A reinvenção da família
Mulher no mercado, queda da fecundidade e maior expectativa de vida mudam universo doméstico
As
investigações mais recentes de demógrafos da linha de pesquisa Família,
Gênero e População da Unicamp apontam que, na contramão do que se
prega, a família brasileira não está em crise. Mantém-se viva e mais
heterogênea do que num passado recente. A memória que as gerações mais
velhas guardam de suas experiências familiares certamente não
correspondem às realidades contemporâneas, sustenta a demógrafa Maria
Coleta Oliveira, coordenadora dessa linha do Núcleo de Estudos da
População (Nepo), da qual participam pesquisadores, docentes,
pós-doutorandos e alunos de doutorado e mestrado.
A
demógrafa é categórica em enfatizar que não se pode mais falar em
família brasileira no singular. Segundo ela, há hoje um amplo espaço de
reinvenção e uma boa parte dessas mudanças pode ser atribuída à condição
da mulher. A sua crescente participação em um mercado de trabalho
consolidado no país abre espaço para novas tensões no mundo doméstico.
“São tensões que têm a ver com as definições das atribuições de gênero
de homens e mulheres”, diz Maria Coleta, que chama a atenção para o fato
de a dimensão de gênero estar presente desde o início dos trabalhos do
grupo.
Essa visão é compartilhada
pela demógrafa Elisabete Bilac, para quem as mudanças da condição
feminina questionam o modelo provedor – a mãe em casa, o pai no trabalho
–, embora atualmente as mulheres sofram com uma dupla jornada de
trabalho.
Processos demográficos
fazem parte das mudanças nos arranjos domésticos. Dois deles são
especialmente importantes: a queda vertiginosa da taxa de fecundidade e o
aumento da expectativa de vida. Ambos os processos tornam
imprescindível refletir sobre as relações de gênero e geração, resume
Elisabete Bilac.
No Brasil, a
fecundidade feminina passou da média de 6,3 filhos por mulher em 1960
para 1,86 em 2010, com impacto óbvio no tamanho das famílias e na
descendência de sucessivas gerações, assevera Maria Coleta. Ao mesmo
tempo, o envelhecimento porque passa a população brasileira e o aumento
da sobrevida alteram o desenho, a configuração e a qualidade das
relações familiares, concordam as pesquisadoras.
Ter
poucos filhos e uma vida mais longa significa que a mulher viverá mais
tempo como mãe de filhos adultos do que as suas próprias mães viveram.
Por outro lado, os filhos pequenos de famílias pequenas terão uma
infância completamente diferente em termos de sociabilidade. O seu mundo
será povoado por personalidades adultas – pai, mãe, avós e professora –
e poucos parentes e contemporâneos da mesma geração.
Observa-se
inclusive atualmente uma tendência de crescimento que se reflete na
frequência de casais sem filhos nas classes médias e altas, os dink (ou
dinc), abreviação do inglês “double income, no children” (ou no kids),
traduzida como “renda dupla e ausência de crianças”, destaca Elisabete
Bilac.
As relações de conjugalidade
também já não são as mesmas, segundo as pesquisas. Em boa parte dos
países latino-americanos, entre os quais o Brasil, a união consensual
(informal) é uma dimensão histórica recorrente da vida familiar.
Há
pouco, o acesso ao casamento era privilégio de camadas sociais com
recursos econômicos e sociais. As uniões consensuais, ao contrário, eram
associadas às camadas populares que não tinham acesso a cartórios ou
não dispunham de recursos para uma cerimônia matrimonial.
Por
influência da Igreja, até o Censo de 1950 não se coletavam dados sobre a
união consensual. A informação referia-se ao estado civil e não ao
estado conjugal.
As pessoas que
viviam nessa condição não eram consideradas como unidas. Um homem
anteriormente casado, vivendo com outra mulher, solteira ou desquitada,
também não era considerado como vivendo em união. “Por consequência, o
censo estava repleto de mulheres solteiras com filhos”, ilustra
Elisabete Bilac.
Isso foi alterado já
no Censo de 1960, quando as uniões consensuais passaram a ser levadas
em conta. E a cada década elas vêm aumentando e se disseminando por
todas as classes sociais, a priori entre os jovens, deixando de estar
associada exclusivamente à pobreza.
O
entendimento dessas mudanças na conjugalidade, explica a demógrafa
Gláucia Marcondes, tem sido prejudicado pela falta de bases de dados
adequados à avaliação de tendências e transformações de um ponto de
vista longitudinal. Pesquisas qualitativas são utilizadas como uma
tentativa de sanar parcialmente essas lacunas.
Os homens
A
pesquisa “Homens: esses desconhecidos”, coordenada pela demógrafa Maria
Coleta, trouxe os homens para o mundo das relações domésticas. Com
financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp), Organização Mundial da Saúde (OMS) e Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a pesquisa é um exemplo
das alternativas possíveis para o entendimento das mudanças de gênero e
geração no campo de estudos de população.
O
estudo, de natureza qualitativa, foi realizado com 154 homens e
mulheres com idade entre 24 e 64 anos, provenientes de camadas médias
paulistanas, recuperando suas trajetórias familiares, os contextos de
suas relações afetivo-sexuais e as vivências de paternidade, próprias e a
de seus parceiros.
O projeto
sinalizou que os homens das camadas médias passam por momentos de
experimentação de novas soluções para o cotidiano de suas relações de
companheiros e de pais. Homens das gerações mais jovens revelam a
expectativa de que suas mulheres contribuam para o sustento da família e
de seu padrão de vida, achado consistente com a tendência detectada
mais recentemente de consolidação de um padrão de dupla renda nas
famílias.
A pesquisa também mostrou
existirem tensões entre as ideias de igualdade entre homens e mulheres,
tanto no mundo do trabalho quanto no mundo da casa, e as práticas de
gênero ao longo do curso de vida das famílias. Em oposição aos primeiros
anos da vida em comum, onde se observa um maior compartilhamento das
tarefas domésticas, quando nasce o primeiro filho nota-se um retorno a
comportamentos mais convencionais.
Nesse
caso, as mulheres ficam mais tempo com os bebês, passando a se ocupar
mais da vida doméstica, enquanto os homens refugiam-se em seu papel de
provedores. Para isso, contribuem com uma socialização masculina que os
fazem se sentir despreparados para as tarefas de cuidado e concepções de
gênero que naturalizam a capacidade feminina de ser mãe.
Os
resultados do estudo deixam clara a inexistência de soluções mágicas
para os conflitos entre as demandas de cuidado e aspirações
profissionais e de geração de renda que incidem sobre as mulheres, tema
sobre o qual atualmente se debruçam estudiosos das famílias,
independentemente de suas especialidades, destaca Maria Coleta.
Elisabete
Bilac ressalta que, ao lado desse homem que se torna um pai
tradicional, emergem outros padrões, como o do pai que teve uma filha de
uma relação eventual e ganhou sua guarda na justiça. Ele criou o bebê e
controlou rigorosamente as visitas da mãe.
“A
reinvenção da família envolve a reinvenção da paternidade, que passa
também por várias transformações, assim como a sua negação. Há homens
que não querem ser pais. O que devemos entender é que a paternidade não
está mais ligada de modo irreversível à virilidade masculina”, garante a
demógrafa.
Tornar-se adulto
Outra
linha de investigação do mesmo grupo do Nepo aborda a transição para a
vida adulta. Esse processo abarca diversos eventos marcantes da
trajetória de vida dos indivíduos, como a saída da escola, entrada no
mercado de trabalho, saída da casa dos pais e formação de família.
Os
resultados de uma dessas pesquisas, que traça uma comparação entre os
censos de 1970 e 2000, indicaram um padrão duplo de entrada na vida
adulta. Jovens de baixa renda, definidos na pesquisa como os 20% mais
pobres, têm um tempo de juventude inferior àqueles da camada de alta
renda, os 20% mais ricos.
Na
investigação, ficou notório que particularmente as jovens de baixa renda
assumem responsabilidades próprias da vida adulta cerca de sete anos
antes do que um jovem de alta renda, relata a demógrafa Joice Vieira,
autora do estudo.
A interrupção dos
estudos, a urgência em conquistar um trabalho fixo que atenda às suas
necessidades de sobrevivência e a formação de família com filhos marcam o
curso de vida dos jovens de baixa renda ainda no final da adolescência e
princípios dos 20 anos.
Jovens das
camadas de alta renda tendem a adiar essas preocupações e estender o
tempo de escolarização, pontua a demógrafa, dedicando sua juventude a
diferentes formas de experimentação e a outras vivências antes de
assumir maiores responsabilidades.
Novos dados
Alguns
dos pontos mais aguardados pelos pesquisadores com relação aos dados
completos do Censo 2010, recém-divulgados, são as informações sobre os
casais de mesmo sexo, a chefia compartilhada do domicílio e a
co-residência com enteados.
Isso
representa uma inovação para os estudos de famílias, pois o novo censo
permitirá ter uma primeira radiografia de quantos são e como vivem
casais em uniões homoafetivas; assim como a indicação da chefia
compartilhada “possibilitará saber a quantidade de domicílios cujo
gerenciamento é exercido de forma mais simétrica e menos autoritária”,
acentua Gláucia Marcondes.
Sobre a
presença de enteados no domicílio – ou seja, de filhos que são fruto de
uma união anterior de um dos cônjuges –, até então eles eram incluídos
em uma única categoria com os filhos do casal, sendo impossível
distingui-los. Não se conseguia, em razão disso, avaliar a importância
das chamadas famílias recompostas na população brasileira.
A
expectativa de que famílias desse tipo fariam cada vez mais parte dos
arranjos domésticos fez com que, pela primeira vez no Brasil, a Pesquisa
Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) incluísse a distinção entre
filhos e enteados. As estimativas com base nessas informações mostraram
que as famílias que trazem filhos de uniões anteriores representavam
15,4% do total de famílias brasileiras em 2006.
Joice
Vieira chama à atenção para o fato de o peso das famílias recompostas
no Brasil atual ser comparável àquele verificado em outros países na
região do Mercosul, como a Argentina, por exemplo. No entanto, ressalta
que “a fecundidade brasileira está hoje em um nível mais baixo do que a
fecundidade argentina ou de qualquer outro país do Mercosul. Quanto à
complexidade dos arranjos familiares, a heterogeneidade das formas de
família já é uma constante em toda a região”, pondera.
A
importância dos estudos de família, conjugalidade e gênero não se
restringem à ampliação do conhecimento sobre a sociedade brasileira.
Como realça Elisabete Bilac, a contribuição deste campo de estudo
consiste em considerar a diversidade das organizações familiares,
tomando-se o cuidado para que as políticas públicas não as engessem em
um modelo idealizado. “Afinal, todas as conformações familiares merecem
respeito