sábado, 29 de maio de 2010

Uma aula inaugural...

Aula Inaugural (1999) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Roberto Romano

Caros estudantes : bem vindos à universidade. Neste setor da vida humana, os senhores encontram o mundo em miniatura, com as suas dores e alegrias, belezas e faces hediondas, elevações do espírito e pequenez contábil. Caros estudantes, os campi, em especial os brasileiros, podem ser definidos, pilhando a frase de Pope, como "a vergonha e a honra" da sociedade. Apesar de todas as mazelas, as escolas superiores podem efetivar a pesquisa sobre o verdadeiro, o belo, o bom. Agindo assim, é possível desvelar os truques que nos impingem a mentira oficial e afastam nossos corações da bondade. Os campi não se limitam aos lados negativos da existência. Eles nos conduzem ao sublime. Nesta vossa estréia nos assuntos acadêmicos, quero indicar as bases filosóficas da pesquisa, de modo a vos dizer a causa de sua defesa, pelos docentes que ainda não se reduziram a meros funcionários do espírito.

Os senhores entram para a universidade moderna, sabendo que ela se encaminha rumo a um tempo em que, talvez, a própria essência universitária será transfigurada pelas revoluções científicas e tecnológicas, sobretudo no campo das comunicações e da informática, da cibernética e de outros progressos culturais. Recordo que mesmo numa sociedade alterada até às suas bases, nela, nos próximos anos habitarão seres humanos dotados de cinco sentidos. É a semelhantes entes que a pesquisa será dirigida. Através deles, ela receberá sentido e funcionamento. Não irei apresentar sobremodo, como o solicitado pela Reitoria que me honrou com o convite para esta aula, não tanto as bases do futuro, mas pressupostos incluídos nos conhecimentos que definirão a face humana nas próximas décadas. Tenho procurado exorcizar, em meus livros, a paixão romântica do futuro, a qual possibilitou, em importantes movimentos renovadores da sociedade, o esquecimento de um presente horripilante.

Em 1930 escrevia Roman Jakobson, grande lingüista e teórico da literatura, russo de origem e universal no trabalho do espírito : "Lançamo-nos em direção ao futuro com excessivo ímpeto e avidez para poder salvaguardar algum passado. O laço dos tempos rompeu-se. Vivemos demais no futuro, nele pensamos demais, acreditamos nele, não temos mais a sensação de uma atualidade que se baste a si mesma, perdemos o sentimento do presente...".() Quem assim escreve, testemunhou o fim dos sonhos igualitários e democráticos, e sua traição por "realistas" que exerceram uma das mais duras tiranias políticas da história humana, na extinta União Soviética, hoje Federação Russa, país dominado pelo medo. O futuro, alí, se reduziu ao passado miserável. A mentira ideológica expõe nossa pátria, até hoje, como terra do futuro, enquanto entre nós impera o pretérito em figurações fantasmagóricas de oligarcas, coronéis e oportunistas, com as mais variadas máscaras. Antes de rumar para o que virá, no imaginário, vejamos, em largos traços, o que formou nosso pensamento até hoje. Reflitamos sobre a pesquisa, o coração de uma universidade digna deste nome.

Consideremos a metáfora do olhar, que definiu a própria idéia de pesquisa antes e durante a idade moderna e discutamos as modificações daquele pensamento, a partir do século 18. Inicio o percurso em Platão. No grande texto platônico sobre a cosmologia, o "Timeu", ocorre o nexo entre a atitude de busca sapiente e o sentido da vista. O termo para indicar pesquisa é "zetesis" (indagação, investigação, procura). No "Timeu" (47 A) , lemos ser a visão "a causa do maior benefício em nosso favor, sobretudo porque todas as narrativas sobre o universo jamais poderiam ocorrer, caso o homem não tivesse enxergado as estrelas ou o sol ou o céu. Mas (...) a visão diurna e noturna e a dos meses e dos anos circulares produziu a arte do número e nos deu não apenas a noção do tempo, mas também a da pesquisa da natureza inteira". (2)

Neste plano, para grande parte do pensamento grego, os olhos são a origem da investigação. Eles penetram os infinitos aspectos do cosmos e ultrapassam os espaços, recolhendo o tempo e possibilitando, com a ciência dos números e da geometria, a base para o conhecimento. Comunicar algo sobre estas experiências é tarefa difícil, pois exige que se tenha o domínio de cada um de seus momentos, desde a vista clara até a força para captar ou definir medidas, com as matemáticas.

A busca do saber em todos os planos é tarefa que se inicia e se realiza com os olhos. A palavra "teoria", o exercício do olhar da inteligência, surge na raiz deste conceito de pesquisa e de sua comunicação. Tudo pode ser alvo de busca, mas na marcha do conhecimento existem níveis, tanto no que é procurado, quanto no modo de o adquirir.

Na "República" (VI, 508 e), se enuncia semelhante doutrina sobre o saber na boca de Sócrates : "Do mesmo que no mundo visível temos razão de pensar que a luz e a vista (ópsis) têm analogia com o sol, mas não poderíamos tomá-las pelo sol, assim também no mundo inteligível, temos razão de acreditar que a ciência (epistême) e a verdade (aletheia) são uma e outra semelhantes ao Bem, mas erraríamos se acreditássemos que uma ou outra fosse o Bem; pois é preciso elevar ainda mais a natureza do Bem".

Esse valor da vista e da pesquisa que a ela se liga, supõe a tese de que a verdade atingida pela investigação encontra-se no que é permanente, estável. As coisas sensíveis, instáveis e fugidias, não trazem veracidade e nem podem ser dignas de ciência. (3) Os cinco sentidos humanos perdem, nesta forma de pensamento, importância diante do olhar. O imperialismo visual dificilmente pode ser extraído de todas as elaborações intelectuais produzidas no Ocidente. Note- se que me refiro ao Platão ensinado nas escolas atualmente. Existem pesquisas que negam semelhante privilégio de um sentido sobre os outros nos textos platônicos. Mas nos referimos ao tipo de apropriação seletiva das teses do grande filósofo.

Conhecimento é visão correta, não das coisas perecíveis, o que é próprio da opinião, mas da parte mais luminosa do ser, o Bem. Na "Carta VIIa", texto controvertido, Platão afirma, contra os que julgam fácil comunicar o saber através de escritos com vistas à divulgação, que a ciência, adquirida através de uma ascese rigorosa, só pode ser captada por quem a exerce de fato. "Todas estas pessoas", adianta o filósofo, "que afirmam ter conhecimento das questões às quais eu me dedico, bem como os que pretendem ter sido meus ouvintes ... nada entendem do assunto. Não existe escrito meu, e nunca existirá, sobre isto. Trata-se de um saber que, à diferença de outros, não se pode formular, de modo algum, em proposições. Ele resulta de um comércio repetido com a matéria mesma deste saber, de uma partilha repetida com ela. De repente, como se acende uma luz e, ao brotar a chama, este saber é produzido na alma e, doravante, alimenta a si mesmo". (4)

Só quem faz ciência capta a luz dos conhecimentos. Para isto, o sábio possui, entre muitas habilitações, a força de sintetizar os elementos da pesquisa. Ele é um "sinótico" (5) capaz de ver o todo, e não apenas as parcelas da investigação.

A cultura da visibilidade sobreviveu perfeitamente, contra o com o barulho da retórica e da fala sem peias. Os efeitos da arte da persuasão e do palavrório, segundo Heidegger, são encontrados na falta de sentido cada vez maior, especialmente nos meios de massa. Os jornalistas e acadêmicos que se jogam na tarefa de persuadir a massa, são dignos herdeiros da sofística e da retórica demagógica que dominaram a Grécia antiga e da cultura que privilegiou os olhos como instrumentos teórico e teatral. Mas voltemos ao olhar. Ele está presente ao mesmo tempo na palavra que define o saber, e num de seus modos de aquisição, o ato de intuir idéias e conceitos.

"Desde a Antigüidade até Kant e Hegel" diz Heidegger, "a intuição representa o ideal de todo conhecimento". O termo usado por Heidegger, "Anschauung" corresponde à "theoria" grega e ao "intuitus" latino, o golpe de vista. Tal referência une-se ao pensamento especulativo, especular. "Intuitus", ato de olhar, se nota diretamente na idéia da mente como espelho, "intuitio" sendo a imagem o refletido. "Speculator", o pesquisador que observa, compartilha o mesmo vocábulo de "espião". "Intueor" marca o olhar atento, o fato de observar, penetrando as coisas.

Em Descartes, por exemplo, a intuição desempenha papel essencial no conhecimento. Aquele pensador distingue entre dedução e intuição. A segunda seria própria à "inteligência pura e atenta".(6) A dedução sendo "tudo o que se conclui necessariamente de certas outras coisas conhecidas com certeza". (7)

Em Kant, na "Critica da Razão Pura", lemos que "de qualquer modo e através de qualquer meio que um conhecimento possa relacionar-se com os objetos, o modo pelo qual ele se relaciona imediatamente aos objetos e para o qual tende todo pensamento enquanto meio é a intuição". E temos o batido símile kantiano, para o nexo entre sensibilidade e intelecto : "pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas". Deste modo, o conhecimento é um olhar que pensa, reflete.

Em Hegel, leva-se ao máximo refinamento esta metáfora optica. A vista não deve, pensa Hegel, para captar o movimento do mundo e dos homens, ser limitada a um dos componentes do real. "A pura luz e a pura obscuridade são dois vazios idênticos. Só na luz determinada -e a luz é determinada pela obscuridade- e portanto só na luz turva pode-se distinguir algo. Assim como só na obscuridade determinada -e a obscuridade é determinada por meio da luz- e portanto na obscuridade iluminada, é possível determinar algo."(8) Hegel conduz a metáfora do espelho ao seu nível mais complexo, sem romper com ela. A especulação, ainda na "Ciência da Lógica", significa "compreender o oposto na sua unidade" , mas esta última, a síntese, suscita o seu oposto, num movimento de espelho : "do aparecer reflexivo, quer dizer, do espelhar recebe o speculari (speculum: espelho) sua suficiente determinação", diz Heidegger. (9)

O pensamento erra, buscando para além do mundo sensível as determinações certas e válidas desde sempre. Quando capta o verdade, o faz através da intuição, a vista imediata do essencial. O pesquisador, neste ponto, passa ao conhecimento .

Tomo um primeiro desvio neste itinerário, um obstáculo já denunciado por Platão. Refiro-me ao fato de que "olhar" pode adquirir um sentido que não se coaduna com o bem, muito pelo contrário. Nos olhos encontram-se duas formas de atenção ao que se apresenta diante de nós: a pesquisa (zetesis) e a curiosidade, a chamada "polypragmosine".

Enquanto o "zetetés", o investigador, usa os olhos para captar o permanente, atingindo um conhecimento dificilmente comunicável, o curioso atarefado recolhe informações sobre tudo e todos, sobretudo das coisas e atos sem relevância para o Bem. Ao redor da mesma imagem, vemos se produzir, na crítica do conhecimento e da moral, duas atitudes diferentes diante do mundo. A mais completa análise da "polypragmosine" encontra-se num tratado de Plutarco, com este nome. (10)

A mente curiosa, afirma Plutarco, um médico que também se dedicou à cura de outras doenças da alma, se limita ao palavrório. Ela é como a Lâmia mitológica. "Quando dormia em sua casa, ela depositava os olhos num vaso. Saindo, Lâmia os colocava em seu rosto e podia ver". Todos os homens, quando não se dedicam à pesquisa e à virtude, são Lâmias. Segundo Plutarco, "cada um de nós...põe sua indiscreção em sua maldade como num olho, esquecendo as próprias faltas e taras por ignorância (agnóia), porque não tem o meio de vê-las e de esclarece-las". (De Curiositate, 2).

A pesquisa leva ao descobrimento de tudo, trazendo para a luz dos olhos as formas permanentes das coisas. A curiosidade também procura tudo revelar, sobremodo no plano ético. "A curiosidade", adianta Plutarco, "é a paixão de se conhecer o escondido e o dissimulado. Mas ninguém esconde o bem que possui. Às vezes nos atribuímos um bem que não temos. O curioso, em seu desejo de saber o que vai mal entre os demais, é tomado pela paixão da maldade, irmã da inveja e da calúnia. Porque a inveja é a tristeza causada pelo contentamento alheio e a maldade é alegria pela sua infelicidade. Ambas nascem de uma cruel paixão, a ruindade" (De Curiositate, 6).

Plutarco tem uma cura para a curiosidade : a própria pesquisa. Quem se acostumou ao mal curioso, deve curá-lo, de modo homeopático, com ele mesmo. A cura consiste em "transferir a curiosidade, transformando-a em gosto da alma por assuntos honestos e agradáveis". E arremata Plutarco : "seja curioso do que se passa no céu e na terra, nos ares e no mar (...)Pesquise (zétei) as fases da lua, imagem das variações humanas (...) Estes são segredos da natureza, e esta não se enraivece porque eles são roubados...Seja curioso para saber como as plantas são sempre verdes e floridas...". (De Curiositate, 5).

Desde o século 16, com a Renascença, os procedimentos ao redor do método se beneficiaram de uma saudável desconfiança no olhar, na teoria. (11) No século 18 sobretudo, se determinou uma nova representação do espaço, não estritamente platônica. Isto conferiu ao espectador, "uma liberdade que antes não era pensável. Este como que se liberta do seu lugar no espaço e pode agora jogar com ele, colocando-se em todos os lugares, adotando as pespectivas e pontos de vista que lhe aprouver (...) A optica moderna autonomiza-se face à visão enquanto tal e passa a conceber-se como ciência objetiva da luz, a qual encontra na geometria a linguagem adequada e segura. Esta ruptura da solidariedade entre a visão e o visível invoca a distinção entre o fenômeno da consciência e a sua causa exterior, correlata, no plano optico, da distinção (...)entre sujeito e objeto" do saber. (12)

Os olhos humanos não servem mais como paradigma do verdadeiro. Novos instrumentos opticos ampliam cada vez mais a própria visão, corrigindo-a. Já Francis Bacon louvou as "próteses opticas" , o telescópio, o microscópio, instrumentos destinados a corrigir a vista. Assim, os olhos deixam seu papel hegemônico, e sofrem a concorrência dos outros sentidos. Em I. Kant e na filosofia das Luzes, especialmente na escrita de Denis Diderot, a vista é corrigida pelos demais sentidos. Isto ampliou desmesuradamente a necessidade e a importância da comunicação dos saberes.

Herder é um grande pensador do século 18, com importância reconhecida até hoje. Ele notava o seguinte: cada um dos nossos sentidos "tem a sua linguagem específica, os seus sinais, os seus tipos e esquemas. E, com eles, também um diferente potencial de conhecimentos e de mobilização afetiva. Cada sentido tem a sua ontologia específica. Sendo o mais universal e o mais amplo dos sentidos, a vista tem contudo as suas limitações. Depende das condições da luz e da visibilidade. Mas onde falha a luz e a visão resta ainda lugar para outras modalidades da percepção humana".(13)

Tal doutrina deve-se a Denis Diderot. Contra a metáfora optica (teórica), Diderot escreveu a "Carta sobre os Cegos", texto nuclear na moderna demolição da metafísica. O pressuposto da "zetesis" com base visual, era a permanência do objeto verdadeiro. Só o que é e sempre será, pode ser pesquisado. A curiosidade, outro lado do sentido visual, o ruim,encarrega-se dos acontecimentos mutáveis e das coisas distantes do Eterno. Isto requer a tese complementar da harmonia fundamental da natureza e da sociedade humana.

Diderot recusa ao mesmo tempo o símile optico para o conhecimento e a idéia de ordem para o mundo físico ou humano. Segundo ele, no princípio e no fim do conhecimento e da ação reside o caos.

"O sentido da vista é o mais superficial", diz a "Carta sobre os cegos", um enunciado que fez tremer todos os metafísicos antigos e modernos. Enquanto isto, o tato seria "o mais profundo e filosófico". A economia dos sentidos é modificada de alto a baixo. No mesmo golpe, inverte-se a busca do verdadeiro : não mais o que permanece, ma o que muda, se transforma. "O universo", diz R. Niklaus comentando a atitude filosófica de Diderot, "desde toda eternidade, toma formas diferentes num devir incessante sem começo nem fim, enquanto nosso mundo finito segue lenta mas inelutavelmente rumo ao seu próprio fim numa ´depuração geral´ (...) O presente, o passado, o futuro são apenas a soma do mundo que se torna um com a eternidade. Mesmo para nós, há uma espécie de eternidade. Como diz Diderot numa Carta a D´Alembert, ´Vivo, ajo e reajo em massa...morto, ajo e reajo em moléculas´".(14)

É a mesma tese que se enuncia na "Carta sobre os Cegos" : "Que sequência prodigiosa de gerações de efêmeros atesta nossa eternidade! Que imensa tradição! Mas nós todos passaremos, sem que se possa assinalar nem a extensão real que ocupamos, nem o tempo preciso que tivermos durado. O tempo, a matéria e o espaço talvez sejam um só ponto".

Rompe-se, a partir desse momento, outro lado importante da idéia de pesquisa e de ciência fundada na metafísica, o mimetismo especular entre o verdadeiro, captado pela vista, e os demais sentidos. Para Diderot, sobretudo a partir da "Carta sobre os Cegos" e da "Carta sobre os Surdos e os Mudos", não existindo a supremacia dos olhos, os outros sentidos não mais imitam a vista. Não há teoria hegemônica, nem especulativa. O símile do conhecimento como reflexo, como espelho do real, não tem mais razão de ser. É preciso, portanto, a tradução ativa de um sentido para outro.

Já se disse que os trabalhos diderotianos apenas copiam, ou só consistem em plágios de Francis Bacon. Qualquer que seja o juízo sobre este ponto, o fato é que Diderot seguiu as propostas de Bacon sobre o método, e principalmente sua crítica ao empirismo, de um lado, e ao dogmatismo intelectual, de outro. Contra a idéia de intuição, como exposta acima no campo idealista, Bacon mostrou que a visão sinótica em ciência é sempre algo transitório, relativo, a ser modificado justo pelo trabalho do pesquisador. E contra o empirismo, ele indicou que o pensamento conceitual não pode estar alheio ao trabalho empírico. De qualquer modo, a recusa da metáfora optica é concomitante à tese do método onde os dois lados, o conceito e o empírico seriam unidos, sempre de modo provisório e incompleto.

É célebre a imagem do pesquisador, nos textos de Bacon, como símile de animais. O puro empírico, diz ele, é como a formiga : sempre corta e recorta a natureza e os atos humanos, mas nunca os sintetiza de modo a fazer com que o conhecimento avance, sendo inteligível para os demais pesquisadores ou para o público. No outro lado o metafísico, imaginando assegurar-se pela intuição das essências, algo que só ocorre no interior do seu pensamento, sem passar pela empiria, é como a aranha, extraindo de sua própria cabeça, telas operosas e finas, mas que não resistem ao sopro da menor dúvida ou contrariedade. O pesquisador correto, como a abelha, sai de suas próprias certezas, segue para o objeto exterior, o recolhe e o transforma em conhecimentos lógicos e em novos dados empíricos. (15)

Bacon aproxima os pesquisadores dos animais. Estes últimos servem para corrigir erros e desvios do suposto "animal racional". Semelhante atitude, o naturalismo, tem base antiquíssima na cultura filosófica, e ainda vigora no século 18. Com o idealismo do século 19, onde se instaurou uma diferença absoluta entre a subjetividade humana e a dos animais, mesmo um pensador materialista como Karl Marx assumiu que entre a humanidade e o campo animal existe um abismo quase intransponível.

O símile dos animais na doutrina sobre o conhecimento, imagem que relativiza ao máximo a forma optica adotada pela metafísica, vem dos pré-socráticos. Plutarco, retroage a Democrito para rastrear as bases desta imagem. "Talvez sejamos ridículos", diz ele, "quando nos vangloriamos de ensinar os animais. Deles, prova-o Democrito, somos discípulos nas coisas mais importantes : da aranha no tecer e remendar, da andorinha no construir casas, das aves canoras, cisne e rouxinol no cantar". (16)

Karl Marx nega a proximidade entre homens e animais e instala a pesquisa e saber apenas na consciência humana. "Uma aranha" diz ele, "efetua operações parecidas com as do tecelão, e a abelha poderia envergonhar muito arquiteto, com a suas celas. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que o arquiteto constrói a cela na sua cabeça antes de construí-la na cera. No final de todo processo de trabalho, emerge um resultado que já tinha sido concebido na representação do inicio, logo já existiria de modo ideal (ideell)". (17) Uma falha de nosso vocabulário filosófico é não existir, em português algo semelhante a este "ideell" germânico, que também ocorre na lingua francêsa. Ele indicar a diferença entre o que é Ideal, ou seja, estaria diante do olhar desde sempre, e o "ideal", aquilo que está presente apenas em nosso pensamento.

Voltemos a Diderot, e à sua via para retomar o vínculo entre animalidade e humanidade, nisto seguindo o pensamento renascentista e moderno. A metáfora optica só conseguiu se estabelecer como fonte legitimadora do conhecimento, porque era colocado o sujeito humano como um "império dentro do império" natural. Retomando a Renascença, Diderot indicou uma outra senda para a pesquisa.

A comunicação entre os sentidos dos homens, e entre os próprios homens, a partir de Diderot, não pode mais ser reduzida ao nível zero, como na tentativa metafísica. Os ruídos de comunicação representam obstáculos inevitáveis, com as idiossincrasias, os idiotismos. As comunicações -social e somática- correspondem cada uma, a partir de agora, à uma arte. A primeira é inventada pelos homens, a segunda, pela natureza.

Após Diderot, a junção dos sentidos permite dizer que não há mais a idéia de espaço único, mas pelo menos cinco deles : o espaço optico, o tátil, o sonoro, o cinésico, o olfativo. Cada um destes espaços, qualitativamente diferentes, possui estrutura própria no homem. Se os sentidos operam de modos diversos é porque eles são descontínuos. Assim, só é possível a "tradução" de uns aos outros, o que permite captar alguma simultaneidade entre nós e nós mesmos, entre nós e o mundo.

"Nossa alma é um quadro que se move, segundo o qual nós pintamos sem cessar...o pincel executa em longo prazo o que o olho do pintor abarca num só golpe". A partir de agora, é preciso "tatear" a alteridade, a ser conhecida, sob pena de reduzi-la ao idiotismo do sujeito. Este mesmo sujeito, é uma reunião instável de orgãos e de sentidos : "todos os nossos orgãos são apenas animais distintos que a lei da continuidade mantêm numa simpatia, numa unidade, numa identidade geral". O eu, arremata Diderot, "resulta da memória, a qual liga um indivíduo à sequencia de suas sensações".

Deste modo, a pesquisa torna-se muito mais difícil, porque ela supõe capturar a alteridade. Para isto, não é possível partir de um sentido hegemônico, mas da reunião instável de cinco sentidos. Também não é possível partir de um suposto sujeito inteiriço, mas de um sujeito caótico, que se dirige e que recebe mensagens de outros. O pressuposto das trocas de todos os indivíduos humanos é o caos. A ciência e a cultura, deste modo, tornam-se mais exigentes, incertas. Rompe-se com a suposta harmonia, ou o cosmos. A beleza é fruto do ser humano. Não se esqueça que "kosmos" liga-se a "kosméo", que na lingua grega significa "pôr em ordem", aproximando-se também de "enfeitar". Cosmos e cosmético têm fontes comuns. É este belíssimo artifício, ou ilusão, que desaparece com o fim da meta-física no século 18. A beleza, doravante, os seus artifícios, não se encontram no exterior do trabalho humano, mas é seu fruto. O mesmo para o verdadeiro e para o bem.O conhecimento em física, em moral, em política, é atingido, mas o dogmatismo é refutado na sua raiz.

É impossível "resolver", na proposta filosófica de Diderot, os dilemas da pesquisa e de sua comunicação entre os homens. Como a unidade não é originária, mas resulta do trabalho de tradução de um sentido para os outros, o equívoco, os ruídos, sempre existirão. Não por acaso Diderot procurou investigar os surdos e os mudos, além dos cegos. Seu alvo era definir alguns elementos para a tradução dos sentidos. O remédio para a falta de comunicação entre os homens não seria encontrado, pensa ele, fora da cultura, ela mesma resultado de uma arte, a de traduzir o caos em cosmos efêmero, passageiro.

A universidade, nesta linha, permitiria formar o maior número possível de indivíduos numa comunicação com força para reduzir os ruídos ao máximo. Mas para isto, não poder-se-ia esquecer nunca a dificuldade da pesquisa, devida ao elemento caótico. Na sua proposta de universidade para a Rússia, Diderot propõe um campus onde nenhuma arte, e nenhum sentido, nenhuma ciência, poderiam exibir hegemonia. Todos deveriam ser cultivados ao mesmo tempo. E isto leva Diderot à proposta de uma junção entre saber erudito e saber destinado à cidadania. Ele procura aproximar a linguagem comum da utilizada nas universidades : "se queremos que os filósofos sigam em frente, aproximemos o povo do ponto em que os filósofos estão".

Diderot tem plena consciência de que nunca o público e os pesquisadores utilizarão uma só linguagem : "sempre existirão obras acima do alcance comum dos homens" escreve ele. Mas para o filósofo, trata-se mais de saber se convêm dar à filosofia (moral e ciências) "uma linguagem, uma forma, uma expressão que a tornem acessível a todos, ou pelo menos a todos que se interessem por ela ativamente". Diderot, pois, se preocupa com a publicidade do saber.

Mas, antes de tudo, as modificações realizadas por Diderot na economia dos sentidos ajudaram a diminuir as distâncias entre as ciências, as artes, as técnicas. Com os instrumentos que surgiram recentemente na comunicação dos saberes, temos um desequilíbrio acentuado entre os sentidos humanos, novamente em proveito da vista, contra os demais.

Tomemos o caso dos computadores e do livro em CD-Rom, partes estratégicas da chamada "Information Technology". Em pequenos discos podem ser reunidos todos os traços relevantes da cultura humana. Os filósofos, da Grécia aos nossos dias, os artistas, os pesquisadores em todos os ramos da ciência, tudo pode estar disponível, aos olhos dos estudantes e professores, bem como do público em geral. Nada disto seria viável sem o concurso de todos os sentidos.

Voltemos um pouco a Diderot. Este, convicto popularizador do saber, não dispensava a pesquisa mais profunda, por intelectuais, pelo contrário. A sua "Enciclopédia" das ciências, artes e ofícios era "raisonnée". Ou seja, cada um dos artigos podia ser lido pelos que desejavam se introduzir num determinado conhecimento, mas traziam informes preciosos para os eruditos e técnicos. Desta face dupla vem a enorme repercussão da mesma "Enciclopédia" na vida moderna, ao contrário da universidade, presa aos rígidos procedimentos dos especialistas, e da imprensa, comprometida com o efêmero, o que se esvai no cotidiano.

Entre a "Enciclopédia" e o jornal, resistiu o livro como instrumento de pesquisa e meditação sobre ela. Com o CD-Rom ou a Internet com seus recursos, aparentemente, o nexo entre os três tenderia a desaparecer. Digamos que os apologistas do ensino e da pesquisa "do futuro" ainda precisam refrear seu entusiasmo no computador.

Mesmo parasitas econômicos desse instrumento de pesquisa, como Bill Gates, confessam com nitidez a sua insuficiência. Em volume editado em 1995, escrito com a ajuda de um físico e filósofo, Natan Myhvold, e de um jornalista, Peter Rinearson, confessa Bill Gates: "O livro, a revista ou o jornal baseados no papel ainda tem vantagens diante do seu correspondente digital. Para ler um documento digital ocorre uma aparelhagem informática como o PC, em confronto com o qual um livro é pequeno, leve, com alta resolução e com baixo custo". Deste modo, "para serem amplamente utilizados, os documentos digitais não deveriam limitar-se a duplicar o velho meio de comunicação, mas deveriam oferecer uma nova funcionalidade". (18)

Para que surja a requerida "nova funcionalidade", entretanto, é preciso um trabalho de invenção, o qual não aparece de repente, como algo criado por um ser divino. E para que exista invenção, é preciso empréstimo do passado e dos povos entre si, além de um ativo trabalho da imaginação coletiva. (19)

Com as novas formas de apropriação cultural, é possível se buscar um novo equilíbrio entre os sentidos, e por conseguinte entre as artes e as ciências, bases da pesquisa real nas universidades. Se não houver uma profunda meditação sobre os vínculos da arte e das ciências, as primeiras podem ser tragadas pelo uso rotinizado das segundas, em detrimento justamente da imaginação e da sensibilidade, as quais coexistem com a inteligência técnica em íntima dependência.

As tentativas de se diminuir o abismo entre teoria e arte, administrando os cinco sentidos para que eles colaborem na formação dos novos pesquisadores, e não apenas consumidores do que já foi feito por outros, até hoje, ou fracassaram ou não tiveram divulgação ampla.

Um caso exemplar é o MIT. Fundado em 1865, só em 1945 ele apresentou propostas de ensino de elementos artísticos unidos à pedagogia para engenheiros. Nele, até pelo menos em 1970, a História da Arte, as Ciências Humanas e Sociais, foram estabelecidas para educar os olhos dos futuros técnicos em engenharia. Como diz um idealizador desta reforma educacional, era preciso, com o cultivo maior, fazer com que rapazes e moças diplomados no MIT deixassem de ser "visualmente iletrados". Dentre os que propunham esta educação humanística além da técnica, estavam pessoas respeitáveis no mundo científico, como Cyril Satnley e Philipp Morrison, implicados nas experiências nucleares norte-americanas, que até hoje espantam as mentes e corações éticos.

Mas um instituto de engenheiros ligados à indústria e à produção militar, dificilmente pode romper estes vínculos. Hoje, como enuncia uma pessoa que analisa o MIT, alguns artistas são convidados a utilizar as tecnologias, sobretudo em música. Eles são poucos, mas seu estatuto é muito mais oficial do que antes. Ele se tornou mais próximo ao usufruído pelos cientistas; eles são reconhecidos e integrados na instituição : são artistas-engenheiros. Este estatuto se justifica em parte pelo fato de existir um aprendizado técnico relativamente aprofundado, indispensável para o uso do computador. Mas tem-se a clara impressão de que os artistas afiliados ao Media Lab são convidados para estar a serviço da tecnologia, para mostrar quais aplicações podem dela serem feitas. A arte tornou-se um alibi. É claro que não se trata de um reconhecimento da arte enquanto tal, mas de um reconhecimento da utilidade das aplicações artísticas como um traço, entre outros, dos rendimentos e aplicações tecnológicas".

Desse modo, " o MIT retornou hoje ao que era antes da última guerra : um instituto onde são formados engenheiros, ligado à indústria e à produção militares. As virtudes morais da estética não são mais invocados alí. Os discursos sobre a necessidade de humanizar a vida social tecnocrática e alargar a sensibilidade do engenheiro não têm mais vez na fala da administração". Além disso, "as explorações informáticas ligam-se às aplicações militares, sem que isto levante contestações. O fascínio pela informática substituiu a ameaça nuclear de uma destruição humana extensa, com consequências de longo prazo e sem limites controláveis pela humanidade toda. A informática parece menos ameaçadora porque suas aplicações são múltiplas, ligadas a jogos como o Nintendo e à robótica doméstica. As novas tecnologias militares se caracterizam pela sua precisão nas delimitações dos alvos. Isto fornece guerras ´limpas´e jornalísticas. A transformação do militar em jornalismo tem uma tal capacidade de enceguecimento dos homens, que certos intelectuais europeus e americanos analisam este fenômeno sem pôr em causa a realidade destas guerras". (20) A tragédia que hoje se desenvolve na Iugoslávia, com os Estados Unidos da América exercitando seu imperialismo sob a máscara de sheriff do mundo, exemplificam o que enunciei.

Desse modo, o conhecimento visual, que opera na midia e nos instrumentos como o computador, nega hoje a sua origem platônica como via de pesquisa. Os cegos que diante de uma TV, ou de um PC, assistem impassíveis o bombardeio de países, elogiando a "precisão" dos mísseis, sem olhar para os corpos estraçalhados por eles, tornam-se cativos da opinião, e negam a ciência e a pesquisa. Assim, se quisermos uma universidade, ou qualquer instituição que a substitua no próximo século, onde exista pesquisa, isto é, não conformismo com a mentira e a feiúra imperantes hoje em dia, um bom caminho é unir, sempre, os nossos cinco sentidos, as artes e as ciências, a política e as técnicas. É uma universidade assim que nós convidamos os senhores a construir, o que, infelizmente, não pudemos fazer.

  • Notas
  • (1) Jakobson, R. e Pomorska, K. : "Diálogos". (SP, Cultrix, 1985, trad. Elisa A Kossovitch páginas 132 e seguintes).

    1. Platão. "Timaeus". Trad. R.G.Bury, Loeb Classical Library, Oxford, 1975, Plato, volume 9, páginas 106-107.
    2. Boutot, Alain : "Heidegger et Platon. Le Problème du Nihilisme." Paris, PUF, 1987, páginas 116 e seguintes.
    3. "Carta VII", 341. Uso a tradução de Leon Robin :Platon Oeuvres Complètes. Pléiade, V.2, página 1209.

    (5) "República", VII, 534 e 2-3.Boutot, Alain, página 118.

    (6) "Per intuitum intelligo....mentis purae & attentae non dubium conceptum, qui a sola rationis luce nascitur". "Regulae ad Directionem Ingenii." In Descartes, Oeuvres, Adam ,Ch. e Tannery, P. Vrin Ed. Volume X, página 368.

    (7) "Regulae" ed. Cit. Página 369.

    8) "Wissenschaft der Logik" (Werke in zwanzig Bänden, Suhrkamp Verlag, T.I, v. 5, página 96).

    (9) "Hegel e os Gregos". Tradução Ernildo Stein, São Paulo, Duas Cidades Ed., página 113.

    (10) Utilizo este texto na edição Belles Lettres : "De la Curiosité", traduzido por Dumortier, J. Cf. Plutarque Oeuvres Morales. T. VII, Première Partie, 1975, páginas 266 e seguintes.

    (11) Jurgis Baltrusaitis : "Le Miroir". (Paris, Elmayan/Le Seuil, 1978). Este autor tem sido um dos mais prolíficos intelectuais do século 20 na pesquisa sobre este campo. Outro filósofo que se dedica ao tema, com muito proveito para os que se preocupam com o problema da visão e das imagens, hoje, é Dagognet, François. Cf. "Philosophie de l´Image". (Paris, Vrin, 1984).

    (12) Leonel Ribeiro dos Santos. "Metáforas da Razão, ou EconomiaPoética do pensar kantiano." Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. Portugal. 1994, página 510.

    (13) Leonel Ribeiro dos Santos, op.cit. página 514.

    (14) Cf. Romano, Roberto : "Silêncio e Ruído. A Sátira em Denis Diderot" (Campinas, Ed. Unicamp, 1997).

    (15) Um trabalho importante, neste sentido, é o de Paolo Rossi : "Ants, spiders, epistemologists". In: Francis Bacon, terminologia e fortuna nel XVII secolo. Seminario internazionale, a cura di Marta Fattori. Roma, Ateneo, especialmente página 254 e seguintes.

    (16) Cf. "Democrite" in "Les Écoles présocratiques". Édition établie par Jean-Paul Dumont. Paris, Gallimard, 1991. O próprio Plutarco tem um pequeno texto satírico sobre a superioridade ética e racional dos animais sobre os homens. Cf. "Os animais são racionais". Moralia, Loeb Classical Library, V.12, trad. Cherniss, H. e Hembold, W. páginas 481 e seguintes.

    (17) Tenho me dedicado à análise destas passagens marxistas, desde "O conservadorismo romântico". Elas são lugares privilegiados para se compreender o caminho que levou o marxismo à dogmática estalinista, de um lado, e à superação do idealismo também dogmático, de outro.

    (18) "The Road Ahead", Penguin Books, 1995, página 143. Cf. Montagnini, Leone : "Comunicazione ´Ipermediale` e cultura umanística." La Critica Sociologica 127. 1998, páginas 13-27.

    (19) Cf. Martinelli, Bruno : "Après André Leroi-Gourhan : les chemins de la technologie", in André Leroi-Gourhan ou Les Voies de l´Homme. Actes du Colloque du CNRS, mars 1987. Albin Michel, 1988.

    (20) Epstein, Judith : "Contrechamp outre Atlantique : le dérives d´une politique". Autrement. Numero Especial : "Chercheurs ou artistes ? Entre Art e Science, il rêvent le Monde". Outubro, 1995.