Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 20 de agosto de 2012 a 26 de agosto de 2012 – ANO 2012 – Nº 536
Tese da área da educação revela práticas de
inspiração nazista no país antes da 2ª Guerra
Historiador recupera história de 50 meninos que foramtransferidos de educandário no Rio para fazenda em SP
Políticas
eugenistas de inspiração nazista foram perpetradas no Brasil no período
anterior à Segunda Guerra Mundial. A afirmação é do historiador Sidney
Aguilar Filho, que defendeu recentemente tese de doutorado na Faculdade
de Educação (FE) da Unicamp com o tema “Educação, Autoritarismo e
Eugenia: Exploração do trabalho e violência à infância desamparada no
Brasil (1930-45)”. No trabalho, orientado pela professora Ediógenes
Aragão Santos, o autor recupera a história de 50 meninos órfãos ou
abandonados – a maioria negra e com idades variando de nove a 11 anos –,
que foram transferidos de um educandário do Rio de Janeiro para uma
fazenda no interior de São Paulo, onde foram submetidos, sob os
auspícios da legislação da época, a trabalhos forçados, castigos físicos
e humilhações. O estudo está dando origem a um documentário, tem
proposta para ser transformado em livro e foi indicado pela FE para
representar a unidade no Prêmio Capes de Teses.
O
tema do estudo, conta Aguilar, caiu repentinamente no seu colo. Ele
dava uma aula sobre a Segunda Guerra para uma turma do ensino médio,
quando uma de suas alunas afirmou que a suástica, o símbolo utilizado
pelo nazismo, estava inscrito em tijolos de casarios demolidos na
fazenda do pai dela, situada na cidade de Campina do Monte Alegre (SP).
“Aquela informação ficou adormecida por anos. Cheguei a repassá-la para
alguns centros de pesquisa, mas ninguém se interessou. Quando finalmente
comecei a investigar o assunto, percebi que as dimensões eram
infinitamente maiores do que eu imaginava. O que mais me chamou a
atenção nem foi tanto a simbologia nazista encontrada na propriedade,
mas a coincidência dela com evidências da forte presença integralista no
mesmo local”, relata.
Esta
justaposição, diz Aguilar, já justificaria um estudo mais aprofundado.
Ocorre, porém, que ele deparou com um fato, nas palavras dele, ainda
mais chocante. “Descobri que aquela e outras fazendas da região haviam
sido utilizadas para abrigar 50 meninos órfãos ou abandonados, que foram
retirados, a partir de 1933, do Educandário Romão de Mattos Duarte,
mantido pela Irmandade de Misericórdia do Rio de Janeiro. No local, eles
eram submetidos a trabalhos forçados, a castigos físicos, a humilhações
e a toda sorte de violação de direitos. Todas essas propriedades
pertenciam à família Rocha Miranda, uma das mais ricas do Brasil na
época, que era dona de bancos, empresas de transportes e hotéis de
luxo”, afirma.
Filantropia
Um
aspecto que chamou a atenção do autor da tese foi o fato de a
transferência das crianças ter sido feita com a concordância da Igreja, o
patrocínio da elite empresarial e a anuência da Justiça, tudo sob a
justificativa de que a medida teria caráter educativo e filantrópico. Ao
consultar documentos da época do Educandário Romão de Mattos Duarte, da
Irmandade de Misericórdia, do Ministério da Agricultura e do Arquivo
Público do Estado de São Paulo, o pesquisador constatou que a remoção
dos meninos – 48 negros e pardos e somente dois brancos – foi autorizada
pelo titular do Juizado de Menores do Rio de Janeiro, José Cândido de
Albuquerque Mello Mattos, que concebeu o primeiro Código do Menor do
país.
Segundo o autor da tese, os
membros da família Rocha Miranda participavam da cúpula da Ação
Integralista Brasileira (AIB), grupo de ultradireita com inspirações
fascistas, cujo nome de maior destaque foi Plínio Salgado. “Um dos
membros dessa família, Renato Rocha Miranda, presidia uma grande empresa
de carvão de Santa Catarina. Através de fontes documentais, eu consegui
recuperar dados sobre negócios que ele manteve, tanto antes quanto
depois da Segunda Guerra, com a família Krupp, dona de uma poderosa
siderúrgica alemã produtora de armas e equipamentos bélicos. Nunca é
demais lembrar que um dos membros do clã alemão foi Alfried Krupp,
ministro da Economia de Guerra de Adolf Hitler, condenado pelo Tribunal
de Nuremberg pelo uso de trabalho escravo de judeu”, assinala Aguilar.
Após o conflito mundial, continua o historiador, Alfried Krupp comprou uma das fazendas de Renato Rocha Miranda, para onde enviou o seu único herdeiro, Arndt von Bohlen und Halbach. As duas famílias tinham interesse em implantar uma siderúrgica no Brasil. “Ou seja, no meio dessas relações empresariais internacionais envolvendo adeptos do integralismo e do nazismo, havia um grupo de 50 crianças submetidas a toda sorte de violência. O caminho que adotei para tratar todo esse episódio foi estudar a história da educação desses meninos. O que eu acabei encontrando, depois de analisar inúmeros documentos, foi uma legislação abertamente eugenista nessa área”, sustenta o pesquisador.
Ao
se debruçar sobre documentos produzidos pela Assembleia Constituinte
promulgada em 1934, por exemplo, o autor da tese diz ter identificado
uma bancada formada por mais de 20 constituintes que defendia práticas
eugenistas e afins em propostas voltadas às políticas educacionais,
migratórias e sanitárias, entre outras. “Na época, não havia o conceito
do politicamente correto, tão presente nos dias atuais. Muitos
legisladores não usavam meias-palavras para fazer manifestações
homofóbicas, machistas e segregacionistas. Tanto é assim que o artigo
138 daquela Constituição estabelece ser função do Estado nacional
incentivar a educação eugênica. Isso coincide com o momento em que os
meninos eram retirados do Rio e transferidos para a fazenda em Campina
do Monte Alegre”, reforça.
Aguilar
revela que teve muita dificuldade em trabalhar com um tema tão espinhoso
e doloroso. “Confesso que fiquei exaurido por incontáveis vezes ao ler
os textos e as manifestações dos ultradireitistas, dos racistas.
Trabalhei com a dúvida até o fim da pesquisa. Vivia me questionando se
tudo aquilo realmente acontecera. Mas, o fato é que todas as evidências
funcionaram como fios que se entrelaçavam num tecido inquestionável. De
fato, as práticas autoritárias e eugenistas foram transformadas em
políticas de Estado no Brasil”, assevera.
Balas amargas
Além
de basear a sua investigação em farta documentação, Aguilar também
entrevistou muitas pessoas que tiveram envolvimento direto ou indireto
com o episódio dos meninos, inclusive três sobreviventes, que hoje estão
com idades beirando os 90 anos. O depoimento mais marcante foi de
Aloísio Silva, que integrou a primeira turma a ser transferida do Rio
para o interior de São Paulo – as crianças vieram em três levas. Ainda
morador de Campina do Monte Alegre, onde constituiu família, ele
inicialmente se recusou a falar sobre a experiência. “Primeiro, pensei
que fosse medo. Depois, entendi que a recusa tinha a ver com trauma.
Falar sobre o que sofreu naquela época seria muito dolorido para ele”,
explica o historiador.
Estrategicamente,
Aguilar resolveu se aproximar dos filhos dos sobreviventes, como forma
de mostrar a seriedade da pesquisa. “Essa decisão de mostrou acertada.
Aos poucos, e através deles, fui me aproximando dos personagens
principais da história. Um aspecto que percebi foi que, assim que eu
apresentava aos sobreviventes os documentos que havia colhido, eles iam
se mostrando mais receptivos. O primeiro a falar foi o senhor Aloísio.
Ou seja, a memória documental incentivou a memória oral. Assim que ele
começou a contar tudo o que viu e viveu, outras pessoas, inclusive
moradores da cidade, também concordaram em contribuir com depoimentos”.
Segundo
o autor da tese, as narrativas feitas pelo senhor Aloísio confirmaram
que os meninos foram submetidos a trabalhos exaustivos, sem qualquer
remuneração. Aqueles que não cumpriam as tarefas ou desobedeciam às
ordens dos “cuidadores”, que o sobrevivente classificou como “feitores”,
eram espancados e, não raro, impedidos de comer. “Um relato do senhor
Aloísio que me marcou bastante foi sobre a forma como as 50 crianças
foram escolhidas para serem retiradas do educandário carioca. Segundo
ele, um homem, posicionado numa espécie de passadiço, jogava balas
coloridas ao chão. Os meninos que pegavam primeiro as guloseimas eram
selecionados, por serem considerados mais ágeis e espertos, e apartados
dos demais”.
Até onde o historiador
conseguiu apurar, poucos daqueles órfãos e desvalidos ainda estão vivos.
Alguns morreram ainda no cárcere, outros conseguiram fugir e os demais
foram “libertados” anos depois, já na fase adulta. Desses, pouco se
sabe. Ao falar sobre o que espera em termos de repercussão da sua tese,
Aguilar afirma desejar que ela provoque incômodo a todos aqueles que
tiveram acesso ao texto. “A tese também é um convite aos atuais
educadores, para que reflitam sobre a sobrevivência ou não desses
princípios autoritários e racistas no pensamento e na prática
cotidianos. Em termos de discurso, me parece que isso foi, em boa
medida, corrigido. No que toca à prática, porém, não tenho tanta
certeza”.
Ainda conforme Aguilar, o
seu trabalho de doutorado também está servindo de base para uma ação
judicial reparadora que o senhor Aloísio está movendo contra o Estado
brasileiro. “Vamos esperar o resultado do julgamento. Uma consequência
positiva, porém, a pesquisa já proporcionou a ele. Atualmente, o senhor
Aloísio circula por Campina do Monte Alegre com a cabeça muito mais
erguida”, garante o historiador, acrescentando que o apoio que recebeu
por parte da sua orientadora, da FE, da Capes e da Unicamp foi
fundamental para que conseguisse concluir seu estudo.
Tese: “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945)”
Fonte: Sidney Aguilar Filho
Orientadora: Ediógenes Aragão Santos
Unidade: Faculdade de Educação (FE)