segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Calvino no Jornal da Unicamp (e nas teses).

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 13 de agosto de 2012 a 19 de agosto de 2012 – ANO 2012 – Nº 535

A ciência de
Calvino


 
As convergências e divergências entre literatura e ciência na obra de Italo Calvino [1923-1985]. Ou como o intelectual italiano desfez a visão cristalizada de que a literatura seria um território exclusivo da expressão da subjetividade do autor em contato com o mundo, e de que a ciência se basearia unicamente em procedimentos de precisão e rigor, transmitidos por uma linguagem também exata e fechada. É este o mote descrito por Vanina Carrara Sigrist para a pesquisa de doutorado “Literatura e Ciência em Italo Calvino: o mito Qfwfq”, que ela desenvolveu sob a orientação da professora Maria Betânia Amoroso e vai defender em fins de agosto no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).
“Calvino é um escritor que atrai e agrada muito aos leitores e seus escritos percorrem décadas. No mestrado, tentei entender alguns dos sentidos que as fábulas adquiriram para Calvino, principalmente no início de sua trajetória, mas que o acompanhariam por muito tempo. Agora, procuro delinear a relação entre literatura e ciência dentro da sua obra, focando o período de 1965 até 1985, ano da sua morte – ele publicou até o último dia de vida”, afirma Vanina Sigrist. “Há quem diga que sua produção de ensaios e de textos teóricos talvez seja mais interessante e profícua do que a produção ficcional. Minha pesquisa envolve as duas.”
A pesquisadora procura entender como Calvino vê literatura e ciência nos ensaios e também através do livro de contos “As Cosmicômicas” (1965). “Neste livro, especificamente, o escritor aborda com clareza temas científicos como Big Bang, teorias matemáticas e cibernéticas, entropia, leis de termodinâmica e leis astronômicas como da Lua, que há milhões de anos estava bem próxima da Terra e agora se distancia cada vez mais”, ilustra a autora da tese. “E Calvino insiste que não se trata de ficção científica, de futurismo, mas de abordar o que aconteceu no passado. Ao mesmo tempo, o livro é bastante atual, com narrativas de casos do cotidiano, como brigas em família e ciúmes entre casais.”
Vanina Sigrist explica que o protagonista dos contos de “As Cosmicômicas” tem um nome bastante esquisito, Qfwfq, combinação de letras que remete a fórmula matemática. “Em cada história, Qfwfq possui um rival que vai enfrentar num jogo, uma possível namorada, uma avó, pais, um tio, convivendo todos num mesmo ambiente. Um dos contos mais saborosos é da sua versão para o Big Bang (ainda hoje uma hipótese científica e literária), em que o protagonista e outros personagens ocupam um único ponto. Até que a senhora Ph(i)NKo, figura sensual e ao mesmo tempo maternal, diz que ‘adoraria fazer um tagliatelle para vocês, se não estivéssemos tão espremidos’. Ao pronunciar esta frase, no impulso de cozinhar para todos, teria acontecido o Big Bang.”
Segundo Vanina, as narrativas de Calvino são antropomórficas, ou seja, ainda que Qfwfq apareça ora como um dinossauro, ora como um peixe em fase de adaptação na terra, no fundo pensa como se fosse um ser humano. “Há muito humor, principalmente nos estereótipos de familiares, quando a gente se reconhece nos diálogos. É interessante notar que alguns livros do escritor são definitivos, projetos aos quais não retorna. Não é o caso de ‘As Cosmicômicas’, que ele começa a publicar no jornal em 1964, recolhendo doze contos em livro no ano seguinte e dando início a um projeto que mantém até 1984.”
A leitura como ofício
Os leitores fiéis de Italo Calvino, diz a pesquisadora, foram pegos de surpresa e desaprovaram os novos contos – eram diferentes demais das narrativas sobre a realidade social e as urgências políticas da Itália, escritas por quem foi membro do Partido Comunista até 1957. “Ele justificou que o discurso político deixou de interessá-lo, por ser uma linguagem que se esvaziava cada vez mais. Queria pensar a narrativa e a ficção com abertura para outros discursos. Em relação à ficção, o romance clássico do século XIX também deixou de interessá-lo. Precisava escrever outro tipo de história.”
Vanina Sigrist observa que em seu trabalho como editor e crítico, Calvino precisava ler muitos livros e de diferentes campos. Lia bastante sobre ciências: Lévi-Strauss, Galileu e também pesquisas recentes em cibernética, matemática, neurociência. “A partir dos anos 60, o conhecimento estava se transformando diante das novas descobertas, como por exemplo, o estruturalismo, o que levou Calvino a ler obras científicas e de ficção observando determinismos e constâncias. Fica fascinado ao enxugar um romance ou poema até chegar ao esqueleto que molda o texto: um núcleo matemático que sustenta toda uma história repleta de detalhes, personagens e reviravoltas.”
Por conta disso, acrescenta a autora da tese, o escritor italiano se aproxima do grupo OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle, algo como Oficina de Literatura em Potencial), formado por matemáticos e físicos interessados em literatura e que combinavam regras de escrita mirabolantes, como de produzir textos sem determinadas vogais ou 99 tipos diferentes de um mesmo enredo. “Calvino vai morar por vários anos em Paris e conhece o OuLiPo, frequentando seminários e aulas de intelectuais como Barthes, Greimas e Wittgenstein, que exploravam a questão do estruturalismo, pós-estruturalismo, semiologia e teorias linguísticas. E traz essas tendências para dentro da sua ficção e também das resenhas.”
Cibernética e fantasmas
Na opinião de Vanina Sigrist, além do tom cômico que torna a leitura prazerosa, as narrativas de Italo Calvino são acima de tudo inteligentes, pensadas e articuladas. “Não há transbordamento de impressões e sensações pessoais. Mesmo na ficção, quando ele mescla personagens caricaturais, percebemos a articulação da literatura como conhecimento, e não como entretenimento”, comenta a pesquisadora. “Daí, o fato da sua literatura poder tratar de assuntos da ciência: são visões de mundo, modelos de pensamento, raciocínios lógico, indutivo e dedutivo – parâmetros possíveis de seguir para recortar e analisar o mundo como num microscópio.”
É uma postura científica que, na avaliação de Vanina, funciona bem para quem acredita que a literatura deve trabalhar com hipóteses sobre o mundo. “Mas havia relações diretas com a matemática e a ciência das máquinas, que Calvino via funcionar dentro da própria linguagem: as letras do alfabeto se recombinando para a criação de toda história. A ideia do atomismo da escrita e do atomismo das coisas era bastante importante para ele – e bem antiga. Poetas como Lucrécio e Ovídio e cientistas dos séculos 16 e 17 já exploravam a questão dos jogos, das combinações possíveis de se fazer no xadrez e ir mobilizando as peças sobre os quadrados brancos e pretos para produzir literatura.”
A crença de Calvino de que certa criatividade e originalidade viriam num segundo momento, depois deste trabalho árduo com as ideias e a linguagem, levou a pesquisadora a incluir na tese o ensaio “Cibernética e fantasmas”. “Neste ensaio, ele afirma que a literatura, em geral, é uma máquina funcionando conforme estruturas e regras gramaticais que condicionam a linguagem e, consequentemente, o pensamento. Mas que fantasmas rondam a máquina, principalmente o inconsciente do leitor ou do escritor, que em certo momento dispara um significado que foge das intenções, produzindo o imprevisto. Cria-se aí um momento mítico da literatura, que escapa dos determinismos que não são apenas da escrita, mas também culturais, raciais, biológicos.”


Sucesso de crítica
e de público

Vanina Sigrist informa que os livros de Italo Calvino foram sucessos de venda, graças, dentre outros fatores, ao seu estilo um tanto cômico e caricatural e ao apadrinhamento intelectual que recebeu desde o início de sua trajetória. Depois de participar da resistência na Itália pelo Partido Comunista, tinha pouco mais de 20 anos quando começou a trabalhar na Einaudi, grande editora da época, envolvendo-se com intelectuais de gerações anteriores como Cesare Pavese. “Ele participou de inúmeros projetos não só como escritor, mas também como editor e resenhando livros. Seus principais interlocutores vieram deste ambiente de trabalho.”
De acordo com a pesquisadora, “Marcovaldo”, que conta a história de um operário que busca a natureza na selva de cimento e asfalto, é um de seus livros adaptados para o público infanto-juvenil. “Calvino recebia muitas cartas de alunos das escolas italianas e respondia a todas. Suas narrativas tinham uma linguagem sempre objetiva e límpida, sem rebuscamentos ou sentimentalismos. Ele apostava em uma linguagem bem acessível, o que obviamente não significava superficialidade. Há muita densidade e problemas humanos tratados em sua obra. Dizem que sua relação com a ciência estava em se pautar por esta busca de clareza.”
A maior parte dos ensaios de Italo Calvino foi recolhida pelos críticos Mario Barenghi e Bruno Falcetto em dois grandes volumes, que somam quase 3.000 páginas em papel bíblia. “A coleção não está completa, já que o escritor publicou muitos outros ensaios na imprensa. Quanto aos livros de ficção, são mais de trinta, considerando que escrevia mais de um título por ano e costumava trabalhar em quatro ou cinco projetos ao mesmo tempo”, acrescenta Vanina Sigrist. “Para mim, o mais importante em passar tantos anos pesquisando Calvino, é que através dele também consegui ler muito e conhecer dezenas de escritores.”

Publicação
Tese: “Literatura e Ciência em Italo Calvino: o mito Qfwfq”
Autora: Vanina Carrara Sigrist
Orientação: Maria Betânia Amoroso
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)