FERREIRA GULLAR
Um sonho que acabou
Nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem permissão
É
com enorme dificuldade que abordo este assunto: mais uma vez -a 19ª- o
governo cubano nega permissão a que Yoani Sánchez saia do país. A
dificuldade advém da relação afetiva e ideológica que me prende à
Revolução Cubana, desde sua origem em 1959. Para todos nós, então jovens
e idealistas, convencidos de que o marxismo era o caminho para a
sociedade fraterna e justa, a Revolução Cubana dava início a uma grande
transformação social da América Latina. Essa certeza incendiava nossa
imaginação e nos impelia ao trabalho revolucionário.
Nos
primeiros dias de novo regime, muitos foram fuzilados no célebre
"paredón", em Havana. Não nos perguntamos se eram inocentes, se haviam
sido submetidos a um processo justo, com direito de defesa. Para nós, a
justiça revolucionária não podia ser questionada: se os condenara, eles
eram culpados.
E nossas
certezas ganharam ainda maior consistência, em face das medidas que
favoreciam aos mais pobres, dando-lhes enfim o direito a estudar, a se
alimentar e a ter atendimento médico de qualidade. É verdade que muitos
haviam fugido para Miami, mas era certamente gente reacionária, em geral
cheia da grana, que não gozaria mais dos mesmos privilégios na nova
Cuba revolucionária.
Sabíamos
todos que, além do açúcar e do tabaco, o país não dispunha de muitos
outros recursos para construir uma sociedade em que todos tivessem suas
necessidades plenamente atendidas. Mas ali estava a União Soviética para
ajudá-lo e isso nos parecia mais que natural, mesmo quando pôs na ilha
foguetes capazes de portar bombas atômicas e jogá-las sobre Washington e
Nova York. A crise provocada por esses foguetes pôs o mundo à beira de
uma catástrofe nuclear.
Mas nós
culpávamos os norte-americanos, porque eles encarnavam o Mal, e os
soviéticos, o Bem. Só me dei conta de que havia algo de errado em tudo
isso quando visitei Cuba, muitos anos depois, e levei um susto: Havana
me pareceu decadente, com gente malvestida, ônibus e automóveis
obsoletos.
Comentei
isso com um companheiro que me respondeu, quase irritado: "O importante
é que aqui ninguém passa fome e o índice de analfabetismo é zero".
Claro, concordei eu, muito embora aquela imagem de país decadente não me
saísse da cabeça.
Impressão
semelhante -ainda que em menor grau- causaram-me alguns aspectos da
vida soviética, durante o tempo que morei em Moscou. O alto progresso
tecnológico militar contrastava com a má qualidade dos objetos de uso. O
que importava era derrotar o capitalismo e não o bem-estar e o conforto
das pessoas. Mas os dirigentes do partido usavam objetos importados e
viam os filmes ocidentais a que o povo não tinha acesso.
Se a
situação econômica de Cuba era precária, mesmo quando contava com a
ajuda da URSS, muito pior ficou depois que o socialismo real desmoronou.
É isso que explica as mudanças determinadas agora por Raúl Castro.
Mas,
antes delas, já o regime permitira a entrada de capital norte-americano
para construir hotéis, que hoje hospedam turistas ianques, outrora
acusados de transformar o país num bordel. Agora, o governo estimula o
surgimento de empresas capitalistas, como o faz a China. Está certo
desde que permita preservar o que foi conquistado, já que a alternativa é
o colapso econômico.
Tudo
isso está à mostra para todo mundo ver, exceto alguns poucos sectários
que se negam a admitir ter sido o comunismo um sonho que acabou. Mas há
também os que se negam a admiti-lo por impostura ou conveniência
política.
Do
contrário, como entender a atitude da presidente Dilma Rousseff que, em
recente visita a Cuba, forçada a pronunciar-se sobre a violação dos
direitos humanos, preferiu criticar a manutenção pelos americanos de
prisioneiros na base aérea de Guantánamo, o que me fez lembrar o
seguinte: um norte-americano, em visita ao metrô de Moscou, que, segundo
os soviéticos, não atrasava nunca nem um segundo sequer, observou que o
trem estava atrasado mais de três minutos. O guia retrucou: "E vocês,
que perseguem os negros!".
A
verdade é que nem eu nem a Dilma nem nenhum defensor do regime cubano
desejaria viver num país de onde não se pode sair sem a permissão do
governo.