por Roberto Romano
O
Brasil ainda está na situação de constituenda Republica. Nossa política
exibe elementos suprimidos ou atenuados em outros países, como o
privilégio de foro. Encontra-se no Congresso a proposta de emenda
constitucional que aplica o referido privilégio para as ações de
improbidade administrativa. Voltamos ao absolutismo, quando o governante
era irresponsável e só prestava contas ao ser divino. A tese foi
propagada por James 1, que se proclamou vice-deus e usou a Torre de
Londres para esmagar democratas, advogados e juízes que cometiam a
traição querer o soberano submetido à plebéia prestação de contas e às
leis.
Apavora
saber que no Brasil membros dos três poderes aceitem um atentado à
Constituição e aos princípios da igualdade, da moralidade
administrativa, da responsabilidade prescrita aos agentes do Estado. A
prática e a teoria de hoje, mesmo em monarquias como a Espanha e a
Suécia, recusam doutrinas anti-democráticas. Entre os defensores da
desigualdade agora retomada em nosso país, encontra-se Aristóteles.
Segundo ele, os homens são naturalmente desiguais : "É por natureza que a
maior parte dos seres manda ou obedece" (Política, 1260a 9). Da
desigualdade brota a hierarquia social e política, alicerce dos
privilégios. As desigualdades servem, no entender de Aristóteles, para a
vantagem de todos, dirigidos e dirigentes. Aristóteles, filósofo
rigoroso, deu nome exato ao regime tido por ele como o melhor. E este
nome não é democracia. Em nossa terra, a folha de parreira hipócrita
impede confessar que somos um Estado oligárquico e contrário à ordem
democrática. Com frequência, no entanto, cai a folha e o país escuta
frases terríveis : “a história da ação de improbidade é uma história de
improbidades”. Silencio o nome do autor. Ao ler o enunciado, minha face
tornou-se rubra, com vergonha dos que nos regem.
Não
fosse o Ministério Público, alguns políticos e formadores de opinião, o
descalabro seria maior. Em 09/03/2007, no auditório Queiroz Filho do
MP-SP, foi debatido o tema
“Agentes Politicos e Improbidade Administrativa”. Os trabalhos,
iniciados por Rodrigo C. Rebello Pinho (Procurador-Geral de Justiça)
tiveram a coordenação de João F. Moreira Viegas, lúcido defensor da
cidadania. Na mesa se pronunciaram Nelson Gonzaga de Oliveira (Escola
Superior do MP-SP) Alexandre de Moraes (Conselho Nacional de Justiça),
Plinio de Arruda Sampaio, Rodrigo Collaço (Associação dos Magistrados
Brasileiros), José E. Martins Cardozo (PT-SP), Roberto Romano (Unicamp),
Claudio W. Abramo (Transparência Brasil), Fernando Rodrigues (Folha de
São Paulo), Franklin Martins (TV Bandeirantes).
Com
pequenas discordâncias em alguns pontos, os que se dirigiram ao
auditório lotado defenderam o império da lei. As falas indicaram os
prejuízos da impunidade e os perigos do foro privilegiado. Dado
impressionante: parlamentares, ex-prefeitos e ex-funcionários públicos
paulistas respondem a 1.300 inquéritos, nos quais as cifras chegam aos
R$ 36 bilhões. Celso Pitta (R$ 10,3 bilhões), Paulo Maluf (R$ 9,55
bilhões, Marta Suplicy (R$ 1,16 bilhão) e assim por diante. Existem 119
processos com base nas leis de improbidade administrativa e de ação
civil pública contra administradores. Outros 40 transitaram em julgado,
condenando políticos. Se voltarem aos cofres públicos, os R$ 36 bilhões,
representam mais que o dobro do Orçamento da cidade de São Paulo (R$
17,2 bilhões).
Leitor:
ao escutar a expressão “privilégio de foro”, saiba que ele permite,
além da ruptura com a democracia e com a república, o roubo dos impostos
tirados de seu bolso. Faça as contas, busque números do Brasil inteiro,
compare com os serviços públicos (segurança, saúde, educação,
transportes, etc) ao seu dispor. E mande cartas, mensagens eletrônicas,
telegramas ou telefone para deputados, senadores, STF e Presidente da
República: todo apoio ao Ministério Público, na luta contra quem se
julga “superior” à cidadania e assalta, impune, a Nação.
Roberto Romano, é Professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp.
Fonte: Correio Popular (Campinas) - 14/03/07