Fronteiras do Pensamento.
Roberto Romano/Unicamp
1) Mentiras
Durante o tenso debate encenado
sobre a retórica, no Górgias, Sócrates insiste: os
cidadãos procuram corretamente conselhos em todas as técnicas, do campo náutico
à medicina. Os retores, aproveitando tal confiança em juízos especializados,
afirmam que também o seu mister é uma técnica,
persuadir os que decidem a norma política. Sócrates replica de modo
direto, afirmando que, apesar dos retores, a política e a moral exigem saberes
técnicos, os quais devem ser adquiridos antes que o retor ensine as pessoas a
persuadir. Caso contrário, ocorre apenas que o ignorante imagine saber mais do
que os especialistas. ([1]) Trata-se a
retórica de um saber ou apenas de experiência, algo limitado ao incerto e
inseguro campo empírico ? A resposta socrática é positiva. retórica é forma
empírica de ação e pensamento. E o que se produz com ela? Certa gratificação e
prazer. Quem é gratificado pela retórica? O povo. A arte de persuadir seria,
então, algo belo e bom ? Longe disso. A retórica é prática que, sem poder ser
considerada uma ciência, pertence a pessoas perspicazes e sem medo,
superiormente dotadas para a lisonja. A retórica é uma empiría, como a arte de
cozinhar.
No
fim do diálogo Sócrates desafia Cálicles e sua profecia do julgamento que levou
o filósofo à morte, dizendo que só um homem sem justiça (adikount´anthrôpon) o
conduziria ao tribunal, pois é deslocado (atopon) que um homem justo denuncie
ao tribunal um outro que não comete injustiça. Não seria de espantar se a
sentença dos juízes fosse a condenação à pena capital. E Sócrates enuncia a sua
auto-percepção: “Acredito que eu sou, em companhia de alguns atenienses (oimai
met´oligôn Athênaiôn) o único homem hoje
ocupado em assuntos estatais. Por isto, as palavras que pronuncio não se
destinam a agradar, mas dizem o que mais vale, não o mais agradável. Sou
incapaz das finuras aconselhadas por você, de modo que não saberia o que dizer
diante do tribunal. Eu seria julgado como seria julgado o médico que acusasse
certo cozinheiro face a um tribunal de crianças. O cozinheiro poderia dizer,
justificando-se : “crianças, eis um homem que lhes causa misérias. Ele machuca
(…), aos lhes cortar ou queimar. Ele seca e sufoca, de modo que vocês não sabem
para onde fugir. Eles lhes dá para beber o que é amaríssimo, forçando a sua
fome e sede! Não comigo, que lhes dou grande quantidade de variadas guloseimas
doces! Paralisado pelas necessidades de sua situação, o que poderia dizer o
médico? Suponha que ele diga a verdade : ´Tudo o que fiz, era para a sua saúde
!´. Alguns clamores, protestos, os juízes não seriam violentos?” . Algo
análogo, diz Sócrates, enfrentarei no tribunal.
O Górgias ataca a política
ateniense e os políticos. Nele, dois ideais são confrontados com a experiência.
Sócrates elege o ideal que o conduz à felicidade pessoal. Atrás dele surge a
imagem de Platão, destinado à política por origem familiar e pelas suas
próprias inclinações. O diálogo apresenta o problema, desenvolvido na República
e nas Leis, da sociedade justa ou injusta ([2]). O ataque é
dirigido às cidades mal administradas, “que medem seu ´poder pelo número de
navios nos portos e dólares no tesouro, o seu ´bem estar´ pelas condições de
consumo dos cidadãos. Tal seria a sociedade ateniense, a de Péricles, cujos
princípios corruptos conduzem à corrupção das instituições musicais,
dramáticas, políticas e sociais”. ([3]) Platão condena
os políticos por adular os preconceitos da massa. Sócrates diz no Górgias:
“Prefiro que a lira seja desprovida de acordo e dissonância, e que o
mesmo ocorra com o côro pelo qual sou responsável, e que a maioria dos homens
esteja em desacordo comigo, e me contradigam, em vez de não ser, eu mesmo,
consoante comigo mesmo e me contradizer”. O termo usado para falar em acordo
musical e político, nesta passagem, é “homologein”, importante na ordem
jurídica ocidental.
A retórica é adulação dos
governados, algo que se transforma em tirania quando os demagogos atingem o
poder. No processo eleitoral democrático o povo esquece o que exige na vida
particular. Nesta última, quando se busca o auxílio de um médico, artesão,
etc., a busca é por indivíduos técnicamente bem treinados, competentes. Nas
eleições e consultas ao povo, tal elemento é afastado, salientando-se a
corrente de palavras que opera com feitiço,
um encantamento dos eleitores. Assim, eles confiam a direção do Estado a
pessoas incompetentes e sem retidão. No Górgias, Platão distingue as
“epistemai-téknai” fúteis das sérias. Existiria uma retórica perversa e
pervertida, aproximada à lisonja e à cozinha (inferior à ginástica e à
medicina) e a boa retórica, que ensina e
produz a virtude, superior à ginástica e à medicina. ([4])
Não cabe aqui seguir as inspeções
modernas do pensamento platônico no âmbito político. Como fruto das utopias
renascentistas, do socialismo no século 19 e 20, do nazismo sobretudo, críticos
de Platão indicam nele um teórico totalitário. E neste rumo, também foi
acentuado a “solução” platônica que substituiria as eleições democráticas,
doentes de virulenta demagogia, produtoras de servidão voluntária. Karl Popper,
na conhecida obra sobre a sociedade aberta,
acusa o suposto ou real totalitário. Leo Strauss assume atitude
diferente face à “noble lie”. A fórmula tem uma polissemia que exige prudência.
As duas palavras —gennaion pseudos—
foram interpretadas de formas contraditórias. Sejam quais forem as exegeses, a
“nobre mentira” instalou-se no mais profundo nível da Razão de Estado. Com as
descrições da Guerra do Peloponeso, em especial o episódio da ilha de Melos,
ela fornece a armadura dos que, dirigindo o Estado, desconfiam de eleições e
debates, fogem da transparência e da “accountability”. Eleições livres (livres
sobretudo de manipulações eleitorais) e razão de Estado formam um par de muito
difícil consonância.
Platão imagina que determinadas
situações exigem a nobre mentira. Consciente de que a educação não basta para
manter três setores hierarquizados de guardiães, auxiliares e produtores na
suposta “cidade bela” (Kallipolis), Sócrates afirma que os três grupos devem crer
que estão em determinado grupo porque nasceram da terra. Todos os cidadãos
precisam ver cada um dos outros como irmãos. Mas um grupo é misturado com ouro,
outro com prata, outro com bronze. Que mentira será eficaz para conseguir a
divisão entre os três setores (filósofos/reis, guardiães, trabalhadores) ?
Surge a fórmula da mentira como remédio (hos pharmakon chresimon), o mais
parecido com a verdade. ([5]) A tese platônica espanta porque, mesmo na
democracia demagógica de Atenas, o ideal era não mentir em assuntos de Estado.
Jon Hesk, discute a tese de Platão e mostra dois exemplos
de mentira condenada no campo democrático. A primeira, se passou nos EUA de
nosso tempo, com o comportamento de Oliver North na crise Iran/Contras. Dois
comitês do Congresso tentaram convencer North de que era errado enganar os
legisladores, o povo americano e o governo iraniano. Um político diz ao militar
investigado que existem vínculos essenciais entre a transparência, a
honestidade e a política normativa na América, ao contrário do que se passa nas
terras não democráticas. Um senador (Hamilton) se perturba com o apelo de North
à noção de que ocasionalmente é necessário e justificável mentir ao povo.
Mas Demóstenes, em discursos
virulentos, também denunciou a mentira e o engodo como ameaças ao processo
democrático. Mentiras podem existir em regime tirânico, diz ele, ou numa
oligarquia, porque tais sistemas não exigem o debate dos cidadãos e dos que
decidem as políticas públicas. ([6]) O pensamento
ocidental, desde o Renascimento, divide-se entre os que defendem a mentira do
Estado (e a sua ordem burocrática) e os que
estabelecem, como Humboldt, os limites da ação estatal. Rousseau indica
o ponto: “o pretexto do Bem Público é sempre o mais perigoso flagelo do
povo” ([7]) A fórmula da
razão de Estado é simples: “salus populi
suprema lex esto”. Um comentador de Rousseau matiza o dito do genebrino: as
mentiras oficiais causam danos insuspeitados. O “legislador, embora
justificadamente use mentiras e outras formas de engodo para atingir as pessoas
com seus propósitos, deveria persuadir em vez de forçar o povo comum a aceitar
seus ditames” ([8])
2) Razão de Estado
Os comentadores da Razão de Estado
indicam a inconexão nela encoberta entre quem fala com poder e quem obedece. “O
político mente para ganhar eleições; o desempregado mente para conseguir
emprego, e até existe quem minta exclusivamente para chamar a atenção”. Mentir
é próximo de manipular, pois é um ato unilateral: “eu” engano, minto, e “eles”
não devem perceber. A razão de Estado é uma política paradoxal porque tende a
reduzir todo enunciado político à manipulação dos dirigidos, neles criando a
aceitação temporária do que se diz e se faz. A adesão aos atos do governante é
fabricada com meticulosa astúcia. A cada vez o engano deve ser retomado, sem
que se acumule realmente qualquer obediência cuja origem seja a vontade efetiva
do coletivo.
A razão de Estado
arruina a fé pública porque é “um engano radical, uma ruptura de fé que arruina
todo contrato discursivo; na mentira [e na Razão de Estado, RR] o ouvinte não é
capaz de explicitar nenhuma estrutura; trata-se de um discurso ´fora da lei´”.
([9]) Quando
descoberta, a mentira precisa de razões excusas para justificar seu abuso. A
verdade não precisa se desculpar, salvo justamente diante da razão de Estado,
como se apreende da história desta política que não ousa dizer seu nome. Os
julgamentos das seções especiais de Justiça em Vichy, os julgamentos de Moscou
e muitos outros julgamentos demonstram esse ponto.
Quais mentiras operam
na cultura ocidental, berço da razão de Estado? Na ficção, que sem dúvida não é
verdadeira mas também não é mentirosa, pois não intenta enganar. Na lingua política comum, não presa à Razão
de Estado, pois nela se encontram os eufemismos, as evasivas, os silêncios, as
desinformações. Esta lingua promete sem prometer e deseja agradar e conseguir
votos, persuadir mais do que convencer. Mas não pode ser dita mentirosa, e sim
demagógica. Nela, os interesses pragmáticos se sobrepõem a todos os demais interesses.
A lingua da publicidade exagera para persuadir, é prescritiva de modo sutil. ([10]) A fala
cotidiana conta com fórmulas mentirosas, que não podem ser tomadas ao pé da
letra. Assim nas desculpas, saudações, expressões de contentamento ou tristeza.
“Existem classes e profissões nas quais se pressupõe, por princípio, que forçam
os seus representantes a mentir, como, por exemplo, os teólogos, os políticos,
as prostitutas, os diplomatas, os poetas, os jornalistas, os advogados, os
artistas, os fabricantes de alimentos, os operadores da bolsa, os juízes, os
médicos, os falsificadores, os gigolôs, os generais, os cozinheiros, os
traficantes de vinho”. ([11]) Mas as
mentiras profissionais são partilhadas. Passemos ao caso da mentira como ato de
violência e poder.
A mentira real se
identifica com a injustiça. Ela é
violência só justificada pela
aceitação do violentado. Nela, as duas partes —mentiroso e enganado— sabem que
estão mentindo um ao outro, mas ao dirigido só resta aderir ao dominante. Na
mentira real a competência linguistica é assimétrica: mente-se à criança, ao
doente, ao fraco, ao vulnerável, ao que depende de tutores. A Razão de Estado
se instala com a dominação assimétrica absolutista. É o caso de James I, que
afirma ser o rei “accountable” apenas perante Deus. Aos súditos, ele ensina e
manda sem que eles possam exigir prestações de contas. A luta contra a Razão de
Estado formou as revoluções democráticas na Inglaterra, na América e na França.
Na democracia, a competência lingüistica é simétrica e compartilhada.
A Razão de Estado
contraria o genero humano porqueque sua mentira é injustiça que não toma
governantes e governados como iguais, mas reduz o governado a meio do
governante. A mentira se oculta na Razão de Estado, porque senão ela perde
efeito. Fé pública e verdade garantem
deveres, leis, contratos. Pitt Rivers ([12]) afirma que a mentira mede a hierarquia.
Mentir é uma relação que se faz cima para baixo. Trata-se de saber quem possui
direito à verdade. Mentira é não dizer a verdade a quem possui direito a ela. A
ordem que chega de cima não é mentira, mas palavra de poder, modelo de ação
para quem a recebe. Quem precisa fazer sua informação subir mente se esconde
não a purifica o conveniente para o seu nível. Os totalitarismos “nunca
reivindicaram a si mesmos como prováveis, mas como verdadeiros”.
3) Eleições
Se quisermos
conhecer a “realidade” de um coletivo humano, as eleições ajudam bastante. Mas
os escrutínios eleitorais trazem muitas incertezas. Em primeiro lugar, pensa
François Dagognet ([13]), porque o
poder, desde o início, “se imiscui na operação e a embrulha: ele deseja em
demasia uma ´representação´que lhe seja favorável”. Nas eleições e nos
escrutínios, são misturadas três imagens: “a real (se esta palavra tem algum
sentido) a normativa ou potencial, pois se trata de encontrar uma direção
futura, a desejada ou procurada, porque os manipuladores tendem a se perenizar
e cuidam bem de desregular os indicadores”. O ponto maior é que eleições visam
menos o conhecimento de ideais, ou exigências coletivas, e geram mais a
afirmação de poder de grupos. Na história eleitoral os grupos poderosos
reduziram o voto público (com as mãos erguidas, em voz alta, etc) em proveito
do voto secreto. O voto secreto é mais indicado, quando se trata de instaurar a
justiça e a liberdade? Leiamos Montesquieu: “A lei que fixa o modo de dar os
bilhetes dos sufrágios é lei fundamental
na democracia. É um grande problema saber se os sufrágios devem ser públicos ou
secretos. Cicero escreve que as leis que os tornaram secretos nos últimos
tempos da República foram em grande parte a causa de sua queda”. ([14]) E Rousseau
afirma o seguinte: “quanto à maneira de recolher os sufrágios, ela era entre os
primeiros romanos tão simples quanto seus costumes, embora menos simples do que
em Esparta. Cada um dava seu sufrágio em voz alta, um funcionário os
anotava…Este uso era bom, enquanto reinou a honestidade entre os cidadãos e
cada um tinha vergonha de fornecer publicamente seu voto a uma deliberação
injusta ou assunto indigno, mas quando o povo se corrompeu e os votos passaram
a ser comprados, foi conveniente que eles fossem dados em segredo”. (Contrato
Social, IV, IV).
4) Justiça
Dos retores
criticados no Górgias à “nobre mentira” da República, daí ao elogio
da dissimulação e do engodo trazidos pela Razão de Estado, passando aos
procedimentos de Goebbels e similares, para atingir a era dos que Vance Packard
chamou “Os persuasores ocultos” e atualmente nas técnicas de persuasão à
distância analisados por Peter Sloterdijk ([15]) ou nos
laboratórios de neurotecnia que visam mover pessoas com o uso de meios
eletrônicos ([16]),
temos a constante busca da justiça, conduzida por alguns seres humanos, mas
também a perene afirmação da injustiça, pela maior parte dos que dirigem os
Estados. A democracia resistiu aos totalitarismos, mas rende-se, cada vez mais,
aos encantos e facilidades de legitimação trazidos pelas eleições, ganhas na
sua maioria com poderosa assessoria dos novos retores, os donos do marketing
político. Se os retores gregos embelezavam as palavras com fins de persuasão,
hoje os seus herdeiros embelezam todo o corpo dos políticos, fabricam seres
artificiais com ajuda de todas as formas cosméticas. O Brasil foi bem servido
nesta faina de cosmetizar a política para reforço da injustiça. Platão diz que
a Justiça é como um bicho escondido em moitas. Ela foge das mãos e pernas dos
que a procuram. Poucos podem atingi-la em tempo certo. Eleições também enganam
e mostram enganos. E tudo isso pertence à ordem do poder político.
[1] Cf. Kennedy, G. A. : On Rhetoric: A Theory of Civic
Discourse (Oxford University Press, 1991) ; Sarkar, H. : “Kant. Let us
compare”. The Review of Metaphysic, volume 58, 2005.
[2] E.R. Dodds, Gorgias.
A revised text with introduction and commentary (Oxford, Clarendon, 1992,
second impression), p. 31.
[3] Dodds, op. cit. p. 33.
[4] Cf. Brès, Yvon: La
Psychologie de Platon (Paris, PUF, 1973), p. 52.
[5] Cf. Hesk, J. : Deception
and Democracy in Classical Athens (Cambridge, University Press, 2000),
p. 154.
[6] Cf. Hesk, op. cit.
[7] Citado por Besse, G. :
“J.-J. Rousseau: maître, laquais, esclave” . In Hegel et le siècle des Lumières, livro coletivo organizado por J. d´Hondt (Paris, PUF, 19749.
[8] Watkins, F. “Introdução” a Rousseau
Political Writings (Thomas Nelson & Son Ed.) 1953.
[9]
H. Parret, “Élements d´une analyse philosphique de la manipulation et du
mensonge”, Documents de Travail, Università di Urbino, 1978, citado por Victoria
Camps.
[10]
Neste plano, o clássico de Vance Packard, The hidden persuaders (New york,
David Mac Kay & Co. 1957) é a referência fundamental.
[11]
Herman Kesten (Ed.) : Schwierigkeinten, heute die Wahrheit zu
schreiben (Munique, 1964), citado por H. Weinrich, Metafora e menzogna; la serenità
dell´arte (Bolonha, Il Mulino, 1976). Cf. Camps, p. 36.
[12]
Pitt Rivers “Honor and social status” . In J.G. Peristiany
(Ed.), Honor and Shame: The Values of Mediterranean
Society Chicago: University of Chicago
Press, pp. 19-77. Citado por Amélia Valcárcel na edição espanhola
: Antropologia
del honor, Barcelona, Crítica, 1979, pp. 30 e ss.
[13]
“Élection” in Philosophie
de l´Image (Paris, Vrin, 1984), pp. 186 ss.