formulação dessa pergunta. Eles não respondem. Aquele filósofo que responde muito rapidamente a essa questão não é propriamente um filósofo. Porque são questões -qualquer pessoa percebe- de uma dificuldade tão grande quanto a existência humana. (G.W.) Hegel, por exemplo, em a Ciência da Lógica, diz que, para que você discuta essa questão, não pode separar uma coisa da outra - o ser de um lado e o nada de outro. Precisa captar a compenetração dos dois. Aí você tem a metáfora da caverna de Platão.
DF - E depois de tanto tempo de filosofia, ainda é assim, não ?
RR - Sempre é assim. Quem diz que a tarefa da filosofia é essa ou aquela certamente está traindo a filosofia. Ela é sempre essa busca do saber fundamental, das questões fundamentais. E não pode ser barateada, usada para curar dores de cabeça. Eu acho uma coisa muito estranha essa filosofia clínica, que anda fazendo muito sucesso por aí.
DF - Beira a psicologia ?
RR - O que acontece é que a filosofia estaria usurpando o terreno de um conjunto científico que ainda está se estabelecendo. A psicologia ainda está buscando seus fundamentos mais sólidos. E, de repente, vem a filosofia e faz uma coisa dessas. É muito estranho. E quanto mais capacidade intelectiva, mais capacidade de usar a retórica e de resolver retoricamente problemas que não são resolúveis. Então, a filosofia pode ser um imenso blá-blá-blá.
DF - O que para a pessoa, clinicamente, pode não resolver nada.
RR - Exatamente. A pessoa fica mais encantada com o discurso - próprio ou de outrem, de um professor, um clínico, um filósofo - do que propriamente com as dores que ela precisa resolver.
DF- Quando o senhor foi para o convento dos dominicanos, em 1966, sua intenção era se ordenar ?
RR - Nós todos achávamos que tínhamos uma vocação religiosa. que não é virar padre. A estrutura da Igreja só conhece uma hierarquia. Ela tem bispo, presbítero e o diácono, que são serviços eclesiásticos. O papa é o bispo de Roma, que tem preeminência sobre os outros. Mas a vida religiosa não está limitada a essa hierarquia. Ela engloba os leigos e aqueles que fazem votos de vida pela pobreza, obediência e castidade. Tanto que, veja, nem o bispo, nem o presbítero, nem o diácono têm obrigação, pelo seu estado, de ser não casados. É uma questão que não é dogmática, mas de disciplina eclesiástica. Já os religiosos têm, porque eles prometem que serão obedientes, castos e pobres. É uma vida para isso. Na Igreja se entende que os religiosos são as testemunhas do fim dos tempos. Quando o mundo deixar de existir, deixará de existir o casamento, a propriedade. Então você pode ser padre ou leigo, sendo religioso. Quando entra para a Ordem, você faz o noviciado. Depois de um ano faz os votos temporários e depois pode renovar perpetuamente. Então, muitos que são dominicanos não são padres. São mais ligados à filosofia, à teologia, à história. Então, quando fui para Juiz de Fora, fui para me preparar para o noviciado. Fiz parte no convento dos dominicanos e parte no presidio Tiradentes. Passei um ano e pouco lá e, quando terminou o período de noviciado, fiz os votos no presídio. Tinha feito vestibular para filosofia, antes de entrar para o noviciado, em 1967. Mas aí o noviciado exige que não se faça nada fora do convento. Então eu cancelei a matrícula e fui preso. Quando voltei, em 1971, fui fazer filosofia na USP.
DF - Como eram as atividades da JEC?
RR - A Ação Católica é um movimento criado entre o final do século 19 e o começo do século 20. Era uma ação quase missionária da Igreja para reconquistar o mundo moderno. E o modelo dela seriam as legiões romanas. E rapidamente se especializou. Tinha a dos adultos, dos casais, jovens, universitários. Então a JEC, por exemplo, começava na paróquia, depois havia um conselho diocesano, um regional, um nacional e um internacional. Esse era um ponto importante naquele período dos anos 1960, porque existia isso que eu chamo de educadores coletivos. Se você fosse comunista, tinha a mesma estrutura. O jovem que entrava para o Partido Comunista participava de uma atividade local, mas também regional, nacional, internacional. Nessas reuniões, ele refletia sobre assuntos desde os locais até os internacionais. Com a otica do seu movimento, evidentemente. Mas ele lia, discutia com intelectuais desse movimento. Com isso, eu entendo que boa parte da solidez do movimento estudantil, que ajudou muito a resistir à ditadura vem da capacidade dos estudantes daquele período de abarcarem do local ao internacional, com dados. No caso da Ação Católica, o método famoso “ver, julgar, agir”. Acontece um fenômeno como “Dantas é preso”. Então, “ver”: recolher toda a documentação da imprensa, histórico sobre o caso. “Julgar”: esse fato é bom ou péssimo para o coletivo ? Você pode julgar que o fato de alguém ser preso pode ser bom ou ruim. Nesse caso, ele foi preso, muito bem. Mas a Polícia Federal usa de algemas, humilha os presos, então estamos vendo um possibilidade de abuso do poder por parte da polícia. E “agir”: o que você fará diante desse conhecimento que você acumulou e desse juízo que assumiu. Se você julga que é ruim, tem que assumir uma prática correspondente. Tem que escrever, tem que ira para a rua, se reunir a outros. Isso foi sempre muito eficaz. Isso amadurecia os jovens.
DF - E levava à ação.
RR - A ação pensada, não apenas do slogan. Nessa estrutura do movimento você tinha os dirigentes, que eram eleitos. Tinha a representação de assistentes eclesiásticos, que eram padres ou religiosos, os quais tinham permissão do bispo para acompanhar aquele conjunto. No caso, a JEC e a Juventude Universitária Católica (JUC) tiveram um impeto muito grande até 1965. Nesse ano, como a hierarquia da Igreja apoiou o golpe de Estado, ela pretendeu intervir nesse movimento, considerando que as lideranças eram demasiadamente esquerdistas para o gosto do Estado e da própria Igreja. O que levou à auto-dissolução da equipe nacional em 1966, em uma reunião que ocorreu no convento dos dominicanos onde eu estava, em Juiz de Fora. Nessa ocasião, eu eu outras pessoas tentamos retomar o movimento. E não conseguimos nada. Esses movimentos viviam da estrutura da Igreja e muita gente começou a fazer parte, desde 1962, de um movimento paralelo que era mais político e menos religioso, que é a Ação Popular (AP). A AP tinha sido fundada pelo Betinho (Herbert de Souza), padre Vaz, e outros, justamente para ir além dos limites da Ação Católica.
DF - Daí muita gente migrou para a AP.
RR - Só que aí aconteceu uma coisa complicada, que está ligada à filosofia também. Um grupo de dirigentes da AP foi para Paris, em 1964, 1965. Meio banidos, meio forçados. Essas pessoas entraram em contacto com o marxismo na versão estruturalista de (Louis) Althusser, que, no marxismo, correspondia ao que Michel Foucault estava tentando fazer nas ciências humanas e na filosofia, ao que ( Jacques) Lacan estava tentando fazer na psicanálise, que descentrar o sujeito. Em vez de fazer um humanismo marxista, pensar a estrutura da sociedade segundo padrões rigorosamente estruturais e, portanto, na concepção deles, científicos. Naquele momento, em Paris, você tem também a forte influência do maoísmo através do jornal Libération, que tinha o aval de (Jean Paul) Sartre. Ele nunca foi maoísta nem estruturalista, mas tinha essa idéia de que, como um grande nome, deveria proteger todos os perseguidos. Então, esse grupo de brasileiros se converteu ao maoísmo. De católicos que eram, passaram a ser ateus. E exigiram que, quem continuasse na AP, tinha de se tornar ateu. Quem quisesse continuar católica deveria sair ou seria expulso. Foi nesse momento que um grupo de religiosos dominacos, entre eles o Frei Betto e o Frei Ivo, saíram da AP e procuraram um trabalho com Carlos Marighela. Ele tinha vindo da tradição do Partido Comunista, era a favor da luta armada, mas não colocava como condição para trabalhar junto que a pessoa fosse atéia. Essa relação foi descoberta e eles foram presos, torturados e Marighela morto.
DF - O que pensa sobre a inclusão da filosofia no ensino médio?
RR - Sou absolutamente contra. É uma forma de trair a própria filosofia. A que nos estamos assistindo? A uma produção de manuais que vão dar muito dinheiro aos seus redatores e editores, mas que nada terão a ver com filosofia. O manual já é uma interpretação do campo filosófico por um escritor. Quando você tem um manual de filosofia, coloca uma lente entre o texto, o problema e a cabeça do estudante. O ensino do primeiro e do segundo graus deve intensificar ao máximo a poesia, a história, a matemática, a geografia, o teatro. Enfim,, todas as formas mais belas da cultura, refinando a imaginação, a sensibilidade e a inteligência dos jovens. Quando eles entrarem para a universidade, escolhem a filosofia. E saberão distinguir muito bem um texto de Platão, poético, bonito, de um texto chatissimo de Aristóteles. Quando você faz um manual, onde não existe beleza, feiúra, sofrimento, só existem doutrinas recortadas pelo autor, você está emburrecendo.
DF - Para discutir ética, nos ajude antes, a definir o conceito?
RR - Numa definição irresponsável: ética é um sistema de atos, palavras, noçòes, que as pessoas ou grupos, ou a sociedade, aprenderam num determinado tempo e reiteram. De tal modo que esse conjunto complexo, que vai da atitude corporal às atitudes mentais, se torna automático, inconsciente. A partir daí, imagina-se “natural”o comportamente resultante dessa ética.
DF- Como em algumas cidades, que toleram a prostituição infantil como algo normal?
RR - Exato. Qual a ética do trânsito brasileiro? Quando você vê um sinal vermelho...pisa no acelerador. Se dissermos a uma pessoa assim que ela é assassina, ela ficará assustada, vai querer processar. Ela aprendeu num determinado tempo que o proprietário do veículo é superior a quem não é. Com essa ética, impossível modificar ou melhorar o trânsito e o respeito às pessoas. Como a ética funciona dessa maneira, inconsciente e automática, são valores “naturais”. É “natural” que o negro seja inferior, que o judeu também, que o pobre seja humilhado. Não é natural quando o Dantas (o banqueiro Daniel Dantas) recebe algemas. A ética só deixa de ser imporiosa e tirânica quando há um choque, quando o conjunto tão bem estatuído de certezas chamado preconceito, se choca com uma situação que não o confirma, mas o nega. E isso é uma tarefa da razão, a que faz a lei. A política significa uma tarefa de impedir que as éticas familiares e grupais se sobreponham ao convívio em sociedade. Já em Aristóteles, temos a definição da lei como razão sem a paixão. É possível medir o grau de civilidade e de respeito aos direitos humanos de uma vida coletiva pela existência da lei e pela sua aplicação. Nesse caso, a política é essencial.
DF - Então as éticas não são necessariamente individuais?
RR - Não. Elas são necessariamente coletivas. Por isso distingo a ética da moral. Quem inventou a moral foi Sócrates, contra a ética de Atenas. Segundo esta última, Sócrates era culpado. É a primeira vez na Grácia, que alguém se levanta em nome da sua própria consciência. Sócrates falava como Sócrates, não como ateniense. Quando se fala como ateniense, a fala é ética. Quando se fala como Sócrates, a individualidade aparece. Sócrates ousa dizer : “esta ética coletiva é errada”.
DF- Nesse sentido, ele foi um perigo para a estabilidade social?
RR - Totalmente. A moral sempre é a produção de pessoas que rompem os vínculos de solidariedade ética -bons ou hediondos. Ela estabelece uma instância de decisão e julgamento que não passa pela assembléia. E, muitas vezes, a boa moral se paga pela solidão. Sócrates, Jesus Cristo, Gandhi, etc. O problema da ética é que ela se define como costume. Como dizem Platão, Montaigne, Francis Bacon e Maquiavel, o costume é o pior tirano das coletividades e dos indivíduos.
DF- É o que foge à razão.
RR - É o que se torna automático e mais difícil de ser modificado. Por isso Maquiavel recomendava –seguido de Montaigne, pelos grandes sábios da política– que, com a população, é preciso certo grau de dissimulação honesta. Porque se alguém chegar em país monarquista e disser “a monarquia é uma porcaria, vocês são idiotas, iremos proclamar a república, a massa te mata e acaba com sua vida. Uma das significações da palavra ética é hexis, postura. Para os gregos, isso é importante, porque eles constituiam uma sociedade guerreira. Se a criança não aprendia a postura correta ao correr, ela estava colocando a polis em perigo.
DF - Uma significação física mesmo.
RR - Sim, do corpo. Por metáfora, se passou então a ética para o campo dos conceitos abstratos, valores. Donde Spinoza, no século 17, determinar dois tipos de automatismo. O bom -as corretas atitudes mentais e corporais- e os péssimos.
DF - Boas em que sentido?
RR - No sentido de corretas, permitem ir à verdade. No caso da filosofia, a idéia correta. Como não vivemos apenas do intelecto, somos um corpo, temos desejos que, traduzidos pela imaginação, se imiscui com o intelecto. E se produz uma série de seres imaginários, mais ligados ao desejo que à razão. Mas quando pensamos automaticamente de forma correta, a verdade se desdobra em nós. Quando pensamos automaticamente segundo nosso desejo, sem a razão, nos damos muito mal.
DF - O caminho da razão leva sempre à verdade ?
RR - A razão é uma espécie de luz. Não podemos culpar a luz por não estarmos usando corretamente para encontrar o caminho. O intelecto, nesse caso, precisa ser bem dirigido. A idéia do método, caminho, aí está. Não é pelo fato de possuirmos inteligência e sermos capazes da verdade, que chegaremos ao verdadeiro. Isso supõe sempre um esforço, um conatus. Assim também para a boa postura ética. É possível perceber, pela razão, o bem fundado da norma ética. Mas se a paixão, os desejos, a vontade não estão alí, existe fingimento ético, o contrário da moral. Tal é a distinção kantiana entre agir segundo o dever ou por dever. Quando agimos por dever, a nossa consciência está plena do ordenamento moral, o “tu deves”.
DF - É agir por princípio, independente da consequência ?
RR - Exatamente. Por isso a solidão da pessoa moral. Se um milhão de nazistas marcham nas ruas e dizem ser preciso matar judeus, ela será contra. Não quer dizer que vá se colocar no meio do comício nazista e se dizer contra. Daí é imprudência. Mas tudo o que puder fazer para lutar contra a multidão, ela fará. Donde a acusação permanente que as éticas fazem da moral como traidora. Indivíduos morais são traidores da ética.
DF - Alguém que vê o bem no meio de uma multidão pensando errado. Pode ser o contrário?
RR - Por isso repito, há mais de trinta anos, que se tome cuidado com a ética. Ela não é apenas um conjunto de costumes corretos ou valores corretos e pode ser absolutamente perniciosa, com seus valores assumidos de modo automático. A filosofia procura escapar das palavras embreagem, termo criado por Emile Benveniste para designar o jargão, o slogan. Quando estamos numa dificuldade discursiva, puxamos a palavra mágica que permite continuar o discurso. É a oratória reiterativa, que também integra a ética. Existem milhares de termos embreagem como “consciência crítica”, “cidadania”, “ética na política”, etc. A filosofia tenta escapar dessa armadilha.
DF - E o jornalismo se afunda nisso ?
RR - O jornalismo, a universidade … (Martin) Heidegger enuncia que esse é o campo do “se”. Aprendemos que é assim que “se”fala, age, etc. E o “se” não você, nem eu, nem o grupo, é o indeterminado.
DF - Não há responsabilidade pelo que se fala?
RR - Essa palavra, “responsabilidade” é marca da filosofia. Você faliu, tem obrigação de indicar a origem empírica, a significação lógica e a abrangência dos termos. A palavra não pode ser usada de qualquer jeito. Por isso, na filosofia, o diálogo é fundamental, é a pedra de toque. A palavra alheia afia a nossa. Se abolimos o discurso do outro o nosso se torna autoritário, tolo. O diálogo é afiamento recíproco dos discursos. Como a tendência, infelizmente, em filosofia, é o isolamento - o ensino da filosofia não ocorre em grupo, mas por individualização delirante (cada um almeja ser gênio), temos o culto da genialidade, quando o filósofo tende a se tornar um perverso (e pervertido) destruidor da palavra alheia.
DF - Qual a ética da política brasileira?
RR - O marcante é o que Maria Sylvia Carvalho Franco (Homens livres na ordem escravocrata, Unesp, 1997, quinta edição) define como favor. A nossa mediação universal é o favor. Não existe praticamente nenhum grupo que não se defina pela troca de favores. O ‘é dando que se recebe’ tornou-se marca essencial de nossas relações. Toda a história do Estado e da sociedade brasileira rima com o compadrio, as oligarquias, o excessivo poder central. A violância face a face no Brasil passa por essa dominação do favor. O Brasil não é livre, por definição. As pessoas não são livres, porque sempre “devem”algo aos demais. Elas se emaranham em redes de favores e de violência.
DF - Com a esquerda no poder, alguma coisa mudou nesse sentido?
RR - Não, porque a estrutura do Estado não muda desde Dom João VI. O poder central, com todos os privilégios e prerrogativas, concentra os monopólios do Estado. Este possio três monopólios principais: forca física, norma jurídica, os impostos. Quanto mais esses monopólios são usados por grupos ou partidos, e também por indivíduos poderosos, mais defeituoso é o Estado. É o nosso caso.
DF - É como ver um lugar rico cheio de viaturas, enquanto regiões mais necessitadas ficam desprotegidas?
RR - Como os moradores dos Jardins, em São Paulo, que se propuseram a comprar uma casa bonita no bairro, pagar gasolina para as viaturas, desde que a polícia só atendesse ocorrências na região. É o famoso financiamento público do privado e vice versa. Na relação de favor é isso que acontece. O público é invadido não de frente, mas pelos fundos.
DF - E a universidade pública : o que a emperra ?
RR - O seu problema é que ela precisa pensar o que é público e o que é privado. Quando um grupo de amigos universitários chegam à direção de certa agência financiadora, sabemos o resultado. O dinheiro segue para o grupo e não para outros. A instituição deixa de ser objetiva e imparcial e se torna centro de poder. É indecente o sigilo do parecerista acadêmico, antiético. Mas a ‘ética’diz ser aquilo o certo. Se alguém integra uma banca de doutorado, livre docência, age públicamente. Nunca se irá reprovar uma pessoa, como medo de perseguição ? A desculpa da “proteção à privacidade”do parecerista é ainda mais esfarrapada. O sigilo é para que fique bem claro que existe o conflito de interesses, mas abafado pela suposta ética.
DF - Até onde dá para criticar a universidade pública, sem que a gente se perca?
Rr - Após minha entrevista ao programa Roda Viva, muita gente na internet, tucana sobretudo (a molecada tucana é tão arrogante quanto seus padrinhos) disse que foi chato, desagradável e idiota eu dizer que o desenvolvimento do interior paulista se deve à universidade pública. Mas tal é a verdade, por mais que os tucaninhos não gostem. O primeiro passo para o desenvolvimento do interior ocorreu quando os institutos isolados de pesquisa e ensino da USP foram criados. E isso criou uma mentalidade de intervenção técnica na produção agrícola no interland. A universidade pública, sobretudo a paulista, é um exemplo do caminho para o bem, seja ele do mercado, seja da sociedade.