"O instrumento mais flexível do universo é a espinha dos intelectuais" (Roberto Romano, Caros Amigos). Outro artigo antigo...abaixo.
Jornal da Ciência e-mail 2371, de 24 de Setembro de 2003.
Sacrifício do intelecto, artigo de Roberto Romano
A tradição oficialista ordena que as espinhas se curvem, sempre que um novo inquilino se instala no poder
Roberto Romano, professor titular de Ética e Filosofia Política na Unicamp, autor de 'Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII' (Ed. Senac, SP), membro do Conselho Editorial do 'Jornal da Ciência'. Artigo publicado na 'Folha de SP':
As zumbaias que parte dos setores universitários entoa para o governo federal, o silêncio diante da truculência nos cortes no setor de educação e de C&T, os acordos travestidos de 'negociações políticas' que cooptam muitos intelectuais lembram os ritos que impeliram pessoas brilhantes como Martin Heidegger ao louvor do autoritarismo.
As verbas são parcas e o verbo livre torna-se mercadoria rara e caríssima, paga com a segregação e o anátema. 'Não há sacrifício do intelecto que satisfaça às insaciáveis exigências da falta de espírito' (Theodor W. Adorno).
Estas frases ecoam as advertências de Max Weber sobre a ciência enquanto vocação, texto que deveria ser obrigatório nas Universidades brasileiras.
O sacrifício do intelecto é exigido pelas igrejas e partidos políticos, mas também molda as seitas universitárias. O lado ritual da coisa surgiu no passado remoto, pois os deuses têm fome de corpos humanos, sobretudo da caixa onde se aloja o cérebro.
Mas a exigência de abandonar idéias em função de cargos estatais, ministérios eclesiásticos, prestígio acadêmico é recente. Ela vem com o nascimento de refinadas burocracias, a secular e a espiritual.
Nelas se concentraram nos dirigentes o poder de exigir que dogmas sejam impostos e assumidos pelos subordinados. A regra de ouro para a seleção dos funcionários encontra-se na submissão aos preceitos verticais do mando.
Veleidades de autonomia noética trazem anátemas, silêncios, solidões. Espinosa conhecia tal prisma ao recusar a cátedra de Heildelberg.
O príncipe pediu-lhe 'apenas' o sacrifício de não incomodar as verdades religiosas. 'Desconheço limites para a minha liberdade de pensar.' Agraciado com os vitupérios de políticos e de reverendos, o pensador escreveu a mais rigorosa ética moderna.
Antes da Revolução Francesa, a igreja exigiu de seus pensadores a plena alienação intelectual.
No século 18, o papa Clemente 13, temendo o laicismo e o pensamento ateu, redigiu a encíclica 'Quantopere Dominus Jesus', dizendo aos fiéis que a fome da verdade é natural, mas que o espírito santo deseja que ela seja refreada.
E ordenou o pontífice que as pesquisas fossem até os limites permitidos pela autoridade religiosa.
Graças às críticas do cardeal Passionei, o documento não foi publicado. O mundo católico ainda não era refém da burocracia curial. Mas logo vieram a 'Quanta Cura' e o 'Syllabus', que proibiram o pensamento autônomo e denunciaram a 'liberdade de perdição'.
Para fugir daqueles pecados, só o sacrifício do intelecto. Estavam prontas as bases para o reinado do cardeal Ratzinger e de João Paulo 2º.
No Estado, desde o Termidor, passando pela censura napoleônica e chegando ao totalitarismo do século 20, a norma foi a renúncia ao intelecto pessoal. E surgiu a cultura dos militantes com a sua lógica ensandecida. Tal imposição une-se à exigência do silêncio obsequioso.
Immanuel Kant sofreu a censura e, segundo Domenico Losurdo, internalizou-a. Ao contrário de Espinosa, o 'chinês de Konigsberg' valorizava a cátedra e já estava imbuído do espírito burocrático universitário. Liberdade, para ele, apenas fora do mundo oficial.
Lyssenko foi um caso espetacular de sacrifício do intelecto somado ao silêncio obsequioso dos cientistas soviéticos e ocidentais que ajudaram Stálin.
Sem os dois elementos, muito certamente a política socialista conheceria outros rumos. Mas a tolice do governante foi aplaudida pelos acadêmicos, o que os tornou mais culpados do que o próprio autocrata.
No Brasil, a crítica recebe veto perene. A tradição oficialista ordena que as espinhas se curvem, sempre que um novo inquilino se instala no poder. A crítica e a oposição constituem mau gosto e devem ser banidas dos campi e dos laboratórios.
Quando Fernando Henrique presidia o país, escrevi, nesta coluna, um artigo intitulado 'O PT e a dignidade da oposição'. Nele, criticava autoridades que ironizavam aquele partido.
Hoje, noto que a mente dos que ocupam o poder é a mesma. A forma é petista, mas o conteúdo tem o sabor do oficialismo.
Na época, a imprensa e os intelectuais eram valiosos para o PT. Hoje, com verbas imensas e Duda Mendonça, quem no governo precisa de crítica?
Apagar o que se produziu é o primeiro passo para a boa acolhida entre os cortesãos. E pobre de quem ergue a espinha e a face! Enquanto essa mentalidade imperar entre políticos e universitários brasileiros, vários Lyssenko serão paridos entre nós.
Pensamento e ciência são riquezas que não podem ser alienadas, por mais sublime que seja a 'causa' alegada. O respeito pela diferença integra a democracia.
Quem recusa esse ponto, adestra-se para aceitar com louvores os piores golpes contra os cidadãos. Silêncios obsequiosos e sacrifício do intelecto geram apenas servilismos, como assistimos em nosso país desde o século 16.