sábado, 25 de fevereiro de 2012

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A memória traduzida em autêntica literatura

Com 'Baú de Ossos' (1972) e 'Balão Cativo' (1973), o ciclo autobiográfico que consagrou o mineiro Pedro Nava começa a ser reeditado; o terceiro dos sete volumes que compõem a série, 'Chão de Ferro' (1976), sai em agosto

25 de fevereiro de 2012 | 3h 00

Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
SÃO PAULO - As memórias do escritor e médico reumatologista mineiro Pedro Nava (1903-1984), que começaram a ser escritas em 1968, quando o autor tinha 65 anos, serão relançadas em março pela editora Companhia das Letras - o primeiro e segundo volumes, Baú de Ossos e Balão Cativo, respectivamente, chegam às livrarias dia 2. Nessas Memórias, que ocupam sete volumes, Nava revela: não foi só o Visconde de Barbacena (com Genealogia da Família Mineira) seu único modelo e inspiração, mas especialmente o escritor francês Marcel Proust (1871-1922).
O escritor e médico Pedro Nava - Divulgação
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O escritor e médico Pedro Nava
 
. A sua, citada no volume seguinte, Balão Cativo, tinha uma casca ardida, vermelha, e uma polpa branca que resistia ao dente. O sabor cru, de terra, dos rabanetes da infância do mineiro, o perfume do sumo de laranja e o cheiro das moringas novas compõem o cenário proustiano de suas memórias frankensteinianas.

O professor e crítico Davi Arrigucci Jr., autor do posfácio da edição de Baú de Ossos, chama a atenção justamente para o caráter cubista, fragmentário, dessas memórias - até involuntárias - que ergueram um monumento literário no Brasil na linha da obra máxima de Proust, Em Busca do Tempo Perdido. Arrigucci, no entanto, prefere associá-lo a dois clássicos da literatura brasileira - Casa-Grande & Senzala e O Ateneu -, mostrando como essas Memórias iluminam o passado histórico brasileiro a partir de uma autobiografia que é, antes de tudo, uma “meditação sobre a morte” - tão forte quanto a lírica de Manuel Bandeira, segundo o crítico. “Cada um compõe o Frankenstein hereditário com pedaços dos seus mortos”, escreve Nava em Baú de Ossos, para em seguida assumir com o leitor o compromisso de “dizer a verdade, só a verdade e, se possível, toda a verdade”.

Toda verdade não foi possível. O sétimo volume, Cera das Almas (póstumo e incompleto), estava a caminho quando Nava recebeu um telefonema, no dia 13 de maio de 1984. Saiu de casa e, por volta da meia-noite, seu corpo foi encontrado numa praça do bairro da Glória, no Rio, onde morou metade de sua vida. Aos 80 anos, com um tiro na cabeça, o escritor se matou. A tragédia é comentada no livro Minha História dos Outros, do jornalista Zuenir Ventura. Na época, chefe da sucursal carioca da revista IstoÉ, ele convocou dois repórteres para investigar o caso e localizar um garoto de programa que estaria por trás da ligação misteriosa.

A história foi abafada. O próprio Zuenir escolheu não publicar a versão do prostituto, que teria chantageado Nava. Se a ameaça de um linchamento moral por causa de um garoto de programa foi a causa do suicídio, é impossível saber. O fato é que, em suas memórias, não há lugar para uma discussão direta sobre o tema homossexualidade, embora cite escritores reconhecidamente homossexuais, como Cocteau, Gide, Radiguet e Proust. O escritor evoca o último na página 341 de Baú de Ossos para atestar que nossa memória não passa de um reflexo em que a ordem dos fragmentos aparece invertida. Inconsolável, ele recorda, em Balão Cativo, o amigo americano Moses Spector, que conheceu no Ginásio Anglo-Mineiro, em 1914, e nunca esqueceu. O garoto voltou para os EUA e, mesmo passados 53 anos, Nava ainda mantinha viva na memória a visão de seu “cabelo arrepiado”, das sardas, dos olhos e da “boca cheia de língua”, ao passar pela ponte de Brooklyn, em 1967, e lembrar-se até do endereço e número da casa do amigo.

As Memórias de Pedro Nava não contam, contudo, apenas a história da educação sentimental e moral do escritor. Arrigucci tem razão ao comparar sua obra ao clássico Casa-Grande & Senzala, do pernambucano Gilberto Freyre, porque, ao falar da própria família, Nava traça um retrato implacável da burguesia brasileira dos séculos 19 e 20, escancarando os bastidores políticos da história do Brasil e dos costumes nas casas-grandes mineiras e nordestinas (um ramo da família é cearense). Impressiona a exposição do passado familiar por Nava, que traz à tona, entre outros personagens, um bandido traficante de escravos, violento, vulgar e blasfemo, cuja história, desvendada por um parente, humilhou a avó. Nava jura que não citou o “celerado” ancestral por cinismo, mas por acreditar que toda família tem uma ovelha negra como “elemento de estabilidade” do núcleo.

Certo é que o escritor acreditava em valores transmitidos pelo DNA. “Ninguém pode compreender nada da história social e política de Minas se não entender um pouco de genealogia”, escreve em Baú de Ossos. Na página 211 do livro, ele resume essa crença numa frase: “Bon sang ne peut mentir” (Sangue bom não mente). E Nava descendia do bandeirante Fernão Dias Paes, que mandou enforcar o próprio filho. “Bandoleiros para os outros, heróis para a família”, justifica o escritor, pedindo aos primos que não se zanguem com a revelação. De Portugal, conclui ele, duas páginas depois, “nos ficou o preconceito contra tudo o que cheira a mouro”. A avó de Nava, Inhá Luísa, que tinha “uma autoridade imanente”, só faz confirmar o neto, por quem nutria o mais absoluto desprezo. Ela não gostava de negros e virou a mão na boca da empregada Justina por deixar entrar em sua casa a mucama da vizinha, dona Maricota Ferreira e Costa. Com a boca sangrando, Justina, para espanto de Nava, cantou. E nunca mais foi vista. O episódio é contado em Balão Cativo.

A honestidade de Nava é inquestionável, mas não se trata apenas de memorialismo. Os mais fascinantes memorialistas, escreveu Paulo Mendes Campos em 1981 (texto reproduzido em Balão Cativo), são pessoas “que não têm muita coisa para contar”. O que teria um menino de Minas “de sala de visita e quintal, inundado de saias familiares e óculos de adultos engonçados, um estudante irrequieto, médico aplicado e poeta bissexto a contar?”, pergunta o jornalista mineiro, para responder ele próprio que foi exatamente nesse material biográfico “ressequido e sem graça” que Nava encontrou “o seu além da toca do coelho”. Como Alice.

O professor de Literatura Massaud Moisés compara o novo capítulo que Nava escreveu na história do memorialismo brasileiro a uma “revolução copérnica, equivalente à que Guimarães Rosa empreendeu no terreno da ficção”. Essa revolução, segundo o professor de Literatura da Unicamp, Antonio Arnoni Prado, diz respeito não só à técnica do autor - “que converte o passado numa espécie de metáfora inacabada das sensações que refundam a experiência do sujeito-que-recorda, como se recriasse o mundo à maneira do grande romance do século 19”. Arnoni Prado destaca ainda a “voracidade heurística” do narrador criado por Nava, “que rearticula a dicção harpejada das vozes que se colam ao estilo livre das citações, das transcrições, da reduplicação documental, dos testemunhos da história e da imaginação”.

Talvez seja conveniente lembrar que o primeiro volume das Memórias de Nava saiu no período mais conturbado da ditadura militar (1972). É mesmo um documento e tanto - não exatamente sobre o regime, mas sobre a herança de um país suscetível a golpes de gente autoritária. “Também tivemos a nossa belle époque, por sinal que feia como sete dias de chuva”, escreve em Baú de Ossos. Com a República começou, segundo ele, a decadência política e estética. Trocaram-se as gravuras imperiais de Debret e Rugendas pelas pinturas “sebentas” de Giuseppe Boscagli - “representando marechais anacrônicos em fardas do tempo da Guerra da Crimeia”. E Nava segue adiante, espinafrando o despudor do marechal Floriano, dos caciques, dos coronelões, da tradicional família mineira, dos parentes e dos contraparentes. Mesmo ele não escapava dessa decadência - Nava começa o livro parafraseando Eça de Queirós, ao dizer que é um “pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais”. Ao longo dos sete livros sua figura vai se apagando como uma vela de defunto, preparando-se para entrar na eternidade nas 36 páginas do inacabado Cera das Almas, sétimo e último volume de suas Memórias.

Ele pensara em suicídio anos antes. Numa carta dirigida ao amigo Carlos Drummond de Andrade, em 1975, nove antes de morrer, Nava recomendou que seu cadáver fosse embalsamado com dois litros de formol. Essa fixação em morte e suicídio fica mais clara em O Círio Perfeito: nele, Nava derrama quatro gotas de sangue (na página 280 do texto original) e parece à beira de uma revelação que, afinal, resolve não oferecer ao leitor. Já então deprimido pelas reações negativas de seus familiares aos fatos descritos em suas Memórias, usa o último recurso de criar um alter ego para a revelação derradeira, que viria em Cera das Almas, segundo a biógrafa do autor, Monique Le Moing. Em A Solidão Povoada (Editora Nova Fronteira, 1996), ela fala dos sinais evidentes de sua tragédia anunciada ao se referir ao personagem do Comendador que, prestes a anunciar uma notícia bombástica, interrompe sua fala e não revela o desfecho - que ficaria para o último volume. Sua ligação extemporânea com o decadentismo, segundo o professor Arnoni Prado, poderia eventualmente explicar muito desse mistério. Ver amigos mortos sentados à mesa ou a própria morte penetrando seu corpo, sugere o professor, deixaria Nava muito à vontade na tradição do dark Gastão Cruls, amigo de sua prima Rachel de Queiroz. Também um médico e bom escritor, nunca é demais lembrar.