terça-feira, 11 de maio de 2010

De Rerum Natura...

quarta-feira, 12 de Maio de 2010

O BINÓMIO DE NEWTON. VERDADE E SOCIEDADE

Post convidado de Guilherme Valente, editor da Gradiva:

Sou amigo de Guilherme Valente,
mas sou mais amigo da verdade.


Guilherme Valente

O que Aristóteles disse foi: «Sou amigo de Platão, mas sou mais amigo da verdade.» A variação que introduzi na epígrafe pretende traduzir uma necessidade e uma exigência e suscitar coragem, que me parecem cada vez mais imperativas nestes tempos da moda pós-moderna e relativista que vivemos.

E escrevi o que hoje é óbvio. De facto, a exigência de verdade, que devemos cultivar, tem de começar por incidir sobre nós próprios, sobre as nossas próprias convicções. E temos de ter coragem para assumir a verdade a que pensamos ir chegando. Um dos ideais da cultura clássica grega exprimia-se na exortação: «Sê (em cada momento) tu próprio.» Isto é, assume o que és realmente, não traias o que realmente pensas e sentes. Noutros contextos históricos houve gente que para ser igual a si própria precisou de muito mais coragem do que agora precisaríamos. Convém acrescentar ainda, claro, citando Confúcio, que só não mudam os burros ou... a pessoa mais inteligente do mundo.

Esta exigência de verdade, que deve começar relativamente às nossas próprias ideias, é o cerne da investigação na física e na matemática, nas ciências dignas desse nome. É a essência da cultura científica (é neste sentido que costuma dizer-se que o cientista procura o erro). Por isso me pareceu tão decisivo promover a cultura científica num país como o nosso, em cuja história o método da ciência, a sua exigência de objectividade, de rigor, de verdade, tão pouco se fizeram sentir.

Numa bela fórmula, Carl Sagan definiu o espírito científico como a atitude de máxima abertura perante todas as ideias, velhas ou novas, e de máximo rigor crítico na análise de todas elas. Antes de mais — está implícito, mas sublinho-o — das nossas próprias ideias.

É esta a atitude que o cientista a sério pratica e exercita, em primeiro lugar relativamente ao seu próprio trabalho, às suas próprias intuições e teorias. Só com esse espírito, que é um método, fará avançar a ciência, aproximará mais da verdade o património inestimável do conhecimento universal. Pelo menos da verdade no mundo natural, mas recordo que S. Tomás de Aquino considerava o conhecimento da Natureza um contributo para a compreensão da revelação divina. E João Paulo II, na encíclica A Fé e a Razão, escreveu que «quanto mais o homem conhece a realidade e o mundo (…) nele se torna cada vez mais premente a questão do sentido das coisas e da sua própria existência».

Esta atitude de abertura e de exigência crítica é também, claro, a atitude que cada cientista tem de exercitar em relação ao trabalho dos outros cientistas. Infelizmente nem sempre assim acontece, como se sabe, porque uma coisa é a ciência e outra os cientistas, do mesmo modo que uma coisa é a religião e outra os religiosos.

A resistência aos grandes avanços da ciência não vem dos leigos. Vem sim, como é natural, durante algum tempo (quantos anos esperou Einstein para ver confirmada e aceite a sua teoria?), da surpresa e da dificuldade de entender a ruptura da novidade. Mas vem também, infelizmente, dos pares a quem a novidade ultrapassa, que se sentem diminuídos por ela (injustificadamente, claro, porque não pode ser outro o caminho do progresso científico, em que não deve haver concorrência, mas sim emulação). E vem também, como se sabe, de interesses prejudicados por novas aplicações dos resultados alcançados. Mas a força da verdade e a paixão da descoberta acabam sempre por se impor. O desejo de conhecer está inscrito na natureza do Homem, é o destino dos seres humanos.

O abade Pierre, uma das grandes figuras liberais da Revolução Francesa, dizia: «Promovam a ciência e estarão a promover a liberdade.» A ciência, por se alimentar da verdade, precisa de liberdade. E por sua vez alimenta-a.

Essa atitude autocrítica e crítica, essa atitude de verdade que é condição da ciência, não deverá ser generalizada, não deverá informar toda a sociedade? Não deve ser esse, por exemplo, o exercício permanente dos políticos, nas suas decisões e na sua relação com os cidadãos? Não deve ser essa a atitude de todos nós?

É que, além de uma superior dimensão ética e moral, a verdade tem ainda uma mais que evidente dimensão, um mais que evidente valor e efeito sociais. Ela é também condição da confiança. A ciência, a democracia e o desenvolvimento emergiram e floresceram juntos na história.

O amor à verdade, a prática da verdade, não são, assim, apenas indicadores do carácter, da saúde moral, de uma sociedade e de um país. São também um indicador da sua prosperidade.

Guilherme Valente