quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Estado de São Paulo

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Aeroportos - foi mesmo privatização e inevitável

16 de fevereiro de 2012 | 3h 09
ROBERTO MACEDO - O Estado de S.Paulo
 
Ouvi muita gente dizer que a recente concessão à iniciativa privada da gestão dos aeroportos de Guarulhos, Viracopos e Brasília não foi privatização, mas, sim, concessão, ao contrário de minhas convicções. E também do próprio fato, pois concessão à iniciativa privada é, evidentemente, uma forma de privatização. Assim, como afirmar que concessão é uma coisa e privatização é outra? Quem sabe, não seria eu o errado?

Diante de casos como esse, costumo procurar o dicionário, hábito adquirido desde criança, quando uma das primeiras e boas lições que tive de Português - ou de Língua Pátria, como era chamada a disciplina na escola - foi a de fazer isso para esclarecer o significado de palavras. Quando escrevo, procuro ter um ao alcance da mão. Ou melhor, das duas, pois são pesados, e de tanto usá-los sua capa costuma se largar da grossa lombada.

Uso o Houaiss, que assim define privatização: "1. ato ou efeito de privatizar; 2. transferência do que é estatal para o domínio da iniciativa privada". E privatizar: "1. realizar a aquisição ou incorporação de (empresa do setor público) por empresa privada; 2. colocar sob controle de empresa particular a gestão de (bem público). Os parênteses são do texto original e as ênfases em itálico são minhas. Confirmam que as definições alcançam a concessão. Portanto, a dos aeroportos é privatização mesmo.
E por que inevitável? Por muito tempo o governo federal procrastinou uma solução para sua dificuldade de pôr em funcionamento satisfatório e de expandir o sistema aeroportuário do País. As privatizações acabariam por alcançá-lo se os sucessores de Collor e FHC tivessem convicções similares às desses dois ex-presidentes. Mas entraram os petistas e seu drama de tons shakespearianos: privatizar ou não? Na dúvida, enrolaram por muito tempo.

Essa atitude, porém, costuma ter seu próprio mecanismo de correção. Os problemas agravam-se e a perspectiva de situação futura ainda mais crítica pode precipitar decisões. Assim, pesou na privatização a forte expansão da demanda e o assustador fantasma de vexames de alcance internacional durante a Copa e os Jogos Olímpicos. Isso juntamente com a incapacidade do governo de gerir o ramo na escala que alcançou. E, também, pelas equipes gestoras que arregimenta com o tal presidencialismo de coalizão e suas práticas, digamos, heterodoxas. Há ainda outro forte ingrediente que vem da sua maneira de governar, a carência de recursos para mais investimentos, ditada por outras prioridades. Ademais, Dilma Rousseff não dança a enrolation tanto bem quanto Lula.

Quanto a essa carência, Mansueto Almeida, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e especialista em finanças públicas, em artigo recente no jornal Valor (6/2), ressaltou que no governo federal o investimento funciona residualmente como uma conta de ajuste para alcançar sua meta de resultado primário (receitas menos despesas exceto juros). As prioridades são gastos do INSS turbinados por aumentos do salário mínimo e outros tipicamente sociais (benefícios para idosos e inválidos, seguro-desemprego e Bolsa-Família), um conjunto que chamo de socioeleitoral, com seu quê de social e muito de eleitoral.

Essa prioridade federal é conhecida, mas Mansueto Almeida foi aos números. Num balanço do período 1999-2011, concluiu que 87% (!) dos gastos primários foram absorvidos por essas despesas e apenas 20%(!) com ampliação dos investimentos. E mais: estes últimos aumentaram apenas 0,6% do produto interno bruto (PIB), trazendo o seu já irrisório total de 0,5% (!) em 1999 para o igualmente irrisório valor de 1,1% (!) do PIB em 2011. Já os gastos socioeleitorais subiram 2,6% (!) do PIB, de 6,1% para 8,7%, absorvendo, assim, a maior parte de mais um aumento da carga tributária, perto de 4% do PIB no período.

Portanto, com esse modelo de gestão socioeleitoralmente orientado não sobram recursos para aliviar substancialmente a enorme carência de investimentos de uso público, como nesses aeroportos.

Falta explicar como petistas mandantes resolveram seu drama ideológico, dado o conflito entre convicções que dizem ter e o comportamento privatizante a que foram levados. Para isso voltei novamente a lições passadas, desta vez de um grande professor de Economia, Albert Hirschman, que com sua visão ampla me levou a um "Freud explica" para dilemas como esse. O Freud, no caso, é Leon Festinger, um psicólogo americano já falecido, não tão famoso, mas um dos mais importantes.
A Festinger é atribuída a Teoria da Dissonância Cognitiva. Esta argumenta que as pessoas procuram manter a coerência entre suas crenças, opiniões e atitudes, bem como entre elas e seu comportamento. Neste último caso estão petistas ainda com alguma convicção ideológica estatizante, diante do seu comportamento privatizador de serviços aeroportuários.

A teoria diz que nesse caso o mais provável é que as pessoas mudem suas convicções para acomodar seu novo e dissonante comportamento. Acrescento que pelas razões citadas não vejo comportamento alternativo. Ademais, quando no governo, a mudança de convicções é muito comum, seja por força das responsabilidades ou das benesses do poder, estas gerando comportamentos dissonantes também de outras modalidades, como no plano ético. Também neste se percebe que convicções anteriores costumam ceder espaço a eles.

Portanto, Festinger oferece uma resposta para uso de petistas privatizadores colocados diante da incômoda pergunta: o que é isso, companheiro? Talvez seja mais complicado recorrer a ela, mas, no mínimo, poderá servir para confundir interlocutores mais teimosos. Em qualquer caso, tem maior potencial de eficácia que o jogo semântico voltado para dizer que as concessões aeroportuárias não são privatizações. Decidido pelo simples recurso ao dicionário, é um jogo perdido.

*ECONOMISTA (UFMG, USP, HARVARD), PROFESSOR ASSOCIADO À FAAP, É CONSULTOR , ECONÔMICO, DE ENSINO SUPERIOR