segunda-feira, 13 de agosto de 2012

IHU/Unisinos 13/agosto/2012


segunda-feira, 13 de agosto de 2012

IHU-Unisinos. Sobre as alianças, entrevistas de vários pesquisadores.

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Política de alianças: entre a necessidade e os limites

A campanha eleitoral deste ano está nas ruas. Perplexa, a opinião pública assistiu às alianças partidárias feitas para as próximas eleições municipais. A revista IHU On-Line desta semana discute a necessidade e os limites, também necessários, das alianças políticas.

 

“Somos absolutistas anacrônicos. Vivemos sempre sob o regime do favor, dos privilégios, da não república”

Para Roberto Romano, alianças importam, em qualquer hipótese, na luta pelo poder. Mas se elas impedem as mudanças propostas no programa partidário, “temos o realismo de fancaria que sequer merece o epíteto de maquiavelismo”

Por: Graziela Wolfart

Segundo a reflexão do professor da Unicamp, Roberto Romano, “nossos partidos políticos seguem o interesse maior dos líderes nacionais e regionais. Eles julgam não ter explicações a dar para a militância de base. Numa reforma política verdadeira, algumas determinações seriam estratégicas, como a proibição de líderes ficarem nas direções por mais de quatro anos, a exigência de consulta primária aos eleitores dos partidos quando das eleições (escolha dos candidatos, alianças, etc.). E nada falamos, por enquanto, das máquinas eleitoreiras, os partidos ditos ‘nanicos’. Eles são propriedade privada de um ou dois políticos e se vendem (na verdade, vendem seu minuto de propaganda gratuita) em troca de cargos, favores, etc.”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Roberto Romano acrescenta que a “dita burguesia progressista sempre decepcionou as esperanças dos seus aliados: ela sempre optou pelo lucro, pelos golpes de Estado, pela ruptura com a tênue democracia. A lição de 1964 cabe no quadro. No interior do partido ‘revolucionário’, pobre de quem se levantasse contra a política ‘realista’ de alianças!”. Para ele, as “alianças ‘pela governabilidade’ assumidas pelo PT (Sarney, Lobão, ACM e agora Maluf) adiaram, sem prazo de recomeço, a luta do petismo pela justiça no Estado e na vida social”. E sobre a foto de Lula com Maluf, um símbolo recente da política de alianças em nosso país, Roberto Romano dispara: “Temos nos dois elementos o retrato impiedoso da prática realista”. E conclui: “o resultado está na foto: venceram os contrários ao ‘principismo’, ou seja, os alérgicos aos valores éticos, programáticos, socialistas, etc.”.

Roberto Romano cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, na França, e é professor de filosofia na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Escreveu, entre outros, os livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (2ª ed. São Paulo: Ed. Unesp, 1997) e Moral e ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: Senac Ed., 2002).
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que leitura o senhor faz da foto de Maluf com Lula?

Roberto Romano –
Temos nos dois elementos o retrato impiedoso da prática realista. É como se o retrato de Dorian Gray  tivesse exibição invertida: o horror aparece depois de ficar escondido pela retórica “ética” do petismo durante anos. Mas as rugas que hoje encobrem o rosto petista não surgiram repentinamente. Elas vêm de longa data. Recordo como se fosse hoje: no dia em que o PT foi inaugurado, na capela do Colégio Sion em São Paulo, ali estive a convite. Ao chegar no vestíbulo da igreja, certo intelectual importante me recebeu com uma recomendação: “devemos acabar com os principistas dentro do PT”. Não fiquei muito tempo na cerimônia. Afinal, fui e sou principista... O resultado está na foto: venceram os contrários ao “principismo”, ou seja, os alérgicos aos valores éticos, programáticos, socialistas, etc.

IHU On-Line – O que as alianças políticas atuais revelam acerca das convicções políticas e sociais dos partidos e seus integrantes?

Roberto Romano –
É preciso notar que a rigidez ideológica convive, ao longo dos tempos, com a flexibilidade máxima quando se trata de interesses dos partidos e, sobretudo, de seus dirigentes. É o caso do trato entre Hitler  e Stalin  que desarmou a esquerda no mundo inteiro, sobretudo na Europa. A antiga esquerda também seguiu teorias que identificavam supostas sociedades e Estados “pré-capitalistas”. Daí, ela encetou alianças com os “setores progressistas da burguesia nacional”. A esta última eram atribuídas “tarefas históricas” como resposta ao apoio revolucionário. A dita burguesia progressista sempre decepcionou as esperanças dos seus aliados: ela sempre optou pelo lucro, pelos golpes de Estado, pela ruptura com a tênue democracia. A lição de 1964 cabe no quadro. No interior do partido “revolucionário”, pobre de quem se levantasse contra a política “realista” de alianças! Um aluno meu, infelizmente falecido, tem um mestrado no qual examina, com documentos, a referida política imersa na Realpolitik (Rückert, Sérgio Joaquim. Persuasão e ordem: a escola de quadros do Partido Comunista do Brasil na década de 50, 1987). O texto eletrônico pode ser lido no site Nou-Rau da Unicamp, em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/. Com as alianças “realistas” se instala na mente dos militantes uma contradição existencial: como seguir a palavra de ordem emitida pelas direções se o aliado de agora significa o contrário de tudo o que o nosso partido postula? Com a imposição autoritária dos quadros dirigentes, os militantes têm apenas duas saídas: ou deixam o partido e inauguram uma dissidência, ou dobram a espinha. Esta flexão do corpo e da alma é mais provável quando no ápice da hierarquia partidária se encontra uma personalidade carismática, efetiva ou fabricada pela propaganda. É o caso de Stalin, Mao  e de outros líderes. No Brasil, Prestes  e agora Luís Inácio da Silva.

IHU On-Line – Como falar em democracia em um contexto em que os partidos têm como fim a manutenção do poder, sem preocupação com um projeto de país?

Roberto Romano –
Um partido político nada mais é do que o projeto de sociedade e de Estado. Tal projeto, inscrito no programa partidário, é proposto ao povo soberano em eleições. O povo, na sua maioria, escolhe o modelo proposto e recusa outros paradigmas. Assim, um partido socialista propõe à coletividade o modelo de preeminência dos interesses coletivos sobre os individuais nas políticas públicas (educação, saúde, segurança, tecnologia, propriedade, etc.). Ele também exige a autonomia do país diante de forças internacionais, sejam elas das finanças, das empresas que operam em todo o planeta, etc. É claro que, em tal visão, o partido precisa conquistar o poder e, se possível, nele ficar até que seu projeto seja aplicado à sociedade e ao Estado. Não é isso o que notamos no Brasil. País oligárquico, nele os partidos também se organizam de maneira oligárquica, defendendo, sobretudo, os interesses dos chefes de famílias poderosas ou dos ajuntamentos dirigentes regionais. Aqui o programa serve apenas para legalizar a legenda junto à justiça eleitoral e nada mais. Os oligarcas (ou sua família) são longevos no poder. E tal fato é antigo na história democrática mundial. Aristóteles já critica os que “ao visar os benefícios a serem obtidos dos recursos públicos, buscam a permanência contínua nos cargos” (Política, III, IV). No Brasil basta um nome: Sarney. A lista é pequena, porque os oligarcas (como o nome indica) são poucos, ciumentos das prerrogativas (“a liturgia do cargo” dizia Sarney quando na presidência da República) e dos privilégios. O PMDB é uma federação de oligarcas regionais. O DEM (antigo PFL, antiga Arena, antiga PSD, UDN, etc.), hoje em processo de enfraquecimento letal, era uma federação similar. O PT se oligarquiza rapidamente. Existe hoje o PT dos Viana no Acre, de Jaques Wagner , o feudo petista de São Paulo, o PT de Tarso Genro , etc. As dissenções dentro do petismo seguem exatamente o processo de oligarquização: os interesses regionais do partido não raro se chocam com os interesses dos dirigentes nacionais. E aí temos as intervenções, como a ocorrida em Recife recentemente. Enfim, nossos partidos políticos seguem o interesse maior dos líderes nacionais e regionais. Eles julgam não ter explicações a dar para a militância de base. Numa reforma política verdadeira, algumas determinações seriam estratégicas, como a proibição de líderes ficarem nas direções por mais de quatro anos, a exigência de consulta primária aos eleitores dos partidos quando das eleições (escolha dos candidatos, alianças, etc.). E nada falamos, por enquanto, das máquinas eleitoreiras, os partidos ditos “nanicos”. Eles são propriedade privada de um ou dois políticos e se vendem (na verdade, vendem seu minuto de propaganda gratuita) em troca de cargos, favores, etc. Em suma, nada temos no Brasil que negue os pressupostos de Karl Marx no 18 Brumário , de Max Weber  e de Robert Michels . Infelizmente!

IHU On-Line – Qual é o sentido da política em uma sociedade?

Roberto Romano –
Não existe santidade na política e no Estado. A lição platônica, radicalizada por Santo Agostinho  (Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? quia et latrocinia quid sunt nisi parua regna?, Civitate Dei, IV, iv) deveria nos alertar contra partidos e agrupamentos políticos que se apresentam como “puros”. Aliás, é recomendável ler um pungente livro da psicanalista Marie-Laure Susini “Éloge de la corruption, les incorruptibles et leurs corrompus” (Paris: Fayard, 2008). Ali, a autora mostra todos os perigos da suposta “pureza” na ordem social. Notemos que Santo Agostinho afirma que “sem a justiça” os reinos são apenas magna ladroagem. Ora, na República (432 b-d), Sócrates compara a pesquisa da justiça à caça. Devemos pensar que a justiça é animal astucioso oculto numa touceira. Ela pode escapar sob nossas pernas. E mesmo quando agarrada, podemos perdê-la. Sua essência é fugidia. É tolo imaginar que exista o monopólio da justiça, bem como o monopólio da moral e da ética. A justiça é a essência do Estado excelente. Sócrates convida Glauco a imitar na sua busca “alguns caçadores que formam um círculo ao redor da moita (θάμνον). Precisamos de toda nossa atenção para evitar que aJustiça (δικαιοσύνη) não ache uma saída por onde escapar e, travestida, escape de nossos olhos”. Tendo recebido a anuência de Glauco, Sócrates recomenda: “abra, pois, os teus olhos, fazendo todo o possível para percebê-la no caso de, talvez, tu a vejas antes de mim, assinalando-a” (República, Loeb Classical Library, Plato V, I, 1978). O PT exibiu a máscara da pureza durante anos, contra os demais partidos. E se afirmou como o guardião da justiça social. Em seu discurso, Maluf fazia as vezes de um ardiloso demônio corrupto. Lembro, a propósito, que Spinoza , no Tratado Político, critica os filósofos defensores de modelos morais puros e elogia os políticos, conhecidos pela astúcia. Trata-se de uma precaução importante, pois quase sempre os “santos” na política apenas ostentam a armadilha da ortodoxia ética, sendo na verdade raposas e leões. Alianças importam, em qualquer hipótese, na luta pelo poder. Mas se elas impedem as mudanças propostas no programa partidário, temos o realismo de fancaria que sequer merece o epíteto de maquiavelismo. As alianças “pela governabilidade” assumidas pelo PT (Sarney, Lobão, ACM e agora Maluf) adiaram, sem prazo de recomeço, a luta do petismo pela justiça no Estado e na vida social.

IHU On-Line – Em 2003, quando elegeu pela primeira vez o presidente da República, o PT já havia passado por uma transformação interna, de valores e objetivos. De que maneira essa mudança foi percebida pelos movimentos sociais e pelo eleitorado brasileiro?

Roberto Romano –
Pelos militantes, das maneiras que indiquei acima: ou dobraram a cerviz ou saíram do partido. Ou, então, nele permanecem impotentes sob a hegemonia dos realistas. Quanto ao eleitorado, a face é outra. O PT soube, como poucos partidos, aproveitar a popularidade de seu líder máximo. A propaganda de Duda Mendonça e atualmente a de João Santana (digo sempre que este último é o ministro mais importante do governo petista) ampliou muito a figura de Luís Inácio da Silva, elevando-a à dimensão mitológica. Assim, o PT é um partido que tem dois nomes estelares (sendo que a presidente escolhida tem a luz da lua, derivada do sol que é o ex-presidente) e depois, muito abaixo, nomes regionais que não empolgam o país. Eu diria que impera no PT o monoteísmo de Luís Inácio da Silva. Assim, na medida em que as popularidades do sol e da lua persistirem, teremos um eleitorado cativo para a agremiação. Nunca, como hoje, foi tão importante, no Brasil e no mundo, estudar a propaganda política. É de todo recomendável reler o livro de Serge Tchakhotine, A mistificação das massas pela propaganda política (em tradução de Miguel Arraes, quando foi cassado pela ditadura, na Editora Civilização Brasileira). O título original do livro é mais violento: “O estupro das massas pela propaganda política”. Devido à censura ditatorial, o eufemismo imperou no título brasileiro. Dei um curso sobre o assunto na pós-graduação da Unicamp, e creio ser necessário que os estudiosos da política nacional orientem seus trabalhos para o ponto. Note-se que as alianças oportunistas, hoje, têm como alvo dar aos marqueteiros (os sofistas de nossa era) minutos a mais de propaganda. Há muito para refletir em semelhante atoleiro da ordem democrática.

IHU On-Line – Ao percorrer a trajetória histórica do PT, quais os principais movimentos de mudança que o senhor destaca em relação à sua ideologia? Qual a influência das alianças nesse sentido?

Roberto Romano –
O PT não teve ideologia unitária desde o seu início. Nele, se definiram três correntes principais: o catolicismo progressista, os trotskystas e os antigos stalinistas. Ele também agregou alguns setores que nos EUA seriam chamados de “liberais”, ou seja, democratas desejosos de melhoria social, justiça, etc. A conquista do poder, que se deu gradativamente, trouxe conflitos internos, quase sempre resolvidos em favor dos “realistas” contra os “principistas”. Assim, a mudança foi um processo lento e contraditório dentro da agremiação. O ápice do realismo ocorreu na Carta aos Brasileiros e na aceitação da política econômica edificada com o Plano Real. A escolha de Henrique Meirelles para o Banco Central não foi apenas algo simbólico, mas determinou profundamente a forma operacional. E aqui podemos dizer que uma aliança tácita foi entretecida pelo PT e pelos supostos partidos de oposição (PFL/DEM e PSDB) que mantiveram apoio integral à política econômica petista, deles herdada. O antigo programa partidário do petismo, proclamadamente socialista, deveria ter sido mudado, com a militância, após a Carta aos Brasileiros. Mas ele se manteve como truque de propaganda e chantagem: criticar o governo petista passou a significar, em alguns núcleos duros do PT, tentar o golpe contra a “esquerda”. Só que a prática do partido, como bem diz o psicanalista Thales Ab’Saber , no jornal O Estado de São Paulo (04-08-2012), foi a instalação na direita.

IHU On-Line – Que lugar ocupa a ética em nossa política partidária atual?

Roberto Romano –
Trata-se de uma ética que opera em favor dos governantes, “ex parte príncipe”, como diriam os humanistas do século XVI e, com eles, Norberto Bobbio . É a ética que nega direitos às “pessoas comuns” é a ética do “sabe com quem está falando”? A ética do absolutismo tirânico. Não podemos esquecer que, na tradição ética e jurídica antiga e moderna, tirano “é quem usa os bens dos governados como se fossem seus”. A lição está em Aristóteles, São Tomás , Jean Bodin  e outros mais. No Brasil temos uma ética da tirania porque o que fazem nossos operadores do Estado é julgar de sua propriedade o que é público.

IHU On-Line – Recentemente o senhor afirmou que “o Brasil é um Estado absolutista anacrônico” . Poderia explicar essa tese?

Roberto Romano –
Como enuncia Joël Cornette, o poder absolutista é organizado como uma família na qual as ligações de sangue e proximidade são hegemônicas, onde o rei sempre é percebido sob os traços do pater familias, concedendo benesses aos seus e sabendo distinguir os que as merecem. “Henrique IV, chefe benfeitor de clã, permanece para sempre como o que fez dos franceses ‘irmãos ‘, ‘primos’, ‘amigos’, um clã que tem sentido não quando ele está em guerra ou em paz, mas porque está reconciliado (...). Todas as famílias concomitantes e superpostas, de Versalhes até a mais humilde choupana, são dominadas pela família mística: o Pai, o Filho e o Rei da França. Pois a essência divina da monarquia, pensada, difundida, teorizada definitiva e eficazmente a partir da ressacralização de Henrique IV, confere a essa dimensão paterna da monarquia um valor sagrado. Segundo uma propaganda oficial, as famílias terrestres do reino francês apenas transcrevem a família celeste, dos santos, dos anjos, do povo de Deus” (La monarchie, entre Renaissance et Révolution, 1515-1792. Paris: Seuil, 2000). O trabalho do rei é o de prover os seus próximos “construindo uma rede familiar e doméstica que assegure a boa marcha do governo. Para tanto, é preciso achar subsídios. Os monarcas mais atilados elaboraram, com seus conselheiros, sistemas que ligam o ‘doméstico ao administrativo’, a fidelidade à venalidade, o ‘serviço de sua pessoa na administração da coisa pública’. Assim, a monarquia criou em permanência a estrutura clientelar com ramos horizontais no espaço geográfico, limitadas apenas pelas fronteiras, com implicações verticais na hierarquia social, descendo até os submetidos à talha e à corveia” (Ainda Cornette). A ascensão social e política é feita pelos grupos e indivíduos naquela imensa rede de favores instaurada pelo absolutismo. O rei precisa cooptar os nobres, estes precisam exibir poder ao rei. E ambos os lados precisam de operadores que permitam a fluidez dos interesses, a sua realização sempre dependente dos alvos concorrentes ou paralelos aos dos coletivos familiares ou de “amigos” que os mantinham. A política do “é dando que se recebe” não foi instaurada no Brasil, como se nota. A sociedade e o Estado absolutistas constituíam, diz um historiador, “redes de amizade, de primos, de camaradas de colégio e combate, companheirismo, afinidades diversas, encontros de vizinhos”. Elas eram, para um nobre, “uma rede de interdependência na qual ele se inseria desde o nascimento, onde se casava e que lhe permitia sustentar, ou aumentar, a reputação de sua casa. É um capital que em parte ele herdara de seus parentes, que deveria fazer frutificar antes de o transmitir, por sua vez, aos filhos. O gosto das relações, o culto da amizade, contavam tanto quanto o sentido da honra e do devotamento” (Petitfils, Jean-Christian: Louis XIV. Paris: Perrin, 2002). O absolutismo é marcado, para além dessa rede de favores (algo essencial na sociedade e política brasileira de ontem e de hoje), pelos privilégios dos que dirigem o Estado. Há nele a divisão entre os “excelentes” e os “comuns”. No Brasil, o privilégio de foro, algo essencialmente contrário ao que é republicano, se une a outros privilégios dos que governam. Temos a permanência de costumes e usos do Antigo Regime. Além disso, a ética do Estado brasileiro reserva ao presidente da república quase todas as prerrogativas do imperador, entre elas, a irresponsabilidade. Diz a Constituição que o presidente é responsável pelo governo. Se fosse assim, de fato, a maioria dos escândalos financeiros e políticos do ministério teriam a presidência como acusada em juízo. É bom lembrar que vivemos sob o absolutismo de 1500 até o século XIX, quando a doutrina liberal de Benjamin Constant  sobre o poder moderador, um poder neutro segundo ele, foi pervertida para reservar um poder superior ao chefe de Estado. O Brasil, no projeto dos portugueses que fugiam da Revolução francesa na pessoa de Napoleão, seria um Estado contrarrevolucionário (entenda-se: contrário às revoluções democráticas modernas, as da Inglaterra do século XVII, dos EUA e da França no século XVIII). Vivemos sempre sob o regime do favor, do privilégios, da não república. Daí, somos absolutistas anacrônicos, um museu constitucional de fato, embora tenhamos uma Constituição escrita que prima pela democracia.

IHU On-Line – Como as alianças políticas com fins meramente eleitorais, ou em nome da chamada “governabilidade”, se relacionam com o niilismo ético e político que vivemos em nosso país?

Roberto Romano – O absolutismo é por excelência o regime da razão de Estado, do amoralismo político. E do cinismo oportunista. O Brasil se coaduna com tal lado do poder absoluto: nele, valores não contam, apenas poder e dinheiro. E privilégios. O niilismo é programa real da maioria de nossos políticos.



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* “O governo do Brasil retoma a ética conservadora e contrária à democracia, o que exige da Igreja o papel vicário”. Publicado nas Notícias do Dia 14-01-2008

* Niilismo e mercadejo ético brasileiro. Publicada na edição número 354 da IHU On-Line, de 20-12-2010

* Filosofia não é, necessariamente, sistema. Publicada na edição número 379 da IHU On-Line, de 07-11-2011