Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 13 de agosto de 2012 a 19 de agosto de 2012 – ANO 2012 – Nº 535
A ciência de
Calvino
As
convergências e divergências entre literatura e ciência na obra de
Italo Calvino [1923-1985]. Ou como o intelectual italiano desfez a visão
cristalizada de que a literatura seria um território exclusivo da
expressão da subjetividade do autor em contato com o mundo, e de que a
ciência se basearia unicamente em procedimentos de precisão e rigor,
transmitidos por uma linguagem também exata e fechada. É este o mote
descrito por Vanina Carrara Sigrist para a pesquisa de doutorado
“Literatura e Ciência em Italo Calvino: o mito Qfwfq”, que ela
desenvolveu sob a orientação da professora Maria Betânia Amoroso e vai
defender em fins de agosto no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).
“Calvino
é um escritor que atrai e agrada muito aos leitores e seus escritos
percorrem décadas. No mestrado, tentei entender alguns dos sentidos que
as fábulas adquiriram para Calvino, principalmente no início de sua
trajetória, mas que o acompanhariam por muito tempo. Agora, procuro
delinear a relação entre literatura e ciência dentro da sua obra,
focando o período de 1965 até 1985, ano da sua morte – ele publicou até o
último dia de vida”, afirma Vanina Sigrist. “Há quem diga que sua
produção de ensaios e de textos teóricos talvez seja mais interessante e
profícua do que a produção ficcional. Minha pesquisa envolve as duas.”
A
pesquisadora procura entender como Calvino vê literatura e ciência nos
ensaios e também através do livro de contos “As Cosmicômicas” (1965).
“Neste livro, especificamente, o escritor aborda com clareza temas
científicos como Big Bang, teorias matemáticas e cibernéticas, entropia,
leis de termodinâmica e leis astronômicas como da Lua, que há milhões
de anos estava bem próxima da Terra e agora se distancia cada vez mais”,
ilustra a autora da tese. “E Calvino insiste que não se trata de ficção
científica, de futurismo, mas de abordar o que aconteceu no passado. Ao
mesmo tempo, o livro é bastante atual, com narrativas de casos do
cotidiano, como brigas em família e ciúmes entre casais.”
Vanina
Sigrist explica que o protagonista dos contos de “As Cosmicômicas” tem
um nome bastante esquisito, Qfwfq, combinação de letras que remete a
fórmula matemática. “Em cada história, Qfwfq possui um rival que vai
enfrentar num jogo, uma possível namorada, uma avó, pais, um tio,
convivendo todos num mesmo ambiente. Um dos contos mais saborosos é da
sua versão para o Big Bang (ainda hoje uma hipótese científica e
literária), em que o protagonista e outros personagens ocupam um único
ponto. Até que a senhora Ph(i)NKo, figura sensual e ao mesmo tempo
maternal, diz que ‘adoraria fazer um tagliatelle para vocês, se não
estivéssemos tão espremidos’. Ao pronunciar esta frase, no impulso de
cozinhar para todos, teria acontecido o Big Bang.”
Segundo
Vanina, as narrativas de Calvino são antropomórficas, ou seja, ainda
que Qfwfq apareça ora como um dinossauro, ora como um peixe em fase de
adaptação na terra, no fundo pensa como se fosse um ser humano. “Há
muito humor, principalmente nos estereótipos de familiares, quando a
gente se reconhece nos diálogos. É interessante notar que alguns livros
do escritor são definitivos, projetos aos quais não retorna. Não é o
caso de ‘As Cosmicômicas’, que ele começa a publicar no jornal em 1964,
recolhendo doze contos em livro no ano seguinte e dando início a um
projeto que mantém até 1984.”
A leitura como ofício
Os
leitores fiéis de Italo Calvino, diz a pesquisadora, foram pegos de
surpresa e desaprovaram os novos contos – eram diferentes demais das
narrativas sobre a realidade social e as urgências políticas da Itália,
escritas por quem foi membro do Partido Comunista até 1957. “Ele
justificou que o discurso político deixou de interessá-lo, por ser uma
linguagem que se esvaziava cada vez mais. Queria pensar a narrativa e a
ficção com abertura para outros discursos. Em relação à ficção, o
romance clássico do século XIX também deixou de interessá-lo. Precisava
escrever outro tipo de história.”
Vanina
Sigrist observa que em seu trabalho como editor e crítico, Calvino
precisava ler muitos livros e de diferentes campos. Lia bastante sobre
ciências: Lévi-Strauss, Galileu e também pesquisas recentes em
cibernética, matemática, neurociência. “A partir dos anos 60, o
conhecimento estava se transformando diante das novas descobertas, como
por exemplo, o estruturalismo, o que levou Calvino a ler obras
científicas e de ficção observando determinismos e constâncias. Fica
fascinado ao enxugar um romance ou poema até chegar ao esqueleto que
molda o texto: um núcleo matemático que sustenta toda uma história
repleta de detalhes, personagens e reviravoltas.”
Por
conta disso, acrescenta a autora da tese, o escritor italiano se
aproxima do grupo OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle, algo como
Oficina de Literatura em Potencial), formado por matemáticos e físicos
interessados em literatura e que combinavam regras de escrita
mirabolantes, como de produzir textos sem determinadas vogais ou 99
tipos diferentes de um mesmo enredo. “Calvino vai morar por vários anos
em Paris e conhece o OuLiPo, frequentando seminários e aulas de
intelectuais como Barthes, Greimas e Wittgenstein, que exploravam a
questão do estruturalismo, pós-estruturalismo, semiologia e teorias
linguísticas. E traz essas tendências para dentro da sua ficção e também
das resenhas.”
Cibernética e fantasmas
Na
opinião de Vanina Sigrist, além do tom cômico que torna a leitura
prazerosa, as narrativas de Italo Calvino são acima de tudo
inteligentes, pensadas e articuladas. “Não há transbordamento de
impressões e sensações pessoais. Mesmo na ficção, quando ele mescla
personagens caricaturais, percebemos a articulação da literatura como
conhecimento, e não como entretenimento”, comenta a pesquisadora. “Daí, o
fato da sua literatura poder tratar de assuntos da ciência: são visões
de mundo, modelos de pensamento, raciocínios lógico, indutivo e dedutivo
– parâmetros possíveis de seguir para recortar e analisar o mundo como
num microscópio.”
É uma postura
científica que, na avaliação de Vanina, funciona bem para quem acredita
que a literatura deve trabalhar com hipóteses sobre o mundo. “Mas havia
relações diretas com a matemática e a ciência das máquinas, que Calvino
via funcionar dentro da própria linguagem: as letras do alfabeto se
recombinando para a criação de toda história. A ideia do atomismo da
escrita e do atomismo das coisas era bastante importante para ele – e
bem antiga. Poetas como Lucrécio e Ovídio e cientistas dos séculos 16 e
17 já exploravam a questão dos jogos, das combinações possíveis de se
fazer no xadrez e ir mobilizando as peças sobre os quadrados brancos e
pretos para produzir literatura.”
A
crença de Calvino de que certa criatividade e originalidade viriam num
segundo momento, depois deste trabalho árduo com as ideias e a
linguagem, levou a pesquisadora a incluir na tese o ensaio “Cibernética e
fantasmas”. “Neste ensaio, ele afirma que a literatura, em geral, é uma
máquina funcionando conforme estruturas e regras gramaticais que
condicionam a linguagem e, consequentemente, o pensamento. Mas que
fantasmas rondam a máquina, principalmente o inconsciente do leitor ou
do escritor, que em certo momento dispara um significado que foge das
intenções, produzindo o imprevisto. Cria-se aí um momento mítico da
literatura, que escapa dos determinismos que não são apenas da escrita,
mas também culturais, raciais, biológicos.”
Sucesso de crítica
e de público
Vanina
Sigrist informa que os livros de Italo Calvino foram sucessos de venda,
graças, dentre outros fatores, ao seu estilo um tanto cômico e
caricatural e ao apadrinhamento intelectual que recebeu desde o início
de sua trajetória. Depois de participar da resistência na Itália pelo
Partido Comunista, tinha pouco mais de 20 anos quando começou a
trabalhar na Einaudi, grande editora da época, envolvendo-se com
intelectuais de gerações anteriores como Cesare Pavese. “Ele participou
de inúmeros projetos não só como escritor, mas também como editor e
resenhando livros. Seus principais interlocutores vieram deste ambiente
de trabalho.”
De acordo com a
pesquisadora, “Marcovaldo”, que conta a história de um operário que
busca a natureza na selva de cimento e asfalto, é um de seus livros
adaptados para o público infanto-juvenil. “Calvino recebia muitas cartas
de alunos das escolas italianas e respondia a todas. Suas narrativas
tinham uma linguagem sempre objetiva e límpida, sem rebuscamentos ou
sentimentalismos. Ele apostava em uma linguagem bem acessível, o que
obviamente não significava superficialidade. Há muita densidade e
problemas humanos tratados em sua obra. Dizem que sua relação com a
ciência estava em se pautar por esta busca de clareza.”
A
maior parte dos ensaios de Italo Calvino foi recolhida pelos críticos
Mario Barenghi e Bruno Falcetto em dois grandes volumes, que somam quase
3.000 páginas em papel bíblia. “A coleção não está completa, já que o
escritor publicou muitos outros ensaios na imprensa. Quanto aos livros
de ficção, são mais de trinta, considerando que escrevia mais de um
título por ano e costumava trabalhar em quatro ou cinco projetos ao
mesmo tempo”, acrescenta Vanina Sigrist. “Para mim, o mais importante em
passar tantos anos pesquisando Calvino, é que através dele também
consegui ler muito e conhecer dezenas de escritores.”
Publicação
Tese: “Literatura e Ciência em Italo Calvino: o mito Qfwfq”
Autora: Vanina Carrara Sigrist
Orientação: Maria Betânia Amoroso
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
Autora: Vanina Carrara Sigrist
Orientação: Maria Betânia Amoroso
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)