sexta-feira, 4 de maio de 2012

Jornal da Unicamp

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 23 de abril de 2012 a 06 de maio de 2012 – ANO 2012 – Nº 524

O corpo como espelho social

Pesquisa de professora do IA mostra por que a dança é um experimento de resistência
1
Foi abordando a transformação do corpo ao longo da História da Dança que a dançarina, coreógrafa, intérprete e professora da Unicamp Holly Elizabeth Cavrell concluiu que somente é possível criar essa história fazendo um percurso, “mesmo não se conhecendo o final da trajetória”. A constatação resulta de sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Artes (IA), à qual ela dedicou anos de estudo e um exaustivo trabalho para vertê-lo da língua inglesa para a portuguesa. Nessa pesquisa, orientada pela professora Cássia Navas, Holly fala de perímetros como variante de um percurso subterrâneo que empurra o corpo para a frente sem a necessidade de definir um destino.
Ela conta que a dança é um experimento de resistência, tal como aquele que procurou desenvolver em 2009 em Nova Iorque. Com uma bolsa Capes, foi fazer pesquisa na New York University, no Departamento de Performance Studies. Passou oito horas no metrô de NY, a maior cidade dos Estados Unidos. Sentou-se dentro de um vagão e ficou alerta aos ‘músicos de ocasião’ que, do lado de fora, tocavam nas plataformas. Em cada estação, observava tudo e, quando a porta se abria, seguia em frente na direção do som. Seu ponto de vista era explorar o corpo e suas possibilidades.
A ideia original era ater-se ao século XX. Mas, movida pela curiosidade, conheceu as raízes da dança, os corpos que dançam e dançaram, como se modificam e como mudaram no percurso.
A autora, para quem a história se move em ciclos, assim como a dança, retrocedeu então ao século XV. Era o momento em que a primeira forma de dança foi codificada, o balé. Buscou saber mais sobre os formadores do corpo, os conceitos fixados nele e o que foi eliminado. Fez a tessitura daquela história.
O balé, informa ela, começou na Itália e migrou para a França. Suas raízes começaram como pompa – o corpo apresentado com ornamentos. Holly explorou o seu desenvolvimento, quem foram os seus modelos e o momento em que a linguagem foi sistematizada. As descobertas prosseguiram ao longo das quase 300 páginas da tese. Não obstante isso, a pesquisadora sente que, mesmo considerando vários pontos de vista, os quais dão uma ideia compreensível dos períodos, a tese toca apenas a ponta do iceberg.
No século XVII, relembra a autora, os modelos eram os corpos dos nobres, como o de Luís XIV, o “rei sol”. Dele emanavam as formas de se movimentar – cujos passos vinham em geral da dança social dos camponeses. A aristocracia seguia o rei até nas vestimentas para ensinar a maneira correta de se movimentar. Usavam-se armações que limitavam os movimentos, pela postura nobre. Não era fácil se curvar, devido aos espartilhos. A cabeça movia-se pouco por causa da peruca. As partes expressivas eram a mão, o busto das mulheres e as panturrilhas masculinas.
Naquele tempo, apenas homens dançavam, e o uso de máscaras auxiliava na composição de papéis femininos. A Revolução Francesa rompeu com o padrão aristocrático. Foi quando a mulher ganhou status, dominando os palcos como dançarina. No século XX, ela começou a se liberar também fora dos palcos, na luta pelo voto, estabelecendo a voz feminina no campo da igualdade intelectual e como indivíduo na sociedade. Misturaram-se os assuntos sociais, econômicos e culturais. O corpo era o espelho social.
Às vezes, nota Holly, alguns contextos agem como catalisadores na mudança do artista e em outros têm o artista como catalisador. As coreografias dão a dica sobre o que o artista tirou do seu tempo e, com o rastreamento histórico, também é possível detectar ritmo, espaço, peso e dinâmica de uma época, o que pode alterar a percepção categórica, uma vez que a história é tudo, menos linear, e parece ondulatória ou cíclica quando se mapeia o fluxo das tendências artísticas. “O nosso corpo é a fusão de experiências. Carregamos uma história que não nasce de um dia para o outro. Acreditamos ser uma geração única, todavia esses momentos se repetem”, ensina.
A autora recorda que, ao longo da História, grupos responderam à crise com arte, como os Futuristas – um movimento artístico e literário que surgiu em 1990 com a publicação do Manifesto Futurista no jornal Le Figaro. Eram contra o governo e usaram a arte como porta-voz. Queriam explorar o que significa ser um artista do futuro. Suas obras baseavam-se na velocidade e na tecnologia.
Os futuristas inspiraram outros artistas, que depois fundaram novos movimentos modernistas como Dadá, em resposta à Primeira Guerra Mundial. Para eles, a arte tinha se tornado banal. “Os corpos que cresceram com a opressão são uma resposta através da arte”, realça Holly, citando ainda outro grupo, o Fluxus, que surgiu da década de 1950, após a Segunda Guerra. Mas como um corpo responde a uma determinada época? O seu valor só é reconhecido pela resposta da próxima geração, garante a pesquisadora. “E nossos modelos atuais não serão necessariamente fixados no tempo.”
Imbricações
No século XV, a dança era mais estática e mais alusiva aos mitos. Tudo exaltava a posição do rei. Eventualmente ele, em particular Luís XIV, queria disseminar como o seu corpo se expressava. Como era o modelo de divindade, esta foi a maneira que os nobres e as pessoas mais chegadas ao rei acharam de ‘estar mais próximas de Deus’.
Nessa época, as danças foram codificadas, transformadas em livros e distribuídas na Europa. “Eram uma forma ‘hegemônica’ de mostrar como a França tinha importância assim como esse corpo francês, retratado pelo rei”, salienta Holly. Com a Revolução Francesa, o corpo passou a se modificar com a sua ajuda: infiltrando novas maneiras de se movimentar. Muitos decidiram se refugiar em outros países. A dança começou a entrar no corpo da mulher, que passou a dominar o palco no século XVIII. Já o homem chegou a produzir uma dança baseada na técnica, porém tão exageradamente que foi reprovado pelo público, criando-se uma virtuosidade “monstruosa”.
As mulheres que adquiriam a técnica conquistaram mais olhares com sua presença etereal no século XIX. Maria Taglioni, uma famosa bailarina da era romântica, assistiu em Viena – onde treinava – os acrobáticos fazendo truques, subindo nas pontas dos pés. Então o trabalho de ponta foi uma apropriação dos truques e, com isso, foi capaz de idealizar a ponta que hoje está nas sapatilhas do balé.
A bailarina romântica, a despeito de apresentar uma qualidade de leveza, tinha uma musculatura enorme. É difícil imaginar, sem ajuda do sapato, o que o musculatura tinha que fazer para correr na ponta dos pés pelo palco. A mulher ideal virou um modelo etereal e esquivo, apesar de ter um corpo robusto, resultado de treinamento pesado.
No século XX, surgiram as mulheres mais representativas da vida urbana e interessadas na autoexpressão. Além do corpo social da mulher que tirou o espartilho e se despiu, muitas peculiaridades em seu corpo foram reparadas.
Holly escolheu algumas personalidades para falar das duas gerações da dança moderna. Na primeira geração, lembrou Isadora Duncan, Ruth St. Denis e Loie Fuller. Duncan era contra o que reprimia a mulher, como o casamento por exemplo. Denis era mais interessada na dança mística e a relação do corpo como sagrado. Fuller foi muito imitada na virada do século, ao usar varas e tecidos de seda, formando imagens efêmeras com luz. Além de ser uma química e fazer suas misturas sozinha, era iluminadora e uma artista completa.
Conforme a pesquisadora, essas personalidades não estavam associadas a grupos, como era o costume até o século XIX, como a Ópera de Paris. Na Rússia, também o desenvolvimento era feito a partir de uma escola e companhia ligada ao governo imperial. A artista singular rompeu com isso, evidenciando as mulheres como pioneiras da dança.
Na segunda geração da dança moderna, do final da década de 1920 para a de 1930, conseguiu-se ver no corpo que as pessoas começaram a trabalhar com assuntos reais do seu lugar. A depressão e a falta de alimentos foram assuntos que o povo viveu na pele. O momento marcou a presença da mulher autoexpressiva falando de sua época e abandonando os códigos anteriores do corpo.
Nessa transição, em que se apresentou um objetivismo estético, a política, informa Holly, era um setor conservador, fato que se refletiu no corpo e saiu um pouco da autoexpressão. A história, para a autora, era sempre a vida das pessoas, contudo em sua pesquisa viu também que é o agora. E essa história envolve pessoas nas intervenções, escolhas e destinos.
Da Broadway ao inusitado
Holly, americana de Nova Iorque, começou a dançar aos oito anos na Juilliard School, incentivada pela mãe. Era um curso preparatório com formação musical e em dança. Aos 11 anos, interessou-se por ‘construir’ a dança, tanto que reservava uma aula de composição sempre após a de técnica. Ficava olhando outros bailarinos coreografando. Foi então que decidiu conversar com a professora para fazer o mesmo. Ela riu, mas lhe deu a chance de se apresentar na semana seguinte.
Preparou uma coreografia por meio de um poema. Recitou-o, depois dançou o poema e dançou-o novamente recitando. De imediato, a professora a convidou para ser estagiária em sua companhia. Sempre buscando uma ligação entre a criação e a técnica, fez uma trajetória como criadora e intérprete. Dançou na companhia da Martha Graham quando tinha 17 anos e vivenciou uma carreira desde os palcos da Broadway até espaços alternativos e inusitados.  
Na década de 1970, existiam várias fusões em Nova Iorque. Entretanto, muitos grupos eram refratários à técnica. Holly foi convidada a ir ao México, onde trabalhou como professora no balé folclórico. Depois foi à Venezuela e à Suécia, onde permaneceu oito anos. Trabalhou na França, Finlândia, Dinamarca e América Central.
Estando na Suécia, preencheu um formulário e recebeu uma bolsa Fulbright para pesquisa e troca de conhecimentos em dança. Escolheu o Brasil, que já conhecia graças a algumas imagens feitas pelo seu pai, cineasta. Chegando aqui, sentiu-se em casa. Isso faz 22 anos. Professora concursada em 1999 pela Unicamp, naturalizou-se brasileira, casou-se e constituiu família e, de quebra, reuniu tudo o que queria.

Publicação
Tese: “Dando corpo à história”
Autora: Holly Elizabeth Cavrell
Orientadora: Cássia Navas Alves de Castro
Unidade: Instituto de Artes (IA)