Fausto Castilho
traduz ‘Ser e Tempo’,
obra maior de Heidegger
Professor do IFCH, que foi aluno do filósofoalemão, começou a verter livro para o português
em 1949, quando estudava na Sorbonne
A
Editora da Unicamp está lançando a primeira edição bilíngue
(alemão-português) de Sein und Zeit (Ser e Tempo), considerada a obra
mais importante de Martin Heidegger, para muitos o principal filósofo do
século 20. O responsável pela tradução é Fausto Castilho, professor
emérito da Unicamp, que frequentou o curso de Heidegger na Universidade
de Friburgo. Na opinião do professor, Ser e Tempo é um livro singular
“porque pressupõe a leitura por Heidegger de toda a história da
filosofia”. O lançamento ocorre em parceria com a Vozes, editora que
detém os direitos de publicação de títulos do filósofo alemão no Brasil.
Em
sua graduação em filosofia na Universidade de Sorbonne, Fausto Castilho
foi aluno de Merleau-Ponty, Jean Piaget e Gaston Bachelard.
Paralelamente, como convém a um futuro filósofo, cuidou de aprender o
alemão com um grupo de colegas, quando já começou a traduzir a
obra-prima de Heidegger, ao mesmo tempo em que a estudava. Foi fazendo a
tradução por partes, conforme as necessidades de estudante, professor e
palestrante, até se dar conta, no início dos anos 1980, de que havia
traduzido praticamente todo o livro.
Fausto Castilho, na entrevista que segue, conta como nasceu seu interesse por Heidegger, dimensiona a importância de Ser e Tempo no campo da filosofia e apresenta a sua explicação para a adesão do filósofo alemão ao nazismo, grande mácula em sua trajetória. Perto de completar 83 anos de idade, o professor emérito retoma neste semestre os estudos sobre a interpretação do Brasil – o outro tema de seu interesse –, prevendo inclusive a realização de seminários multidisciplinares a respeito.
Fausto Castilho, na entrevista que segue, conta como nasceu seu interesse por Heidegger, dimensiona a importância de Ser e Tempo no campo da filosofia e apresenta a sua explicação para a adesão do filósofo alemão ao nazismo, grande mácula em sua trajetória. Perto de completar 83 anos de idade, o professor emérito retoma neste semestre os estudos sobre a interpretação do Brasil – o outro tema de seu interesse –, prevendo inclusive a realização de seminários multidisciplinares a respeito.
Jornal da Unicamp – O que representa o livro Ser e Tempo para o campo da filosofia?
Fausto Castilho
– É um livro bastante singular, excepcional entre os livros de
filosofia do século 20. Em primeiro lugar, porque a obra pressupõe a
leitura por Heidegger de toda a história da filosofia. Em 1951,
filólogos importantes na área da filosofia (alemães, suíços e de outras
nacionalidades) promoveram um seminário em Zurique e convidaram
Heidegger para presidi-lo. Um dos filólogos presentes, o suíço Emil
Staiger, grande nome da crítica literária, perguntou a Heidegger o
seguinte: “Por que o senhor, para enunciar o seu pensamento, precisa se
apoiar no comentário dos filósofos?”. Ele respondeu: “Nunca enunciei
nada que me coubesse. Sempre disse o que os filósofos e alguns grandes
poetas disseram”.
Heidegger comenta
os autores contemporâneos, como por exemplo, [Edmund] Husserl, de quem
foi aluno e discípulo; era um grande intérprete de Kant; um dos maiores
adversários de Descartes; e um grande crítico de Hegel. Conhecia não só
toda a filosofia moderna, mas também a filosofia medieval, o que é
igualmente excepcional: em geral, quem gosta dos modernos, não gosta dos
medievais. E, mais do que isso, passou os últimos 30 ou 40 anos da vida
comentando os pré-socráticos: Parmênides, Anaximandro e assim vai...
Então,
qual é a excepcionalidade deste livro? É que se trata de um livro de
história da filosofia, sem dizer que o é. Heidegger não faz história da
filosofia, vai direto aos filósofos como se fossem contemporâneos seus, e
os examina fora de qualquer esquema de desenvolvimento histórico. Isso é
excepcional porque pressupõe um conhecimento direto dos filósofos,
principalmente os gregos, o que é raro. A filosofia da moda americana é a
filosofia analítica, que simplesmente ignora a história da filosofia. E
por que um alemão, um francês ou um escandinavo têm essa possibilidade?
Por causa do liceu. A Finlândia, país cuja língua não é sequer
europeia, exige cinco anos de latim no liceu. Por aí, vemos que a
possibilidade de ter acesso aos gregos depende do liceu. É, portanto, um
exemplo flagrante da formação que um liceu alemão (que lá se chama
gymnasium) produz.
JU – O
senhor manifesta inconformismo com a adesão de Heidegger ao nazismo.
Que explicação encontra para que ele tenha tomado tal posição?
Fausto Castilho
– Esta adesão ao nazismo é realmente uma coisa insuportável na
biografia dele. Eu tenho lá as minhas ideias a respeito disso. Eu o
conheci pessoalmente por frequentar suas aulas, nunca tive um contato
direto. Mas era um tipo rústico de camponês (aliás, um montanhês,
nascido nas montanhas do sul do país), o que você sentia logo na
primeira vez que o encontrasse. Ao contrário, por exemplo, de Sartre,
que era uma pessoa delicadíssima. Essa origem marca Heidegger, que
depois de concluir o curso universitário não tinha nenhuma perspectiva
de ascensão social. Quando aparece o movimento nazista, seus
antecedentes de família – o pai sacristão de uma igrejinha na montanha e
de um catolicismo atrasadíssimo, reacionário – já predispunham o rapaz
para atitudes políticas que fugiam das soluções citadinas, urbanas.
Quando Hitler toma o poder, Heidegger recebe o apoio de praticamente
todo o corpo docente para que assumisse a reitoria da Universidade de
Friburgo, inclusive – e talvez principalmente – dos judeus, amigos dele.
Em minha opinião, a opção [pelo nazismo] não vem apenas da sua origem
montanhesa, que é uma razão fortíssima, mas também de arrivismo, isto é,
vontade de subir na vida. Isso contou muito.
Minha
compreensão deste episódio, em face da imensa obra escrita e publicada,
no fundo é de apenas um episódio em toda a sua vida. Como dizia Hannah
Arendt, que era judia e foi aluna dele, o curso que nós assistimos de
Heidegger sobre O Sofista, de Platão, nunca mais vai haver igual numa
universidade alemã. Porque a voz de Heidegger, isto é, o modo como ele
interpretava o texto de Platão, dizia Hannah Arendt, não era
contemporânea, vinha dos primórdios, como se ele tivesse a capacidade de
se transportar até a Grécia. Isso para quem estuda filosofia é uma
coisa importantíssima. Então, quando você compara os textos de filosofia
propriamente ditos, com esta atitude que durou alguns meses em que
Heidegger permaneceu na reitoria, tem de optar: ou considera o filósofo,
ou considera aquele político ocasional – e não pode confundir as
coisas, de jeito nenhum.
JU – Como surgiu o projeto de traduzir Ser e Tempo?
Fausto Castilho
– Surgiu quando fui para Paris em 1949. A primeira vez que ouvi falar
em Heidegger foi em 1946 (eu tinha, portanto, 17 anos), na revista do
Sartre, Les Temps Modernes, que começou a circular em São Paulo;
chegavam alguns exemplares na Livraria Francesa. Eu estudei no Liceu
Franco-Brasileiro, que se chama Liceu Pasteur – o Getúlio [Vargas] tinha
eliminado as denominações estrangeiras – e lia o francês correntemente.
Nessa revista do Sartre apareceu um debate entre dois filósofos,
[Karl] Löwith, que é um alemão, e [Alphonse] De Waelhens, um belga: os
dois discutiam justamente a opção de Heidegger pela reitoria nazista.
Em
1949, ingressei na graduação em filosofia da Sorbonne. Quando cheguei a
Paris, tinha uma carta do Antonio Candido pedindo para o Paulo Emílio
Salles Gomes me dar cobertura. Fui morar num pequeno apartamento que
Paulo Emílio tinha ocupado antes da Guerra – ele era muito amigo da
proprietária, madame Jeanne – e, ao se despedir, me disse: “Agora, você é
prisioneiro aqui da Praça da Sorbonne”. Realmente, fiquei lá por quatro
ou cinco anos. E digo sempre que tive muita sorte de encontrar aquele
apartamento: acordava ouvindo o tocar dos sinos da igreja da Sorbonne e
me vestia rapidamente para ir à aula – foi um ponto de disciplina
formidável.
Morei diante da Livraria
Vrin. Pedi ao velho Joseph Vrin que conseguisse um exemplar do texto de
Ser e Tempo em alemão, que ele conseguiu com um confrade livreiro. É a
famosa edição nazista, toda censurada [sem a dedicatória de Heidegger ao
mestre Edmund Husserl, judeu] e que guardo até hoje. Ao mesmo tempo da
graduação, passei a estudar alemão com um grupo de colegas e também o
Ser e Tempo. Um dia, acho que em 1951, Merleau-Ponty, meu professor,
perguntou se eu sabia que Heidegger ia voltar a dar aulas – ele estava
afastado por causa da “desnazificação” e, só quando foi “desnazificado”,
os militares franceses que ocupavam a região autorizaram a sua volta.
Passei a ir até Friburgo uma vez por semana.
Tinha
muito interesse por esta obra de Heidegger e comecei a sua tradução
ainda como estudante em Paris, ao mesmo tempo em que estudava o alemão.
Nunca fiz uma tradução contínua, fui fazendo por partes, para
utilizá-las como professor e em seminários. Isso desde 49 até o início
dos 80, quando me dei conta de que já havia traduzido praticamente todo o
livro. Foi então que procurei a Editora da Unicamp sugerindo a
publicação, com a condição de que ela fosse bilíngue.
JU – Quais foram as dificuldades que encontrou na tradução?
Fausto
Castilho – As dificuldades foram não só de conteúdo, isto é, de
filosofia propriamente dita, mas também de linguagem. A solução que
encontrei para a maior parte dessas dificuldades foi lançar mão dos três
índices que menciono no livro e que tratam da linguagem de Ser e Tempo.
[São os índices de Hildegard Feick, Index zu Heideggers “Sein und
Zeit”, 1961; de Theodore Kiesel, “Lexicon”, in Being and Time, traduzido
por J. Stambaugh, 1972; e de Rainer A. Abast/Heinrich P. Delfosse,
Handbuch zum Textstudium von Martin Heideggers “Sein un Zeit”, vol. 1,
1980].
Evidentemente que as duas
traduções para o inglês, as duas para o francês e a tradução para o
italiano me ajudaram muito, porque são línguas afins. No fundo, a
solução final sempre esteve na possibilidade de criar neologismos, não
só de termos, mas de locuções. A coisa é complicada. Do ponto de vista
do conteúdo, procurei cotejar os conceitos de Heidegger, alguns bastante
inusitados, com os conceitos dos outros filósofos, principalmente dos
modernos a partir de Descartes, como Kant e Hegel.
JU – Houve dificuldade, também, na obtenção da autorização do Comitê Heidegger para a publicação da obra em português.
Fausto Castilho
– As dificuldades não foram minhas, mas do doutor Maiorino [José
Emílio, assistente de direção da Editora da Unicamp], que fez toda a
negociação. Até alguns anos atrás, havia uma secretária do Comitê que
tinha mais simpatia pela nossa proposta, mas depois a editora das obras
de Heidegger foi vendida para uma editora americana, o que tornou a
negociação ainda mais demorada. E ainda surgiu a Editora Vozes
[detentora dos direitos de publicação de Heidegger no Brasil], que
começou a influir em nossas decisões – esta é a primeira edição bilíngue
de Ser e Tempo, mas existe outra tradução para o português, feita por
um professor carioca. Finalmente, chegou-se ao entendimento de uma
edição comum.
JU – Sem falsa modéstia, qual é a contribuição que o seu livro traz?
Fausto Castilho
– Sendo uma edição bilíngue, obviamente vai facilitar muito o
entendimento de uma obra de leitura dificílima. Do ponto de vista
didático, isso é importante, porque entrar no texto de Heidegger sem
nenhuma ajuda é uma árdua tarefa. Eu costumo fazer seminários, mas eles
já pressupõem um conhecimento de filosofia.
Sobre‘Ser e Tempo’
Este
volume oferece, em edição bilíngue (alemão-português), a Primeira Parte
incompleta de um tratado concebido para abranger duas grandes partes.
Esse texto, denominado Ser e tempo, é amplamente considerado a
contribuição maior daquele que muitos têm como o principal filósofo do
século XX.
Fausto Castilho — que
frequentou o curso de Heidegger na Universidade de Friburgo,
transformado no livro Que significa “pensar”?, e o seminário de Eugen
Fink sobre a Monadologia de Leibniz — é o responsável por esta tradução
que constitui um marco na história da recepção desta obra no Brasil.
Serviço
Autor: Martin Heidegger
Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas: Fausto Castilho
Ficha técnica: 1a edição, 2012
Páginas: 1200 páginas
Formato: 16 x 23 cm
Editora da Unicamp
Coedição: Editora Vozes
Área de interesse: Filosofia
Preço: R$ 160,00 (de 5 a 28 de setembro, por R$ 96,00 nas livrarias da Editora da Unicamp, na BC e no IEL
Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas: Fausto Castilho
Ficha técnica: 1a edição, 2012
Páginas: 1200 páginas
Formato: 16 x 23 cm
Editora da Unicamp
Coedição: Editora Vozes
Área de interesse: Filosofia
Preço: R$ 160,00 (de 5 a 28 de setembro, por R$ 96,00 nas livrarias da Editora da Unicamp, na BC e no IEL