domingo, 30 de Maio de 2010
Mas, o que são as humanidades?
Na continuação de textos anteriores - O fim das humanidades, de Eugénio Lisboa, e A segunda lei da termodinâmica, de Carlos Fiolhais - deixo aqui um texto de Fernando Savater sobre a (falsa) dualidade humanidades - ciências.
"No campo da educação, um fantasma é o hipotético desaparecimento das humanidades dos planos de estudo, substituídas por especialidades técnicas que mutilarão as gerações futuras da visão histórica, literária e filosófica, imprescindível para o cabal desenvolvimento da plena humanidade (…).
A questão merece ser considerada com alguma detenção, porque a própria reflexão sobre o ensino que queremos ou que recusamos nos obriga também a meditar sobre a qualidade da própria cultura em que hoje nos inserimos. Em certo sentido, o temor parece bem justificado. Os planos de ensino em geral tendem a reforçar os conhecimentos científicos ou técnicos que, supostamente, terão uma utilidade prática imediata, isto é, uma aplicação laboral directa.
A inovação permanente, aquilo que é uma descoberta recente ou tudo quanto abre passagem para a tecnologia do futuro gozam do maior prestígio, enquanto a rememoração do passado ou as grandes teorias especulativas soam a pura perda de tempo. Há algum cepticismo sobre tudo o que se apresenta aspirando a uma concepção global do mundo.
Essas pretensões totalizantes já, muitas vezes, derivaram para o totalitarismo e em qualquer caso estão sempre sujeitas a controvérsias intermináveis que o afã politicamente correcto do dia‑a‑dia prefere deixar abertas para que cada qual escolha a seu gosto (...).
(...) nalguns países como a Espanha, onde um clero propenso ao dogmatismo monopolizou até há pouco tempo a oferta pedagógica, a plétora de letrados versados em logomaquias contrasta tristemente com a escassez de investigadores científicos capazes, parece lógico que as autoridades educativas, que se consideram progressistas, decidam que chegou o momento de inverter esta proporção (…).
Mas, o que são as humanidades?
Suponho que ninguém sustente a sério que estudar matemáticas ou física sejam tarefas menos humanistas, não digamos menos «humanas», que dedicar-se ao grego ou à filosofia. Nicolau de Siracusa, Descartes, Voltaire ou Goethe teriam ficado pasmados ao ouvir hoje tamanho disparate na boca de um literato pedante, daqueles que repetem vacuidades sobre a técnica «desumanizadora» (…).
A separação entre cultura científica e cultura literária é um fenómeno que só se inicia nos finais do século passado, para de imediato se consolidar no nosso, dada a impossibilidade de abarcar saberes cada vez mais técnicos e complexos, que desafiam as capacidades de qualquer indivíduo, impondo a especialização, que não é mais do que uma forma de renúncia. A seguir assiste-se à necessidade de encontrar a virtude, clamando os literatos contra a quadrícula desumana da ciência, enquanto os cientistas zombam da ineficácia palavrosa dos seus adversários. O certo é que esta hemiplegia cultural é uma novidade contemporânea, não uma constante necessária e que encontraria poucos adeptos — se acaso encontrasse algum — entre as figuras mais ilustres da nossa tradição intelectual.
Diz‑se que as faculdades que o humanismo pretende desenvolver são a capacidade crítica de análise, a curiosidade que não respeita dogmas nem ministérios, o sentido de raciocínio lógico, a sensibilidade para apreciar as mais altas realizações do espírito humano, a visão de conjunto, face ao panorama do saber, etc.
Francamente, não conheço nenhum argumento sério para provar que o estudo do latim e do grego favoreçam mais estas desejáveis qualidades que o estudo da matemática ou da química.
Apresento estes exemplos, para poder falar com total imparcialidade, porque sempre fui igualmente incompetente no estudo dessas quatro disciplinas. Sem duvidar do interesse intrínseco de nenhum desses saberes, como estabelecer que é mais humanamente enriquecedora a filologia das palavras que a ciência experimental das coisas?
Considero de grande valia estar prevenido de que as doenças «venéreas», por exemplo, nada têm que ver etimologicamente com as veias, assim como conhecer a lenda mitológica da amável deusa a que devem o seu nome, mas tão‑pouco me parece ser de desdenhar informar-me sobre a desordem fisiológica que tais doenças provocam, assim como a composição activa das substâncias capazes de remediá‑las. Duvido que do ponto de vista do interesse estritamente cultural (a força espiritualmente emancipadora) a primeira aprendizagem seja superior à segunda e, de imediato indignar‑me-ia ver menosprezar esta sua condição mais «prática» ou «técnica».
Quanto à filosofia, cujo conteúdo me é mais familiar, desconfio também de que tenha per se virtudes especiais para configurar personalidades críticas ou insubmissas face aos poderes deste Mundo. Quando oiço os estudantes ou os professores da minha corporação denunciar como atentados governamentais contra o pensamento livre qualquer redução do horário das disciplinas filosóficas no bacharelato, não posso deixar de sentir uma certa incomodidade (…).
A questão das humanidades não se baseia primordialmente, quanto a mim, no título das matérias que vão ser ensinadas, nem no seu carácter científico ou literário. Todas são úteis, muitas são oportunas e há‑as imprescindíveis… sobretudo na opinião dos professores cujo futuro laboral depende delas."
Referência completa: Savater, F. (1997). O valor de Educar. Lisboa: Edições Presença (A obra foi republicada pelas Edições Dom Quixote em 2006).