28/02/2005
Ao verificar a lista das entidades civís que foram ao governo
para apoiar a reforma "oniversitária" (para ficar com a fala do
presidente da república), fiquei com muita vergonha. Na entrevista à
Veja, refiro-me ao lombo flexível dos intelectuais. As zumbaias e
rapapés cometidos pela OAB, Andifes, e outros, provam o dito. Não posso
ser acusado de incoerência no entanto. Em artigo publicado no dia 23 de
setembro de 2003, pela Folha de São Paulo (eu ainda era uma pessoa
aceita pelo jornal),analisei a compulsão universitária pelo baccia
mano. A coisa piora a cada instante. Enfim....só Deus mesmo sabe o que
ocorrerá com um país dirigido por apedeutas espertos e por sábios
oportunistas.
Folha de São Paulo 23 de Setembro de 2003.
Sacrifício do intelecto,
Roberto Romano
As
zumbaias que parte dos setores universitários entoa para o governo
federal, o silêncio diante da truculência nos cortes no setor de
educação e de C&T, os acordos travestidos de 'negociações políticas'
que cooptam muitos intelectuais lembram os ritos que impeliram pessoas
brilhantes como Martin Heidegger ao louvor do autoritarismo.As verbas
são parcas e o verbo livre torna-se mercadoria rara e caríssima, paga
com a segregação e o anátema. 'Não há sacrifício do intelecto que
satisfaça às insaciáveis exigências da falta de espírito' (Theodor W.
Adorno).
Estas frases ecoam as advertências de Max Weber sobre a
ciência enquanto vocação, texto que deveria ser obrigatório nas
Universidades brasileiras. O sacrifício do intelecto é exigido pelas
igrejas e partidos políticos, mas também molda as seitas universitárias.
O lado ritual da coisa surgiu no passado remoto, pois os deuses têm
fome de corpos humanos, sobretudo da caixa onde se aloja o cérebro. Mas a
exigência de abandonar idéias em função de cargos estatais, ministérios
eclesiásticos, prestígio acadêmico é recente. Ela vem com o nascimento
de refinadas burocracias, a secular e a espiritual.Nelas se concentraram
nos dirigentes o poder de exigir que dogmas sejam impostos e assumidos
pelos subordinados. A regra de ouro para a seleção dos funcionários
encontra-se na submissão aos preceitos verticais do mando. Veleidades de
autonomia noética trazem anátemas, silêncios, solidões. Espinosa
conhecia tal prisma ao recusar a cátedra de Heildelberg. O príncipe
pediu-lhe 'apenas' o sacrifício de não incomodar as verdades religiosas.
'Desconheço limites para a minha liberdade de pensar.' Agraciado com os
vitupérios de políticos e de reverendos, o pensador escreveu a mais
rigorosa ética moderna.
Antes da Revolução Francesa, a igreja
exigiu de seus pensadores a plena alienação intelectual. No século 18, o
papa Clemente 13, temendo o laicismo e o pensamento ateu, redigiu a
encíclica 'Quantopere Dominus Jesus', dizendo aos fiéis que a fome da
verdade é natural, mas que o espírito santo deseja que ela seja
refreada. E ordenou o pontífice que as pesquisas fossem até os limites
permitidos pela autoridade religiosa. Graças às críticas do cardeal
Passionei, o documento não foi publicado. O mundo católico ainda não era
refém da burocracia curial. Mas logo vieram a 'Quanta Cura' e o
'Syllabus', que proibiram o pensamento autônomo e denunciaram a
'liberdade de perdição'. Para fugir daqueles pecados, só o sacrifício do
intelecto. Estavam prontas as bases para o reinado do cardeal Ratzinger
e de João Paulo 2º.
No Estado, desde o Termidor, passando pela
censura napoleônica e chegando ao totalitarismo do século 20, a norma
foi a renúncia ao intelecto pessoal. E surgiu a cultura dos militantes
com a sua lógica ensandecida. Tal imposição une-se à exigência do
silêncio obsequioso. Immanuel Kant sofreu a censura e, segundo Domenico
Losurdo, internalizou-a. Ao contrário de Espinosa, o 'chinês de
Konigsberg' valorizava a cátedra e já estava imbuído do espírito
burocrático universitário. Liberdade, para ele, apenas fora do mundo
oficial. Lyssenko foi um caso espetacular de sacrifício do intelecto
somado ao silêncio obsequioso dos cientistas soviéticos e ocidentais que
ajudaram Stálin. Sem os dois elementos, muito certamente a política
socialista conheceria outros rumos. Mas a tolice do governante foi
aplaudida pelos acadêmicos, o que os tornou mais culpados do que o
próprio autocrata.
No Brasil, a crítica recebe veto perene. A
tradição oficialista ordena que as espinhas se curvem, sempre que um
novo inquilino se instala no poder. A crítica e a oposição constituem
mau gosto e devem ser banidas dos campi e dos laboratórios. Quando
Fernando Henrique presidia o país, escrevi, nesta coluna, um artigo
intitulado 'O PT e a dignidade da oposição'. Nele, criticava autoridades
que ironizavam aquele partido. Hoje, noto que a mente dos que ocupam o
poder é a mesma. A forma é petista, mas o conteúdo tem o sabor do
oficialismo. Na época, a imprensa e os intelectuais eram valiosos para o
PT. Hoje, com verbas imensas e Duda Mendonça, quem no governo precisa
de crítica? Apagar o que se produziu é o primeiro passo para a boa
acolhida entre os cortesãos. E pobre de quem ergue a espinha e a face!
Enquanto essa mentalidade imperar entre políticos e universitários
brasileiros, vários Lyssenko serão paridos entre nós. Pensamento e
ciência são riquezas que não podem ser alienadas, por mais sublime que
seja a 'causa' alegada. O respeito pela diferença integra a democracia.
Quem recusa esse ponto, adestra-se para aceitar com louvores os piores
golpes contra os cidadãos. Silêncios obsequiosos e sacrifício do
intelecto geram apenas servilismos, como assistimos em nosso país desde o
século 16.
(Folha de SP, 24/9)