domingo, 5 de fevereiro de 2012

Gazeta do Povo-Curitiba


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Judiciário

Regresso ao “mundo dos comuns”

Especialistas dizem que o CNJ, fortalecido por decisão do Supremo, fará com que juízes não deem mais as costas à sociedade
Publicado em 05/02/2012 | Euclides Lucas Garcia 

A briga interna do Judiciário ganhou um capítulo decisivo na última semana com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de manter a prerrogativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de investigar denúncias contra juízes. Ao comentarem a polêmica que assola o meio jurídico, especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo foram enfáticos ao afirmar que os integrantes da Justiça se sentem acima do “mundo dos mortais”, têm privilégios indevidos e, em geral, são avessos a prestar contas públicas de seus atos. 

Eles defendem o CNJ, alegando que o órgão democratiza o Judiciário e tem trazido os juízes à realidade dos demais cidadãos. “Um juiz é um cidadão antes de tudo, e não um deus, que vive separado da sociedade”, argumenta Roberto Romano, filósofo e professor de Ética e Ciência Política da Universidade Esta­dual de Campinas (Unicamp).
O outro lado
Juízes criticam perda do direito a recurso

O desembargador Gil Guerra, que ontem deixou a presidência da Associação dos Magistrados do Paraná, rebate as afirmações de que o Judiciário é avesso à fiscalização e defende a ação da AMB contra o CNJ. Segundo ele, o único objetivo do processo é para que se cumpra o que diz a Constituição.

Guerra argumenta que o CNJ deve ser uma instância para recurso e revisão de punições aplicadas aos magistrados pelos tribunais locais. Ele defende que hoje o CNJ não dá aos juízes o direito à revisão de pena, ao contrário de qualquer cidadão. “Isso solapa os princípios da Constituição. (...) Hoje é como se a própria polícia julgasse o réu e não coubesse recurso”, diz Guerra. “Defendo que CNJ continue exercendo sua atividade de fiscalização e de apuração de irregularidades, mas de forma subsidiária às corregedorias locais e não concorrente.”
“A magistratura não aceita ser controlada”
José Maurício Pinto de Almeida é desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ). Nem por isso é menos crítico ao Judiciário e ao embate travado com o CNJ. Para ele, o corporativismo e a disputa de poder motivaram a ação no STF questionando a atuação do conselho. “A magistratura não aceita ser controlada quando o controle é democrático”, diz ele.

Segundo Almeida, o CNJ veio para moralizar o Judiciário e tem cumprido bem esse papel. Ele usa como argumento a própria ação da Associação dos Magis­­­trados Brasileiros (AMB), que considera inconstitucional a atuação do CNJ simultaneamente à das corregedorias locais. “No Paraná ou em qualquer estado, o componente psicológico acaba protelando as investigações, porque muitos investigados são parentes e ex-alunos de desembargadores. Não que haja desonestidade propriamente dita, mas há um evidente comprometimento psicológico”, avalia. “Já o CNJ apura os fatos longe das pessoas. Portanto, quanto mais distante do tribunal local é o julgamento, melhor é a apuração.”

Revelando que se desfiliou da AMB por discordar da ação impetrada contra o CNJ no Supremo, o desembargador afirma que a polêmica só desgasta a Justiça. Mas reconhece que a Justiça, e o próprio TJ, precisa ser “mais democrático e transparente”. “Propus, por exemplo, que as sessões do pleno fossem filmadas e fotografadas, como no STF. Mas a proposta foi rejeitada pelo medo dos desembargadores de que a imprensa propicie sensacionalismo”, conta. 

Foi a partir da declaração da corregedora do CNJ, ministra Eliana Calmon, de que “há bandidos escondidos atrás da toga”, que o Judiciário entrou em guerra. Execrada por parte expressiva dos colegas, ela viu a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) ir ao STF contra a atuação do conselho, sob o argumento de que as corregedorias locais dos tribunais deveriam ter prioridade em relação ao CNJ na apuração de desvios cometidos por magistrados. Na última quinta-feira, o Supremo não referendou essa interpretação, em caráter liminar.

Para o historiador Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Carlos, a atuação do CNJ tem sido um elemento fundamental para a democracia no país. Segundo ele, o conselho trabalha com eficácia para punir magistrados que não honram a toga e desmoralizam a Justiça. 

“O processo de redemocratização, estranhamente, foi importante para os outros dois poderes [Executivo e Legislativo], mas manteve o velho formato do Judiciário: um poder de costas para o país, que sempre foi marcado pelo corporativismo”, diz Villa. “Tudo o que está ocorrendo agora é muito positivo, porque a sociedade tomou ciência de que a Justiça não pode continuar como está; de que o juiz é um cidadão como qualquer outro e não deve ter privilégios.”

Villa diz ainda que o Judiciário também falha na sua tarefa de fazer justiça. “Em grande parte, a corrupção que permeia os outros dois poderes deve-se ao mau funcionamento do Judiciário.”

Napoleão

Segundo Romano, a história explica os motivos de os membros do Judiciário se sentirem acima das demais pessoas. Ele relata que, durante o Império de Napoleão Bonaparte no século 19, o Executivo passou a controlar os outros dois poderes, retirando autonomia deles. Desde então, os juízes gozam da proteção do Executivo e, por isso, não querem perder o privilégio. “Eles consideram que estão distantes dos mortais e não podem estar abertos ao olhar do público. Mas não existe instituição humana que não esteja sujeita à quebra das normas”, defende. “Exata­­mente por isso é necessário fiscalização e controle, que é o que vem fazendo o CNJ.”

O professor da Unicamp ainda critica o fato de os juízes classificarem como leigos quem critica a atuação do Judiciário. “A tentativa de desqualificar essas críticas dizendo que são emitidas por leigos é uma obra de corporativismo infeliz. É um juízo torto e arrogante, afinal um juiz é leigo quando vai ao médico, ao dentista, à oficina mecânica...”