sábado, 5 de maio de 2012

Folha, uma rara entrevista instigante.

05/05/2012 - 07h52

Nobel Herta Müller fala do terror das ditaduras e critica Günter Grass


FABIO VICTOR
MARCIO AQUILES
DE SÃO PAULO

Tortura, perseguição, medo e traição entranham vida e obra de Herta Müller. 

Ganhadora do Nobel de Literatura em 2009, a escritora romena-alemã de 59 anos volta a acertar as contas com seu passado atormentado em "Sempre a Mesma Neve e Sempre o Mesmo Tio", que acaba de sair no Brasil pelo Biblioteca Azul, novo selo da Globo Livros (tradução de Claudia Abeling, R$ 34,90, 248 págs.). 

O lançamento reúne discursos, artigos e ensaios da autora, que falou com exclusividade à Folha --por e-mail e em alemão, exigências dela. 

Livro e entrevista revelam que independe a ordem do substantivo: Herta Müller é igualmente uma brava mulher e uma mulher brava. 

Brava mulher por resistir à tirania e narrar tudo, reviver pela literatura. Em "Sempre a Mesma Neve...", volta a descrever como o regime do ditador romeno Nicolae Ceausescu (1918-1989) a acossou desde que ela se recusou a colaborar com a Securitate, polícia secreta do país.
Declarada "inimiga do Estado", a escritora se mudaria em 1987 para a Alemanha. 

No ensaio "Cristina e Seu Simulacro", vasto painel do terrorismo do regime, Herta conta ter descoberto que até sua melhor amiga dos tempos de Romênia, que lhe deu ombro durante a perseguição, virara espiã do regime (e a espionou na Alemanha). 

Em "Mas Sempre Ocultou", relata o espanto ao descobrir que o poeta e amigo Oskar Pastior, colaborador em seu último romance, foi ele também um espião. Na entrevista, explica por que o perdoa. 

Herta Müller, cujo pai lutou do lado nazista na Segunda Guerra, é também uma mulher brava. Atacou o colega Nobel Günter Grass --por dizer, num poema, que Israel ameaça a paz mundial-- e os regimes de China e Irã. 

Deu algumas respostas mal-humoradas. E deixou três perguntas sem resposta. 


Alejandro Acosta/Reuters
A escritora alemã Herta Müller, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura
A escritora alemã Herta Müller, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura
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Por que a sra. decidiu reunir estes textos num livro? O que confere unidade a eles?

Herta Müller - Este volume não é a primeira coletânea de ensaios e palestras. Eu tentei mais uma vez explicar de onde meus livros surgem, por que escrevo. E muitas coisas têm justamente a ver com minha vida, o convívio com a ditadura romena, a experiência da perseguição política e do medo --um dia a dia que não se pode nem imaginar nas democracias ocidentais. 

O livro mescla discursos, palestras e artigos. O que diferencia o texto escrito para ser falado de um outro que não tem esse fim?

Uma palestra já é um "texto escrito" que foi lido em voz alta em alguma ocasião. Eu nunca falei em público sem anotações. Não me julgo capaz para isso. 

Seu amigo Oskar Pastior é figura central deste livro e do seu último romance. Apesar da descoberta de que ele colaborou com a Securitate, no texto "Mas sempre ocultou" a sra. o perdoa e escreve: "Mas eu o acolheria em meus braços todas as vezes". Por que? Teria o convocado a colaborar em "Tudo o que Tenho Levo Comigo" se soubesse que ele atuou como espião do regime romeno?

Esta é uma pergunta que exige uma resposta detalhada. Espero que vocês tenham paciência.
Sem Oskar Pastior eu não teria escrito meu último romance ["Tudo o que Tenho Levo Comigo"]. O livro conta a história de como os alemães foram deportados da Romênia para os campos de trabalhos forçados da ex-União Soviética em janeiro de 1945. Para Stálin, todos os alemães foram cúmplices de Hilter. E [de fato], dos alemães que estavam na Romênia, muitos
combateram como voluntários no exército alemão, inclusive em janeiro de 1945, quando os russos ocuparam a Romênia e começaram a deportar os alemães. 

Uma vez que os homens ainda estavam em plena guerra --lembrando que a guerra só acabou em maio de 1945-- deportaram-se mulheres entre 17 e 45 anos, além dos homens que eram jovens ou velhos demais para a guerra. Foi o caso da minha mãe e de Oskar Pastior, então com 17 anos de idade.
Eu sempre quis escrever um livro sobre essa deportação, que perdurou por cinco anos, sobre a desgraça nos campos, sobre a quantidade enorme de mortos e o silêncio que se seguiu.
Pois minha mãe só contava esses episódios de maneira muito vaga. 

Oskar Pastior, com sua memória, me deu inúmeros detalhes, e nos anos de preparação de "Tudo o que Tenho Levo Comigo" nós nos tornamos bastante amigos. Depois da sua morte, quando descobriram que ele foi espião da polícia secreta romena de 1961 até a fuga do país em 1968, eu fiquei muito chocada. 

Mas hoje eu sei pelas atas que Pastior foi chantageado. Depois de retornar do campo de concentração russo, ele escreveu sete poemas que foram considerados "difamação antisoviética". 

E nos anos 60 ainda eram as leis estalinistas que valiam na Romênia. Ele teria recebido uma pena de 20 anos ou mesmo perpétua por essas acusações. Impuseram-lhe a escolha: prisão ou espionagem. E foi claro que ele optou pela segunda alternativa. 

Dos registros secretos, eu vim a saber que ele escreveu cinco relatórios em dez anos, todos eles banais e sem importância. Portanto foi por meio da passividade que ele conseguiu se safar da situação e, no fim, não causou nenhum dano a ninguém. 

Hoje eu agradeço o fato de ele não ter me contado nada sobre a atividade de espião. Sem a oportunidade de ler as atas --somente após a sua morte elas se tornaram públicas--, eu não teria acreditado que ele só entregara relatórios sem conteúdo e teria rompido a amizade --sem nenhuma razão, como vejo hoje. E ainda não teria tido a chance de pedir-lhe desculpas, pois ele morreu antes de que se pudesse ler os relatórios que escreveu. 

A sra. menciona que a Alemanha Ocidental pagou à Romênia para receber romenos de etnia alemã. A sra. também foi "vendida"? (caso sim, por quanto?)

Havia de fato um acordo entre a Alemanha Ocidental e a Romênia sobre [o que se costuma chamar de] "reagrupamento familiar" --12 mil alemães puderam deixar a Romênia a cada ano, e a Alemanha pagou alguns milhares de marcos por cada pessoa. Mas eu não era um caso normal, eu deixei o país como "inimiga do Estado". Desde que fui ameaçada de morte, eu estava em uma "lista prioritária" da Anistia Internacional e o então ministro do Exterior alemão, [Hans-Dietrich] Genscher, intercedeu pela minha saída do país. Quanto foi pago por mim, não sei. 

Em mais de uma passagem do livro a sra. trata do suicídio, chegando a escrever que "talvez o suicídio seja uma procura total pela felicidade". Concorda com Camus que o suicídio é "o único problema filosófico verdadeiro"? Como resistir à tentação de tirar a própria vida?

Para mim, pensar em suicídio não era um problema filosófico. Eu pensava nisso porque estava em uma situação sem saída. Quando me recusara a cooperar com a polícia secreta Securitate, ou seja, quando me recusei a ser espiã, perdi meu emprego, fui chamada várias vezes a interrogatórios e recebi ameaças de morte. Eu não sabia o que fazer. Quando eu estava com a corda no pescoço, pensei comigo: se me mato agora, eu faço o trabalho da Securitate; já que querem me matar, que façam então eles mesmos o serviço.
A obra da sra. é definida pelas marcas da opressão de sistemas ditatoriais. Há algum regime atual que tenha paralelos com o nazismo e o stalinismo? Há risco de aquelas experiencias se repetirem?

Dê uma olhada no que se passa agora no mundo. O que está acontecendo na China, onde pessoas que não concordam desaparecem em prisões secretas ou são condenadas a longas penas de prisão, como o Prêmio Nobel da Paz Liu Xiaobo e sua mulher. Para isso, o governo chinês não precisa nem de uma ordem judicial como forma de legitimação. E o que acontece na ditadura religiosa no Irã? Existe hoje uma religião patriarcal totalitária, que ameaça o mundo com a extinção de todo um país com a destruição de Israel. 

A sra escreve que a Romênia, "o país do fracasso universal", passou da tirania de Ceausescu a uma democracia corrupta e dominada pela criminalidade. O que falta para o país se tornar viável?

Na Romênia --assim como na maioria das sociedades pós-ditatoriais-- os funcionários do antigo regime se arranjaram bem na nova ordem. Hoje eles são empresários e políticos e, em vez da repressão, o que domina o país agora é a corrupção. Além disso, há o desinteresse da população sobre o esclarecimento da ditadura. Diferente do que acontece na Alemanha, na Romênia quase ninguém quer ler seus arquivos do serviço secreto, para saber quem o traiu ou espionou. Talvez gente demais tenha colaborado com o serviço secreto. A falta de interesse no passado impediu um novo começo com políticos livres de acusações. 

A sra. escreve que a literatura não pode fazer nada contra as ditaduras, apesar de dizer que, a posteriori, ela pode mostrar tudo o que aconteceu. Acredita que a literatura ainda tem o poder de influenciar as pessoas?

Acho que o que se aprende com livros é um processo individual. Eu aprendi muito com os livros. Mas o que eles fazem com cada uma das pessoas é coisa que não se pode avaliar. 

Kafka, Celan, Canetti são autores que escrevem em alemão, mas não nasceram na Alemanha, e compartilham experiências de vida com a sra. Esses autores, assim como Kertész e Cioran, são comumente mencionados quando se fala da sua obra. Com a obra de qual deles a sra. mais se identifica?

Eu não me identifico com nenhum outro autor. Há às vezes algumas semelhanças biográficas e interesses em comum. Mas experiências de vida são sempre diferentes. Desses autores, o mais próximo de mim seria Imre Kertész. 

Como a sra. viu a recente polêmica em torno do poema em que Günter Grass critica Israel? Concorda com ele que Israel é uma ameaça à paz mundial?

Grass distorce a realidade. O Irã está ameaçando Israel com a aniquilação, e não o contrário. Além disso, chamar o texto dele de poema é um rótulo embusteiro. Grass perdeu para mim a sua credibilidade moral há muito tempo, porque ele ocultou durante décadas sua filiação à [organização nazista] SS. 

Como a sra analisa o comentário do Nobel V.S. Naipaul de que textos escritos por mulheres são reconhecíveis ao primeiro parágrafo, que mulheres escrevem com sentimentalismo e não são iguais a ele?

Ah, isso não me interessa. 

Existe uma crítica recorrente, vinda principalmente dos EUA, de que o Prêmio Nobel é eurocêntrico e despreza a literatura de outros continentes. A sra. concorda?
Sem resposta. 

A sra. conhece algo do Brasil e da literatura brasileira? Tem planos e/ou convites para vir ao Brasil?

Sem resposta. 

Em que a sra. trabalha no momento? Quais os próximos livros que vai publicar?
Sem resposta. 

Seu primeiro livro foi publicado há 30 anos. Como a sra. vê o desenvolvimento de sua literatura?

São os leitores que deveriam avaliar o "desenvolvimento" da minha literatura.