domingo, 2 de junho de 2013

E por falar em golpes de Estado, uma outra palestra, sobre Gabriel Naudé.


No século 20 ocorreram  inúmeros golpes de Estado, produzidos pelo motivos mais diversos em termos ideológicos, religiosos, políticos. Uma parte considerável daqueles atos tinha coreografia definida: na madrugada soldados dirigiam tanques de guerra e tomavam as ruas das capitais. Estações de rádio e televisão transmitiam informes do governo ameaçado. Pouco a pouco, às vezes com rapidez, o legalismo silencia e surgem proclamações rebeldes. Música patriótica compõe o apelo emocional ao povo. Caídos os dirigentes antigos os novos, não raro uma junta, interrompem os direitos civis, sempre para limpar a pátria de toda corrupção, afastar os inimigos comunistas, imperialistas norte-americanos, ou algo assim.  Longos anos de arbítrio deixam irresolvidos os problemas apontados como origem do golpe. Novo levante militar, piora a situação do Estado. Poucos países sairam desta roda sombria aptos para a democracia e puderam confiar em técnicas políticas ou jurídicas aptas a produzir um Estado onde se permta o convívio entre as diferentes opiniões no mesmo espaço social.

O modelo militarista foi demasiado comum no século 20. Ele deixou na sombra que o golpe de Estado é algo mais amplo, mais profundo, mais sutil do que a intervenção das casernas. Um golpe pode ser incruento e não suspender todos os direitos civis. Ele também pode não destruir as determinações abstratas do direito na vida política. Caso se efetivem mudanças micrológicas na ordem legal e de governo e feito pequeno acréscimo ou subtração nas leis, o seu efeito é tão desastroso para a democracia quanto um intervento armado. Somadas, as micro intervenções geram rupturas no direito público e privado, o que instala o medo e a desconfiança geral  frente às instituições.

São inúmeras as teorias sobre os golpes de Estado. Elas existem nos que pensaram a ordem política, dos filósofos gregos a juristas como Hans Kelsen ou Carl Schmitt. Em Gabriel Naudé encontra-se o esboço ideal dos golpes modernos, atuais, futuros. Por ser uma leitura inventiva de Maquiavel para o mundo francês, ([1]) na época em que o Estado absolutista era formado sob a direção de Richelieu, as  Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado ordenam ainda no século 17 um paradigma digno de ser observado, discutido, aprendido e, sobretudo, temido nas terras que se pretendem democráticas.

Gabriel Naudé, na juventude, aprendeu literatura, filosofia e medicina.  Dedicado aos livros, foi notado por pessoas relevantes de seu tempo, como o presidente Mesme,[2] que lhe confiou a sua biblioteca. Embora não aceite o convite, ele redige para Mesme um texto técnico, Advis pour dresser une bibliothèque (1627. Alí, propõe a abertura de uma biblioteca universal aos letrados, com livros úteis à comunidade dos sábios, com a classificação dos escritos segundo uma “ordem natural”. Naude forma o grupo Tétrade, núcleo da chamada “libertinagem erudita”, onde qual problemas filosóficos são debatidos. ([3]) O libertino e bibliotecário aceita o pensamento aristotélico e nele visualiza um método positivo de pesquisa racional. Mas sua política segue Maquiavel. É próprio ao seu uso do maquiavelismo certa frase em que ele afirma ser preciso “abolir toda idéia de direitos que não sejam do chefe” [abolir toute idée de droits autres que ceux du chef] e depois,  “tornar a política autônoma diante da moral, soberana diante da religião”  [la politique autonome par rapport à la morale, souveraine par rapport à la religion ]. Naude é escolhido em 1628 pelo Cardeal de Bagni (na Itália) como bibliotecário. Recebe em 1633 o título de Médico de Luis 13 e o doutorado em Pádua. Chamado em 1642 por Richelieu, pouco antes da morte do estadista, passou ao serviço de Mazarino. Em dez anos, reuniu 40 mil volumes de manuscritos raros, núcleo da atual Biblioteca Mazarino. Grande parte daqueles textos foi dispersada durante a Fronda. Em 1652 a rainha Cristina da Suécia lhe oferece a direção de sua biblioteca. Saúde delicada, ele morre ao retornar para a França, na idade de 53 anos.  ([4])
O pensamento de Naudé entra no rol dos que, na França, assumem a defesa explícita da razão de Estado, como é o caso de Guez de Balzac e seu livro Le Prince título que imita Maquiavel nas condições francêsas.  Segundo Naudé "a consideração do bem e da utilidades públicos passa acima da utilidade particular”. la considération du bien et de l'utilité publique passe ... par dessus celles du particulier." (Considerações Políticas sobre o Golpe de Estado). Tal “interesse público” surge nas Considerações…com o elogio da Noite de São Bartolomeu (1572). Segundo o escritor, aquele ato é “le plus hardi coup & le plus subtilement conduit que l´on ait jamais pratiqué en France ou en autre lieu (…) une action très juste, & très remarquable, & dont le cause  étoit plus que légitime, quoique les effets en ayant été dangereux & extraordinaires” ([5]) Tal juízo é consentâneo com a tese inicial do tratado, onde se afirma que “os téologos não são menos religiosos porque sabem em que consistem as heresias; nem os médicos menos honestos porque sabem a força e a composição de todos os venenos. Os hábitos do entendimento são distintos daqueles que têm como origem a vontade, e os primeiros pertencem às ciências e sempre são louváveis, os segundos ligam-se às ações morais, que podem ser boas ou más. (…) Os soldados se exercitam para aprender a manejar a lança e atirar com o mosquete afim de poder, com mais artifício e indústria, matar os homens e destruir os semelhantes: mas eles usam aqueles instrumentos apenas contra os inimigos de seu Príncipe, ou patria. Os melhores cirurgiões estudam para poder cortar braços e pernas com destreza, e para a saúde dos doentes (…) por que, então, seria proibido a um grande político saber levantar ou rebaixar, produzir ou prender, condenar ou absolver, fazer viver ou morrer, os que julga correto tratar assim, para o bem e repouso de seu Estado?”. ([6])
Falar de política, afirma Naudé, sem discutir o golpe de Estado é assumir o papel de apaideutos) (apaideutws)  a pessoa desprovida de pedia, a formação e as informações necessárias para tratar de um assunto. Na tarefa de provar seu ponto de vista, segundo o qual é preciso conhecer os golpes de Estado, Naudé cita São Tomás de Aquino, nos comentários sobre a Política de Aristóteles. O trecho tomista é o capítulo XII dos comentários, onde o doutor da Igreja “ensina hipocrisia e dissimulação” : “Não é preciso que um tirano, para se manter na tirania, pareça cruel aos subordinados, pois se fosse assim ele se tornaria odioso, o que os pode facilmente levantar contra ele. Mas ele deve parecer venerável pela excelência de alguma virtude, pois é devida toda sorte de respeito à virtude; e se ele não possui tal qualidade excelente, deve fingir que a possui”. ([7]) Comentário mordaz de Naudé: “Eis preceitos bem estranhos na boca de um Santo e que não diferem em nada dos emitidos por Maquiavel e Cardano.” ([8]) Logo a seguir, ele adianta que os preceitos são dados por Aquino para tornar conhecidos as técnicas tirânicas e permitir que os governados se precavenham contra quem age de acordo com elas.
No entanto, após fazer o elogio da prudência como virtude política, Naudé a entende segundo as palavras de Luis XI, do qual cita o mote conhecido: Qui nescit dissimulare nescit regnare . ([9]) E continua a sua exposição com a tese de que “a maior virtude que hoje reina na corte é desconfiar de todo mundo, e dissimular contra todos, porque os simples e francos, não servem para o ofício de governar e traem com frequência a si mesmos e ao seu Estado”. E segue a definição do golpe de Estado, a mesma concedida às máximas e razões de Estado: “ut sint excessus juris communis propter bonum commune [elas são um excesso do direito comum, por causa do bem público]. Ou então, “ações ousadas e extraordinárias que os principes são constrangidos a executar nos assuntos difíceis e como desesperados, contra o direito comum, sem mesmo guardar nenhuma ordem ou forma de justiça, jogando com o interesse do particular pelo bem do público”. ([10]) Nos golpes de Estado, o tempo é invertido, porque neles “ se enxerga primeiro cair a tempestade e depois são ouvidos os trovões, as matinas são ouvidas antes que o sino toque para anunciá-las, a execução precede a sentença; tudo é feito ao modo judaico (…) fulano que pretendia dar o golpe, o recebe antes, sicrano morre imaginando estar seguro (…) tudo é feito à noite, no escuro, entre brumas e trevas”. ([11]) No golpe de Estado, o processo penal é feito após a execução do acusado.
Meinecke expõe de modo sintético o pensamento de Naudé, no clássico A Idéia de Razão de Estado na História dos Tempos Modernos. A primeira nota sublinhada por Meinecke diz respeito ao lugar de Naudé na estrutura política, próximo aos operadores da máquina estatal. O ajudante de Richelieu e de Mazarino é próximo dos poderosos, mas afastado o bastante para poder refletir sobre as questões políticas. Naudé, ao contrário do duque de Rohan e de outros auxiliares do grande cardeal francês, é o único a ser apenas sábio e autor.
Meinecke insiste sobre a importância de Maquiavel para Naudé, mas também indica Montaigne como fonte estratégica em seus escritos. ([12]) É preciso, quando se planeja um golpe de Estado, ter em vista dois elementos principais. O primeiro é a transitoriedade de todos os poderes e o segundo reside na prudência de não abalar o mundo para conseguir o golpe. Grandes rupturas ocorrem sem que se pense demasiado sobre elas, ou sem a necessidade de grandes preparativos. O político consegue obter mudanças políticas usando meios insignificantes. O estadista é definido pela síntese de sabedoria e refinamento, calmo desapego e muita energia. O ceticismo integra a desconfiança nos meios “normais” de poder.
Existe uma outra ruptura importante: o frio ceticismo do estadista não se adequa ao entusiasmo da massa. De um lado Naudé despreza as multidões pois a elas falta a razão e se torna a caça privilegiada dos retores, e se torna expectadora passiva das piores tragédias políticas. A multidão é mar sempre batido por ventos e tempestades. É preciso, portanto, enganar as massas com o uso de escritores venais, milagreiros, propaganda bem arquitetada. Com sugestiva remissão a Campanella, Meinecke recorda o dito de Naudé segundo o qual um soberano que dispõe de doze bons oradores, faz-se obedecer melhor do que ao usar dois exércitos. Para Naudé o cerco de La Rochele ofereceu maior dificuldade ao rei porque a fé dos rebeldes era mantida por quarenta pregadores, e não por capitães e soldados. E chega ao final do silogismo: a superstição é a força mais poderosa para mover o povo, o meio mais fácil para atingir alvos políticos e religiosos. Foi um erro deixar que Lutero assumir importância. Ele deveria ser destruído por um golpe de Estado. Ou então, ele deveria ter sido posto fora do jogo com uma prebenda e pensão. Richelieu conseguiu dobrar os protestantes porque comprou os melhores capitães. 
O principe deve possuir, no ideário de Naudé, três auxiliares: a força, a justiça, a prudência. A justiça determina que ele viva segundo as leis divinas e naturais. Se a justiça divina ou natural deixam de operar, ele precisa recorrer à uma justiça específica, a definida pela “necessidade das políticas e dos Estados”. Quanto à prudência, trata-se para ele de manter o segredo pessoal e o do Estado.
Meinecke termina suas considerações sobre Naudé ao indicar que a razão de Estado é um dos fatores principais que abriram a Estrada ao movimento das Luzes, tanto porque exigiu uma formação peculiar do espírito, quanto porque flexibilizou os valores dogmáticos. A própria filosofia das Luzes combateu, mais tarde, a razão de Estado, porque os pensadores do século 18 defendiam o indivíduo e não um coletivo, além de não aceitar quebras e golpes nas leis naturais ou políticas. Finalmente, as Luzes, pelo seu pleno sentido humanitário, se revoltava com uma situação de privilégios para os governantes, em detrimento dos povos.

Segundo o verbete Raison d´État da Encyclopédie, assinado por Diderot e pelo chevalier de Jaucourt, os autores daquela doutrina política afirmam que em certas ocasiões os soberanos são autorizados a esquecer as leis da probidade dado que o bem do Estado permite ações injustas em relação aos outros Estados. A vantagem do povo justificaria a irregularidade de seus atos. Entre estes últimos, invadir o território visinho, cujas disposições são suspeitas, assenhorear-se de sua pessoa,  privá-lo das vantagens das quais poderia usufruir, tudo sem motivo claro ou declaração de guerra. A doutrina da razão de Estado se fundamenta, diz o verbete, no princípio segundo o qual os soberanos devem buscar a felicidade e paz do seu povo e têm o direito de empregar todos os meios que permitem conseguir tal fim salutar. Mas é preciso, afirma Diderot, para a mesma felicidade do povo, encerrar tal princípio em limites justos. É certo, o soberano deve buscar tudo o que tende ao conforto da sociedade governada, mas não às custas de outros povos. Nações e particulares têm direitos recíprocos, sem isto, os soberanos estariam em perpétuo estado de guerra. Com este argumento que lembra o pensamento de Hobbes, mas condenando as teses do Leviatã, o verbete conclui sua exposição com a certeza de que os representantes dos povos não podem, como também os indivíduos na sociedade, se livrar das leis da honra e da probidade. Seria abrir a porta para a desordem universal estabelecer a maxima que destruiria todos os liames entre as nações, e que exporia as mais fracas às opressões das fortes. “Injustiças nao podem ser permitidas, qualquer que seja o nome usados para disfarçá-las”.

No campo internacional esta é a doutrina da Encyclopédie, no interno, Diderot e Jaucourt  perguntam se o particular pode sofrer danos do soberano, para o bem do Estado. Ao formar o vínculo social, o intento e a vontade de cada indivíduo é sacrificar seus interesses próprios em função do interesse coletivo. “O todo é preferível à parte; no entanto, em tais ocasiões, sempre embaraçosas, o soberano recordará que deve justiça para todos os dirigidos, dos quais é igualmente pai; ele não dará, portanto, como se fossem razões de Estado, motivos frivolos ou corrompidos que o empenhariam a satisfazer suas paixões pessoais ou as dos seus favoritos; ele lamentará se a necessidade o obriga a sacrificar alguns dos membros em troca da salvação real de toda a sociedade”.  Este final fornece matéria para o pensamento, apesar de sua forma seguir mais as fórmulas de Fénelon do que as de Bossuet. ([13]) O título de pai é concedido ao soberano, na reverberação do forte despotismo unido às doutrinas absolutistas. O modelo encontra-se em Bossuet, ([14]) mas sua descrição pode ser encontrada, com mudanças, em Hobbes. ([15]) Tiago 1º, no Basilikon Doron e nos seus discursos oficiais, desenvolve do mais mais amplo o poder paternal do Rei face ao direito e ao povo. ([16]) Ainda em Filmer ([17]) existe a lembrança deste imperativo familiar para definir o status real acima das leis e livre de sua obediência. ([18]) “A relação entre o rei pai e seus súditos crianças foi vista, idealmente, como o relacionamento entre Deus e os homens, isto é, no amor recíproco. Segundo Jacques Krynen, ´o estudo do amor como virtude política ainda está por fazer´. Pelo menos, ele surge como a melhor fonte de harmonia, o suporte ideal de um liame social generalizado segundo a tradição cristã e o pensamento grego (especialmente Aristóteles). Esta relação amorosa se traduz pela adesão dos corações e a troca na fé. A entrada real toma com frequência ´um jeito de festa de casamento ou noivado que celebra a união metafórica do rei com a cidade, província ou a França´(Anne-Marie Lecoq)”. ([19])
Assim,  mesmo na Encyclopédie, ponto avançado das Luzes, é possível verificar que o pensamento contrário à razão de Estado ainda está preso por designações políticas cuja maior virtude é justamente a justificativa da mesma razão de Estado com a representação do rei, posto acima das leis com pleno direito, visto ser ele o pai do povo. Mas retornemos aos escritos de Naudé. Até onde se estende a autoridade do rei ? A resposta do escritor é previsível: absoluta, ela não reconhece limites, nem submissa à nenhuma lei, Princeps legibus solutus est, ou segundo os romanos : Quod principi placuit, legis habet vigorem. Naudé cita Bodin: “Quanto à via da Justiça, o súdito não tem jurisdição sobre seu principe, do qual depende toda potência e autoridade de comandar e que pode não apenas revogar todo o poder de seus magistrados, mas também na presença de quem cessa esta potência e jurisdição de todos os magistrados, corpos, colégios, estados, e comunidades”.  E seguem-se os exemplos de soberanos (entre eles, Luis 11), que fizeram coisas opostas às leis e à moral religiosa, sem prestar contas a ninguém.
O interlocutor posto por Naudé para  ajudar a narrativa de suas idéias afirma diante dos exemplos fornecidos acima: “O que dizes da autoridade e da potência absoluta dos reis, é muito distante da opinião mantida por muitas pessoas, que desejam fazer os soberanos prestar contas em três dias, ou no máximo em um mês, de todos os que eles colocam nas prisões, sem aviso ou participação das justiças e dos tribunais comuns”. A resposta é um primor de ardilosidade: “Esta opinião abusive e  concebida de modo defeituoso, foi pouco a pouco introduzida para remediar uma outra, muito boa, mas defeituosamente executada. (…) É verdade que a autoridade do príncipe sobre os prisioneiros do Estado não deve ser nem exercida tão rigorosamente (…) nem relaxada como se deseja no presente”. Mas é preciso anuir, afirma ainda o personagem porta voz principal de Naudé, que não existe país em que o príncipe absoluto seja menos dispensado do direito comum do que na França. “Eles são solicitados, citados, condenados a pagar o que devem ao terceiro e ao quarto, a Pedro e a Guilherme, e contra eles são exercidos todos os procedimentos da justiça, dos quais não seria possível fazer uso contra os mais miseráveis e abandonados de seu reino”.
O rei da França responde diante da Justiça comum. Trata-se de um progresso, diriam os pensadores democráticos do século 18. Agora, no que se relaciona com a razão de Estado, afirma Naudé, “ainda que os reis não queiram se dispensar da Justiça, ou se isentar das formalidades ordinaries, nem levar sua autoridade ao ponto em que muitos imaginam, ocorrem entretanto assuntos embrulhados, tão espinhosos, tão complicados e de tal natureza e consequência, que seria desvelar para todo mundo, o que é preciso que muito poucas pessoas saibam, e querer, como se diz, agarrar as lebres com o som do tambor, manejá-los do mesmo jeito que se faz com muitos outros não circunstanciados daquela maneira. É neste caso principalmente  que os reis devem usar sua autoridade absoluta, para prender os que julgam necessário manter ao seu dispôr, sem prestar contas a ninguém. (…) Não seria possível arrancar este poder dos soberanos sem facilitar o caminho dos revoltosos, sediciosos, traidores, e assemelhados, capazes de arruinar seu Estado”. ([20])


[1] “O próprio Naudé (…) representa melhor do que ninguém a imitação da Itália e a tendência monárquica dos francêses”. Joseph Ferrari: Histoire de la raison d´État (Paris, Kimé, 1992, 1ª ed. 1860), p. 329
[2] Personalidade importante do período e presidente do Parlamento de Paris, Jean Antoine de Mesme (1598-1673) manteve tratos com importantes pensadores, entre eles Michel de Montaigne. Cf. Jean Starobinski: Montaigne em movimento (SP, Cia. Das Letras, 1993), p. 57.
[3] Os dados biográficos são retirados da Biografia de Naudé editada on line pela Bibliothèque National de France [ http://classes.bnf.fr/dossitsm/biograph.htm]. Para uma notícia sobre os libertinos intelectuais do período, cf. Jonathan I. Israel: Radical Enlightenment. Philosophy and the making of Modernity, 1650-1750. (Oxford, Oxford University Press, 2001).
[4]Além do texto diretamente dirigido ao golpe de Estado, Naudé escreveu sobre assuntos de imediato interesse no debate político e religioso do período. Suas cartas ilustram sua inserção na ordem do dia estatal ou eclesiástica. Cf. Wolfe, P. (Ed.) Lettres de Gabriel Naudé à Jacques Dupuy (1632-1652) (Edmonton, 1982). Gabriel Naudé, Instruction à la France sur la vérité de l'histoire des Frères de la Rose-Croix (Paris, 1623) e também Apologie pur les grands hommes soupçonnés de Magie, (Paris, 1625). VEr, sobretudo, o Jugement ….

[5] “O golpe mais ousado e de aplicação mais sutil dentre todos os empreendidos na França ou em outro lugar (…) uma ação muito justa e notável, cuja causa era mais do que legitima, embora seus efeitos tenham sido muito perigosos e extraordinários”.  (Considerations politiques sur les coups d´ État, I).
[6] Considérations politiques sur les coups d´État in Bibliothèque de Philosophie politique et juridique. Centre de Philosophie politique et juridiqye. ERA-CNRS, Université de Caen, 1989, página 19.
[7] “Expedit tyranno ad salvandam tyrannidem, quod non appareat subditis saevus seu crudelis, nam si appareat saevus reddit se odiosum; ex hoc autem facilius insurgunt in eum: sed debet se reddere reverendum propter excelenttiam alicujus boni excellentis, reverential enim debetur bono excellenti. Et si non habeat bonum illud excellens, debet simulare se habere illud”.
[8] Considérations…ed. cit. Naudé… “brinca alegremente com a austera tolice dos teólogos que faziam consistir a verdadeira razão de Estado em amar a Deus e praticar a virtude mais pura. Discipulo do secretário de Florença, de Botero, de Malvezzi, mesmo de Clapmar, ele exibe os piores venenos com uma complacência satânica, ele goza quando escandaliza os mais veneráveis tolos da época e o vemos feliz ao dizer que é amigo de Campanella (…) ele se encanta ao demonstrar que só o crime funda as monarquias, que Clovis era um vagabundo, Moisés um impostor e todos os herois gregos e romanos, canalhas. Ao demolir tudo o que se adora, ele toma o mundo de trás para diante; e nos previne que para nos preparar para o golpe de Estado é preciso antes estar convencido de que tudo pode mudar de um instante para outro, e que as mais antigas monarquias podem se transformar em repúblicas”. Joseph Ferrari, op. cit. pp. 329-330. p. 27.
[9] Considérations, ed. cit. p. 60.
[10] Para uma análise correta destes enunciados de Naudé, cf. Joël Cornette: La monarchie entre Renaissance et Révolution, 1515-1792. (Paris, Seuil, 2000), pp. 222-223.
[11] Sejam recordadas as magníficas frases de Jan Kott ao comentar o Ricardo 3º de Shakespeare, uma peça toda ela edificada segundo o golpe de Estado. “Ricardo escala rápidamente os degráus que o separam do trono. Mas o golpe de Estado ainda não ocorreu. É preciso jogar o terror sobre a Câmara dos Lordes e sobre o Conselho da Coroa. É preciso aterrorizar a cidade. E agora veremos os que julgam costruir a história. Veremos, desembaraçados de toda mitologia e desenhado em grandes pinceladas, o quadro vazio da prática política. Veremos, transformado em drama, um capítulo do Príncipe de Maquiavel, a cena do golpe de Estado. (…) Quatro da manhã. Pela primeira vez nesta tragédia Shakespeare indica a hora exata. E justamente, temos quatro horas da manhã. Porque? É o instante entre noite e alvorada, átimo em que nos altos postos as decisões já foram tomadas e o que deveria acontecer, aconteceu; mas é o minuto no qual ainda é possível salvar a própria cabeça, a hora em que é possível fugir. A última hora da livre escolha. Toca o telefone, alguém bate apressadamente à porta. Quem é? Não sabemos. Um amigo, ou já é o enviado pelo Grande Mecanismo? (…)Lord Hastings tinha seus amigos no Conselho. E acreditava na legalidade. O golpe de Estado, estou de acordo, mas em toda a majestade do direito.  Ainda três horas antes, ele defendia a legitimidade e recusara se ligar à evidente violação. Ele quisera salvar os restos do pudor, os restos da honra. Ele tinha sido corajoso. Ele tinha sido… Ricardo se compara a Maquiavel; ele é verdadeiramente o príncipe (…) política, para ele, é prática pura, arte cujo fim é reinar. Ela é amoral, como a arte de construir pontes ou lição de esgrima (…) Ricardo é a inteligência do Grande Macanismo, sua vontade e sua consciência. Pela primeira vez Shakespeare mostra o rosto do grande mecanismo. Ele é medonho devido ao seu murmúrio e seu encarquilhamento nojento. Mas ele é fascinante”. Shakespeare, notre contemporain.Paris, Payot, 1978), pp. 26-29. Reflexão eloquente do kayrós grego e maquiavélico.
[12] Meinecke indica o “honnête homme” de Montaigne como relevante para Naudé. Penso ser mais provável que ele tenha sido mais determinado pelas noções de monstruosidade e de exceção nos Ensaios, tendo-se em vista as Considerações políticas sobre os golpes de Estado. Estes últimos constituem motivo de escândalo, como os monstros, para juristas pouco afeitos à política, devido ao fato de que definem exceções às regras. Após Naudé, foi preciso chegar aos escritos de Carl Schmitt, para o exame da exceção. Não tenho espaço para analisar tal ponto. Cito um trecho de Starobinski sobre Montaigne, cuja lógica se aproxima fortemente das Considerações: “Não é impossível que Montaigne, no início da redação dos Ensaios, tenha partido em busca de paradigmas de toda ordem (políticos, militares, morais) e que tenha tentado escrever um manual do perfeito fidalgo. Mas sua atenção voltou-se de imediato (…) para a exceção que desmente o paradigma, para a discordância entre as lições implícitas dos grandes exemplos propostos pela tradição ou para o que dizem os memorialistas sobre os resultados ora favoráveis ora desastrosos de uma mesma conduta. (…) Nenhum ato humano pode pretender a dignidade de modelo fixo, de regra universal; há ocorrências singulares, acontecimentos notáveis e pessoas fora do comum, digno de reter nossa atenção. (…) Os monstrous, os jogos da natureza reivindicam o direito de figurar na mesma condição que as formas regulares, já que a natureza, por toda parte igual a si mesma, não saberia distinguir entre seus filhos uma descendência legítima e uma progenitura bastarda. O desvio é doravante apenas uma das vias possíveis”. Montaigne em movimento, ed. cit. pp. 26-27. “…cette prudence, qui culmine dans l’extraordinaire du coup d’État, est bien envisagée comme la vertu suprême de l’action, mais alors dans une appréhension de l’action, et en particulier de l’action politique, comme foncièrement affranchie de la morale et devant d’ailleurs s’affranchir de la morale pour s’affirmer en tant que telle, dans la production du coup, envisagé dans le cadre d’une esthétique du sublime, c’est-à-dire de la transgression des limites imposées par le droit, la religion et même, même de la nature. Ce qui est une chose très difficile à penser dans le cadre d’une philosophie entièrement pétrie de naturalisme, et qui substitue résolument, au profit du sage, une morale naturelle à la morale religieuse, réduite à n’être qu’un moyen de gouvernement entre les mains du souverain et de ses ministres. Comme si l’examen de la réalité politique, proprement monstrueuse, et l’exaltation des capacités individuelles d’action, de la puissance d’intervention abnorme des esprits forts, conduisaient à envisager la prudence comme une vertu extraordinaire en effet, extravagante, extrême, excessive que ne borne pas même les lois de la nature et qui oscille entre, ou associe, l’abjection pure de la violence aveugle et le génie d’un dieu s’imposant en effet contre l’ordre de la nature, dans l’éclat du prodige.” Cf. Jean-Pierre Cavaillé “Naudé : La prudence extraordinaire du coup d’État” Comètes. Révue des litteratures d´Ancien Régime n. 3 : Des fins de la prudence dans la France des XVIIe et XVIe siècles (EHESS) [http://www.cometes.org/]


[13] Fenelon : Lettre à Louis XIV(1694). 
"vos peuples, que vous devriez aimer comme vos enfants, et qui ont été jusqu'ici si passionnés pour vous, meurent de faim. La culture des terres est presque abandonnée, les villes et les campagnes se dépeuplent ; tous les métiers languissent et ne nourrissent plus les ouvriers. Tout commerce est anéanti. Par conséquent vous avez détruit la moitié des forces réelles du dedans de votre Etat, pour faire et pour défendre de vaines conquêtes au-dehors. (…)Le peuple même (il faut tout dire), qui vous a tant aimé, qui a eu tant de confiance en vous, commence à perdre l'amitié, la confiance, et même le respect. (…)Si le Roi, dit-on, avait un cœur de père pour son peuple, ne mettrait-il pas plutôt sa gloire à leur donner du pain, et à les faire respirer après tant de maux, qu'à garder quelques places de la frontière, qui causent la guerre ? (…) Les magistrats sont contraints de tolérer l'insolence des mutins, et de faire couler sous main quelque monnaie pour les apaiser ; ainsi on paye ceux qu'il faudrait punir. Vous êtes réduit à la honteuse et déplorable extrémité, ou de laisser la sédition impunie et de l'accroître par cette impunité, ou de faire massacrer avec inhumanité des peuples que vous mettez au désespoir en leur arrachant, par vos impôts pour cette guerre, le pain qu'ils tâchent de gagner à la sueur de leurs visages. " 

[14] Politique tirée des propres paroles de l´Écriture Sainte, livro III, artigo 3 : “L´autorité royale est paternelle et son propre caractère c´est la bonté”  T(exto do site Gallica, da Biblioteca Nacional de Paris.
[15] Leviathan, cap. XX: “Of dominion paternal and despotical”.
[16] The King's Speech to the Parliament at Whitehall, 21 March, 1610 “.The state of Monarchy is the supremest thing upon earth; for kings are not only God's lieutenants upon earth and sit upon God's throne, but even by God himself they are called gods. There be three principal similitudes that illustrate the state of Monarchy: one taken out of the Word of God and the two other out of the grounds of policy and philosophy. In the Scriptures kings are called gods, and so their power after a certain relation compared to the Divine power. Kings are also compared to the fathers of families, for a king is truly parens patriae, the politic father of his people. And lastly, kings are compared to the head of this microcosm of the body of man.Kings are justly called gods for that they exercise a manner or resemblance of Divine power upon earth; for if you will consider the attributes to God you shall see how they agree in the person of a king. God hath power to create or destroy, make or unmake, at his pleasure; to give life or send death; to judge all, and to be judged nor accomptable to none; to raise low things and to make high things low at his pleasure; and to God are both soul and body due. And the like power have kings: they make and unmake their subjects; they have power of raising and casting down; of life and of death; judges over all their subjects and in all causes, and yet accomptable to none but God only. They have power to exalt low things and abase high things, and make of their subjects like men at the chess, a pawn to take a bishop or a knight, and to cry up or down any of their subjects as they do their money. And to the King is due both the affection of the soul and the service of the body of his subjects….
As for the father of a family, they had of old under the Law of Nature patriam potestatem, which was potestatem vitae et necis, over their children or family, (I mean such fathers of families as were the lineal heirs of those families whereof kings did originally come), for kings had their first original from them who planted and spread themselves in colonies through the world. Now a father may dispose of his inheritance to his children at his pleasure, yea, even disinherit the eldest upon just occasions and prefer the youngest, according to his liking; make them beggars or rich at his pleasure; restrain or banish out of his presence, as he finds them give cause of offence, or restore them in favour again with the penitent sinner. So may the King deal with his subjects. the power of directing all the members of the body to that use which the judgment in the head thinks most convenient. It may apply sharp cures or cut off corrupt members, let blood in what proportion it thinks fit and as the body may spare; but yet is all this power ordained by God ad aedificationem, non ad destructionem. For although God have power as well of destruction as of creation or maintenance, yet will it not agree with the wisdom of God to exercise his power in the destruction of nature and overturning the whole frame of things, since his creatures were made that his glory might thereby be the better expressed; so were he a foolish father that would disinherit or destroy his children without a cause or leave off the careful education of them; and it were an idle head that would in place of physic so poison or phlebotomize the body as might breed a dangerous distemper or destruction thereof.” Documento integral em J. R. Tanner : Constitutional Documents of the Reign of James I: A. D. 1603-1625 (Cambridge University Press, 1952), pp. 15 e ss.
[17] Robert Filmer: Patriarcha, or the natural power of kings (www.constitution.org/eng/patriarcha.htm - 149k), também a edição bilingüe inglês /espanhol: Patriarca o el poder natural de los reyes y Locke, Primer libro sobre el gobierno. (Madrid, Instituto de Estudios Politicos, 1966).
[18] “O rei pai, em Hobbes ou Bossuet, metaforiza essencialmente a dominação natural sobre o povo criança e, em Fénelon, a proteção naturalmente devida a este último”. P. Rozeaud: “Polemiques autour de l ´image du roi (1670-1685)” in Colloque de Strasbourg, 25-27 mai 1983, Société d´etude du XVIIe siècle. L´Image du Souverain dans les Lettres françaises, des guerres de religion à la revocation du Édit de Nantes.  (Paris, Klincksieck, 1985), p. 229. E também o escrito de Charles Hersent, La souveraineté du roi à Metz (Paris, Th. Blaise, 1632) que suscita o seguinte comentário: Hersent “distingue segundo Bodin (…) a soberania dos ´simples príncipes´ que dependem de uma república ou estado popular do qual são ´os primeiros magistrados e funcionários´ em vez de senhores absolutos; os ´príncipes súditos´vassalos de um rei seu suzerano; os ´monarcas senhores´, proprietários de suas terras cujos súditos são os meeiros, enfim a quarta forma de soberania, a mais legítima em termos de commando, ´é uma potência soberana e independente, à qual segundo Aristóteles, guarda algo da potência de um pai sobre os filhos; pore la, o principe não atribui a si mesmo a propriedade do bem mantidos pelos súditos, mas se contenta com a obediência à sua pessoa e de algum tributo. Tal é hoje a soberania de nossos reis” Citado por Jacques Hennequin, “Images du Prince dans l ´oraison funèbre”, mesmo volume do Colloque de Strasbourg, p. 47.
[19] Cf.Joel Cornette, op. cit. p. 29. O romantismo político, em especial sua vertente contra-revolucionária, abusou deste vínculo amoroso entre o rei, pai de família, e o povo. Analisei este ponto em Conservadorismo romântico, origens do conservadorismo (São Paulo, Ed. Unesp, 1997, 2ª ed.).
[20] Gabriel Naudé : Iugement de tout ce qui a esté imprimé contre le cardinal Mazarin, depuis le sixième Ianvier, iusques à la Declaration du premier Avril mil six cens quarante-neuf. Uso o texto do site Gallica  http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k57698w