A memória traduzida em autêntica literatura
Com 'Baú de Ossos' (1972) e 'Balão Cativo' (1973), o ciclo autobiográfico que consagrou o mineiro Pedro Nava começa a ser reeditado; o terceiro dos sete volumes que compõem a série, 'Chão de Ferro' (1976), sai em agosto
25 de fevereiro de 2012 | 3h 00
Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
SÃO PAULO - As memórias do escritor e médico
reumatologista mineiro Pedro Nava (1903-1984), que começaram a ser
escritas em 1968, quando o autor tinha 65 anos, serão relançadas em
março pela editora Companhia das Letras - o primeiro e segundo volumes, Baú de Ossos e Balão Cativo, respectivamente, chegam às livrarias dia 2. Nessas Memórias,
que ocupam sete volumes, Nava revela: não foi só o Visconde de
Barbacena (com Genealogia da Família Mineira) seu único modelo e
inspiração, mas especialmente o escritor francês Marcel Proust
(1871-1922).
Divulgação
O escritor e médico Pedro Nava
. A sua, citada no volume seguinte, Balão Cativo,
tinha uma casca ardida, vermelha, e uma polpa branca que resistia ao
dente. O sabor cru, de terra, dos rabanetes da infância do mineiro, o
perfume do sumo de laranja e o cheiro das moringas novas compõem o
cenário proustiano de suas memórias frankensteinianas.
O professor e crítico Davi Arrigucci Jr., autor do posfácio da edição de Baú de Ossos,
chama a atenção justamente para o caráter cubista, fragmentário, dessas
memórias - até involuntárias - que ergueram um monumento literário no
Brasil na linha da obra máxima de Proust, Em Busca do Tempo Perdido. Arrigucci, no entanto, prefere associá-lo a dois clássicos da literatura brasileira - Casa-Grande & Senzala e O Ateneu -, mostrando como essas Memórias
iluminam o passado histórico brasileiro a partir de uma autobiografia
que é, antes de tudo, uma “meditação sobre a morte” - tão forte quanto a
lírica de Manuel Bandeira, segundo o crítico. “Cada um compõe o
Frankenstein hereditário com pedaços dos seus mortos”, escreve Nava em Baú de Ossos, para em seguida assumir com o leitor o compromisso de “dizer a verdade, só a verdade e, se possível, toda a verdade”.
Toda verdade não foi possível. O sétimo volume, Cera das Almas
(póstumo e incompleto), estava a caminho quando Nava recebeu um
telefonema, no dia 13 de maio de 1984. Saiu de casa e, por volta da
meia-noite, seu corpo foi encontrado numa praça do bairro da Glória, no
Rio, onde morou metade de sua vida. Aos 80 anos, com um tiro na cabeça, o
escritor se matou. A tragédia é comentada no livro Minha História dos Outros,
do jornalista Zuenir Ventura. Na época, chefe da sucursal carioca da
revista IstoÉ, ele convocou dois repórteres para investigar o caso e
localizar um garoto de programa que estaria por trás da ligação
misteriosa.
A história foi abafada. O próprio Zuenir escolheu não publicar a
versão do prostituto, que teria chantageado Nava. Se a ameaça de um
linchamento moral por causa de um garoto de programa foi a causa do
suicídio, é impossível saber. O fato é que, em suas memórias, não há
lugar para uma discussão direta sobre o tema homossexualidade, embora
cite escritores reconhecidamente homossexuais, como Cocteau, Gide,
Radiguet e Proust. O escritor evoca o último na página 341 de Baú de Ossos
para atestar que nossa memória não passa de um reflexo em que a ordem
dos fragmentos aparece invertida. Inconsolável, ele recorda, em Balão Cativo,
o amigo americano Moses Spector, que conheceu no Ginásio Anglo-Mineiro,
em 1914, e nunca esqueceu. O garoto voltou para os EUA e, mesmo
passados 53 anos, Nava ainda mantinha viva na memória a visão de seu
“cabelo arrepiado”, das sardas, dos olhos e da “boca cheia de língua”,
ao passar pela ponte de Brooklyn, em 1967, e lembrar-se até do endereço e
número da casa do amigo.
As Memórias de Pedro Nava não contam, contudo, apenas a
história da educação sentimental e moral do escritor. Arrigucci tem
razão ao comparar sua obra ao clássico Casa-Grande & Senzala,
do pernambucano Gilberto Freyre, porque, ao falar da própria família,
Nava traça um retrato implacável da burguesia brasileira dos séculos 19 e
20, escancarando os bastidores políticos da história do Brasil e dos
costumes nas casas-grandes mineiras e nordestinas (um ramo da família é
cearense). Impressiona a exposição do passado familiar por Nava, que
traz à tona, entre outros personagens, um bandido traficante de
escravos, violento, vulgar e blasfemo, cuja história, desvendada por um
parente, humilhou a avó. Nava jura que não citou o “celerado” ancestral
por cinismo, mas por acreditar que toda família tem uma ovelha negra
como “elemento de estabilidade” do núcleo.
Certo é que o escritor acreditava em valores transmitidos pelo DNA.
“Ninguém pode compreender nada da história social e política de Minas se
não entender um pouco de genealogia”, escreve em Baú de Ossos.
Na página 211 do livro, ele resume essa crença numa frase: “Bon sang ne
peut mentir” (Sangue bom não mente). E Nava descendia do bandeirante
Fernão Dias Paes, que mandou enforcar o próprio filho. “Bandoleiros para
os outros, heróis para a família”, justifica o escritor, pedindo aos
primos que não se zanguem com a revelação. De Portugal, conclui ele,
duas páginas depois, “nos ficou o preconceito contra tudo o que cheira a
mouro”. A avó de Nava, Inhá Luísa, que tinha “uma autoridade imanente”,
só faz confirmar o neto, por quem nutria o mais absoluto desprezo. Ela
não gostava de negros e virou a mão na boca da empregada Justina por
deixar entrar em sua casa a mucama da vizinha, dona Maricota Ferreira e
Costa. Com a boca sangrando, Justina, para espanto de Nava, cantou. E
nunca mais foi vista. O episódio é contado em Balão Cativo.
A honestidade de Nava é inquestionável, mas não se trata apenas de
memorialismo. Os mais fascinantes memorialistas, escreveu Paulo Mendes
Campos em 1981 (texto reproduzido em Balão Cativo), são pessoas “que não
têm muita coisa para contar”. O que teria um menino de Minas “de sala
de visita e quintal, inundado de saias familiares e óculos de adultos
engonçados, um estudante irrequieto, médico aplicado e poeta bissexto a
contar?”, pergunta o jornalista mineiro, para responder ele próprio que
foi exatamente nesse material biográfico “ressequido e sem graça” que
Nava encontrou “o seu além da toca do coelho”. Como Alice.
O professor de Literatura Massaud Moisés compara o novo capítulo que
Nava escreveu na história do memorialismo brasileiro a uma “revolução
copérnica, equivalente à que Guimarães Rosa empreendeu no terreno da
ficção”. Essa revolução, segundo o professor de Literatura da Unicamp,
Antonio Arnoni Prado, diz respeito não só à técnica do autor - “que
converte o passado numa espécie de metáfora inacabada das sensações que
refundam a experiência do sujeito-que-recorda, como se recriasse o mundo
à maneira do grande romance do século 19”. Arnoni Prado destaca ainda a
“voracidade heurística” do narrador criado por Nava, “que rearticula a
dicção harpejada das vozes que se colam ao estilo livre das citações,
das transcrições, da reduplicação documental, dos testemunhos da
história e da imaginação”.
Talvez seja conveniente lembrar que o primeiro volume das Memórias
de Nava saiu no período mais conturbado da ditadura militar (1972). É
mesmo um documento e tanto - não exatamente sobre o regime, mas sobre a
herança de um país suscetível a golpes de gente autoritária. “Também
tivemos a nossa belle époque, por sinal que feia como sete dias de
chuva”, escreve em Baú de Ossos. Com a República começou,
segundo ele, a decadência política e estética. Trocaram-se as gravuras
imperiais de Debret e Rugendas pelas pinturas “sebentas” de Giuseppe
Boscagli - “representando marechais anacrônicos em fardas do tempo da
Guerra da Crimeia”. E Nava segue adiante, espinafrando o despudor do
marechal Floriano, dos caciques, dos coronelões, da tradicional família
mineira, dos parentes e dos contraparentes. Mesmo ele não escapava dessa
decadência - Nava começa o livro parafraseando Eça de Queirós, ao dizer
que é um “pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais”. Ao
longo dos sete livros sua figura vai se apagando como uma vela de
defunto, preparando-se para entrar na eternidade nas 36 páginas do
inacabado Cera das Almas, sétimo e último volume de suas Memórias.
Ele pensara em suicídio anos antes. Numa carta dirigida ao amigo
Carlos Drummond de Andrade, em 1975, nove antes de morrer, Nava
recomendou que seu cadáver fosse embalsamado com dois litros de formol.
Essa fixação em morte e suicídio fica mais clara em O Círio Perfeito:
nele, Nava derrama quatro gotas de sangue (na página 280 do texto
original) e parece à beira de uma revelação que, afinal, resolve não
oferecer ao leitor. Já então deprimido pelas reações negativas de seus
familiares aos fatos descritos em suas Memórias, usa o último recurso de
criar um alter ego para a revelação derradeira, que viria em Cera das
Almas, segundo a biógrafa do autor, Monique Le Moing. Em A Solidão Povoada
(Editora Nova Fronteira, 1996), ela fala dos sinais evidentes de sua
tragédia anunciada ao se referir ao personagem do Comendador que,
prestes a anunciar uma notícia bombástica, interrompe sua fala e não
revela o desfecho - que ficaria para o último volume. Sua ligação
extemporânea com o decadentismo, segundo o professor Arnoni Prado,
poderia eventualmente explicar muito desse mistério. Ver amigos mortos
sentados à mesa ou a própria morte penetrando seu corpo, sugere o
professor, deixaria Nava muito à vontade na tradição do dark Gastão
Cruls, amigo de sua prima Rachel de Queiroz. Também um médico e bom
escritor, nunca é demais lembrar.