terça-feira, 28 de agosto de 2012

Jornal da Unicamp

Campinas, 27 de agosto de 2012 a 02 de setembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 537

Fausto Castilho
traduz ‘Ser e Tempo’,
obra maior de Heidegger

Professor do IFCH, que foi aluno do filósofo
alemão, começou a verter livro para o português
em 1949, quando estudava na Sorbonne


A Editora da Unicamp está lançando a primeira edição bilíngue (alemão-português) de Sein und Zeit (Ser e Tempo), considerada a obra mais importante de Martin Heidegger, para muitos o principal filósofo do século 20. O responsável pela tradução é Fausto Castilho, professor emérito da Unicamp, que frequentou o curso de Heidegger na Universidade de Friburgo. Na opinião do professor, Ser e Tempo é um livro singular “porque pressupõe a leitura por Heidegger de toda a história da filosofia”. O lançamento ocorre em parceria com a Vozes, editora que detém os direitos de publicação de títulos do filósofo alemão no Brasil.
Em sua graduação em filosofia na Universidade de Sorbonne, Fausto Castilho foi aluno de Merleau-Ponty, Jean Piaget e Gaston Bachelard. Paralelamente, como convém a um futuro filósofo, cuidou de aprender o alemão com um grupo de colegas, quando já começou a traduzir a obra-prima de Heidegger, ao mesmo tempo em que a estudava. Foi fazendo a tradução por partes, conforme as necessidades de estudante, professor e palestrante, até se dar conta, no início dos anos 1980, de que havia traduzido praticamente todo o livro.
Fausto Castilho, na entrevista que segue, conta como nasceu seu interesse por Heidegger, dimensiona a importância de Ser e Tempo no campo da filosofia e apresenta a sua explicação para a adesão do filósofo alemão ao nazismo, grande mácula em sua trajetória. Perto de completar 83 anos de idade, o professor emérito retoma neste semestre os estudos sobre a interpretação do Brasil – o outro tema de seu interesse –, prevendo inclusive a realização de seminários multidisciplinares a respeito.

Jornal da Unicamp – O que representa o livro Ser e Tempo para o campo da filosofia?
Fausto Castilho – É um livro bastante singular, excepcional entre os livros de filosofia do século 20. Em primeiro lugar, porque a obra pressupõe a leitura por Heidegger de toda a história da filosofia. Em 1951, filólogos importantes na área da filosofia (alemães, suíços e de outras nacionalidades) promoveram um seminário em Zurique e convidaram Heidegger para presidi-lo. Um dos filólogos presentes, o suíço Emil Staiger, grande nome da crítica literária, perguntou a Heidegger o seguinte: “Por que o senhor, para enunciar o seu pensamento, precisa se apoiar no comentário dos filósofos?”. Ele respondeu: “Nunca enunciei nada que me coubesse. Sempre disse o que os filósofos e alguns grandes poetas disseram”.
Heidegger comenta os autores contemporâneos, como por exemplo, [Edmund] Husserl, de quem foi aluno e discípulo; era um grande intérprete de Kant; um dos maiores adversários de Descartes; e um grande crítico de Hegel. Conhecia não só toda a filosofia moderna, mas também a filosofia medieval, o que é igualmente excepcional: em geral, quem gosta dos modernos, não gosta dos medievais. E, mais do que isso, passou os últimos 30 ou 40 anos da vida comentando os pré-socráticos: Parmênides, Anaximandro e assim vai...
Então, qual é a excepcionalidade deste livro? É que se trata de um livro de história da filosofia, sem dizer que o é. Heidegger não faz história da filosofia, vai direto aos filósofos como se fossem contemporâneos seus, e os examina fora de qualquer esquema de desenvolvimento histórico. Isso é excepcional porque pressupõe um conhecimento direto dos filósofos, principalmente os gregos, o que é raro. A filosofia da moda americana é a filosofia analítica, que simplesmente ignora a história da filosofia. E por que um alemão, um francês ou um escandinavo têm essa possibilidade? Por causa do liceu. A Finlândia, país cuja língua não é sequer europeia, exige cinco anos de latim no liceu. Por aí, vemos que a possibilidade de ter acesso aos gregos depende do liceu. É, portanto, um exemplo flagrante da formação que um liceu alemão (que lá se chama gymnasium) produz.
JU – O senhor manifesta inconformismo com a adesão de Heidegger ao nazismo. Que explicação encontra para que ele tenha tomado tal posição?
Fausto Castilho – Esta adesão ao nazismo é realmente uma coisa insuportável na biografia dele. Eu tenho lá as minhas ideias a respeito disso. Eu o conheci pessoalmente por frequentar suas aulas, nunca tive um contato direto. Mas era um tipo rústico de camponês (aliás, um montanhês, nascido nas montanhas do sul do país), o que você sentia logo na primeira vez que o encontrasse. Ao contrário, por exemplo, de Sartre, que era uma pessoa delicadíssima. Essa origem marca Heidegger, que depois de concluir o curso universitário não tinha nenhuma perspectiva de ascensão social. Quando aparece o movimento nazista, seus antecedentes de família – o pai sacristão de uma igrejinha na montanha e de um catolicismo atrasadíssimo, reacionário – já predispunham o rapaz para atitudes políticas que fugiam das soluções citadinas, urbanas. Quando Hitler toma o poder, Heidegger recebe o apoio de praticamente todo o corpo docente para que assumisse a reitoria da Universidade de Friburgo, inclusive – e talvez principalmente – dos judeus, amigos dele. Em minha opinião, a opção [pelo nazismo] não vem apenas da sua origem montanhesa, que é uma razão fortíssima, mas também de arrivismo, isto é, vontade de subir na vida.  Isso contou muito.
Minha compreensão deste episódio, em face da imensa obra escrita e publicada, no fundo é de apenas um episódio em toda a sua vida. Como dizia Hannah Arendt, que era judia e foi aluna dele, o curso que nós assistimos de Heidegger sobre O Sofista, de Platão, nunca mais vai haver igual numa universidade alemã. Porque a voz de Heidegger, isto é, o modo como ele interpretava o texto de Platão, dizia Hannah Arendt, não era contemporânea, vinha dos primórdios, como se ele tivesse a capacidade de se transportar até a Grécia. Isso para quem estuda filosofia é uma coisa importantíssima. Então, quando você compara os textos de filosofia propriamente ditos, com esta atitude que durou alguns meses em que Heidegger permaneceu na reitoria, tem de optar: ou considera o filósofo, ou considera aquele político ocasional – e não pode confundir as coisas, de jeito nenhum.
JU – Como surgiu o projeto de traduzir Ser e Tempo?
Fausto Castilho – Surgiu quando fui para Paris em 1949. A primeira vez que ouvi falar em Heidegger foi em 1946 (eu tinha, portanto, 17 anos), na revista do Sartre, Les Temps Modernes, que começou a circular em São Paulo; chegavam alguns exemplares na Livraria Francesa. Eu estudei no Liceu Franco-Brasileiro, que se chama Liceu Pasteur – o Getúlio [Vargas] tinha eliminado as denominações estrangeiras – e lia o francês correntemente. Nessa revista do Sartre apareceu um debate entre dois filósofos,  [Karl] Löwith, que é um alemão, e [Alphonse] De Waelhens, um belga: os dois discutiam justamente a opção de Heidegger pela reitoria nazista.
Em 1949, ingressei na graduação em filosofia da Sorbonne. Quando cheguei a Paris, tinha uma carta do Antonio Candido pedindo para o Paulo Emílio Salles Gomes me dar cobertura. Fui morar num pequeno apartamento que Paulo Emílio tinha ocupado antes da Guerra – ele era muito amigo da proprietária, madame Jeanne – e, ao se despedir, me disse: “Agora, você é prisioneiro aqui da Praça da Sorbonne”. Realmente, fiquei lá por quatro ou cinco anos. E digo sempre que tive muita sorte de encontrar aquele apartamento: acordava ouvindo o tocar dos sinos da igreja da Sorbonne e me vestia rapidamente para ir à aula – foi um ponto de disciplina formidável.
Morei diante da Livraria Vrin. Pedi ao velho Joseph Vrin que conseguisse um exemplar do texto de Ser e Tempo em alemão, que ele conseguiu com um confrade livreiro. É a famosa edição nazista, toda censurada [sem a dedicatória de Heidegger ao mestre Edmund Husserl, judeu] e que guardo até hoje. Ao mesmo tempo da graduação, passei a estudar alemão com um grupo de colegas e também o Ser e Tempo. Um dia, acho que em 1951, Merleau-Ponty, meu professor, perguntou se eu sabia que Heidegger ia voltar a dar aulas – ele estava afastado por causa da “desnazificação” e, só quando foi “desnazificado”, os militares franceses que ocupavam a região autorizaram a sua volta. Passei a ir até Friburgo uma vez por semana.
Tinha muito interesse por esta obra de Heidegger e comecei a sua tradução ainda como estudante em Paris, ao mesmo tempo em que estudava o alemão. Nunca fiz uma tradução contínua, fui fazendo por partes, para utilizá-las como professor e em seminários. Isso desde 49 até o início dos 80, quando me dei conta de que já havia traduzido praticamente todo o livro. Foi então que procurei a Editora da Unicamp sugerindo a publicação, com a condição de que ela fosse bilíngue.
JU – Quais foram as dificuldades que encontrou na tradução?
Fausto Castilho – As dificuldades foram não só de conteúdo, isto é, de filosofia propriamente dita, mas também de linguagem. A solução que encontrei para a maior parte dessas dificuldades foi lançar mão dos três índices que menciono no livro e que tratam da linguagem de Ser e Tempo. [São os índices de Hildegard Feick, Index zu Heideggers “Sein und Zeit”, 1961; de Theodore Kiesel, “Lexicon”, in Being and Time, traduzido por J. Stambaugh, 1972; e de Rainer A. Abast/Heinrich P. Delfosse, Handbuch zum Textstudium von Martin Heideggers “Sein un Zeit”, vol. 1, 1980].
Evidentemente que as duas traduções para o inglês, as duas para o francês e a tradução para o italiano me ajudaram muito, porque são línguas afins. No fundo, a solução final sempre esteve na possibilidade de criar neologismos, não só de termos, mas de locuções. A coisa é complicada. Do ponto de vista do conteúdo, procurei cotejar os conceitos de Heidegger, alguns bastante inusitados, com os conceitos dos outros filósofos, principalmente dos modernos a partir de Descartes, como Kant e Hegel. 
JU – Houve dificuldade, também, na obtenção da autorização do Comitê Heidegger para a publicação da obra em português.
Fausto Castilho – As dificuldades não foram minhas, mas do doutor Maiorino [José Emílio, assistente de direção da Editora da Unicamp], que fez toda a negociação. Até alguns anos atrás, havia uma secretária do Comitê que tinha mais simpatia pela nossa proposta, mas depois a editora das obras de Heidegger foi vendida para uma editora americana, o que tornou a negociação ainda mais demorada. E ainda surgiu a Editora Vozes [detentora dos direitos de publicação de Heidegger no Brasil], que começou a influir em nossas decisões – esta é a primeira edição bilíngue de Ser e Tempo, mas existe outra tradução para o português, feita por um professor carioca. Finalmente, chegou-se ao entendimento de uma edição comum.
JU – Sem falsa modéstia, qual é a contribuição que o seu livro traz?
Fausto Castilho – Sendo uma edição bilíngue, obviamente vai facilitar muito o entendimento de uma obra de leitura dificílima. Do ponto de vista didático, isso é importante, porque entrar no texto de Heidegger sem nenhuma ajuda é uma árdua tarefa. Eu costumo fazer seminários, mas eles já pressupõem um conhecimento de filosofia.

Sobre‘Ser e Tempo’

Este volume oferece, em edição bilíngue (alemão-português), a Primeira Parte incompleta de um tratado concebido para abranger duas grandes partes. Esse texto, denominado Ser e tempo, é amplamente considerado a contribuição maior daquele que muitos têm como o principal filósofo do século XX.
Fausto Castilho — que frequentou o curso de Heidegger na Universidade de Friburgo, transformado no livro Que significa “pensar”?, e o seminário de Eugen Fink sobre a Monadologia de Leibniz — é o responsável por esta tradução que constitui um marco na história da recepção desta obra no Brasil.
Serviço
Autor: Martin Heidegger
Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas: Fausto Castilho
Ficha técnica: 1a edição, 2012
Páginas: 1200 páginas
Formato: 16 x 23 cm
Editora da Unicamp
Coedição: Editora Vozes
Área de interesse: Filosofia
Preço: R$ 160,00 (de 5 a 28 de setembro, por R$ 96,00 nas livrarias da Editora da Unicamp, na BC e no IEL

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