domingo, 12 de fevereiro de 2012

Hoje recebi, de uma pessoa amiga, a questão abaixo. Tentei responder com minhas poucas luzes.

Pergunta sobre um dilema ético...

Bom dia! Hoje me deparei com um dilema ético e quero perguntar o que você faria na situação. Fui ao mercado comprar pães e vi que em uma fila tinha menos pessoas, e fui logo à fila. Era uma fila comum (não preferencial e nem aquelas com limites até 10 produtos).

Mas acontece que uma idosa com 3 carrinhos de compras, após 2 minutos mais ou menos, viu de longe que eu fui para a fila mais curta e parou bem atrás de mim logo em seguida. Ela com 3 carrinhos cheios de compras e eu apenas com uma sacola de pão nas mãos. Quem tinha o direito de ir à frente da fila, ela ou eu, eu ou ela?

Ela não me falou nada, mas ficou com uma cara de brava. Se eu perguntasse se ela queria ir à frente, pela cara dela ela provavelmente iria. E se eu perguntasse e ela com sabedoria me respondesse: ''- Meu jovem, você tem mais anos a viver do que eu, deixa-me passar.''

Eu quase saio da frente dela e fui dar mais uma volta pelo mercado... Que dilema ético!

Li em um livro de etiqueta com quando uma pessoa tem poucas sacolas e a gente muitas é de boa educação deixar a pessoa ir à nossa frente na fila do mercado.

Mas também sabemos que os idosos têm direito a irem à frente e que eu tenho mais anos a viver do que ela pela frente provavelmente. Mas o que será o justo à situação?
Abraços,
Caro amigo: se todos os elementos são como descritos em sua mensagem, só posso dizer o seguinte:

1) Se a ordem jurídica e também ética a ser obedecida no Brasil fosse gerontocrática, com certeza a senhora teria sempre, em todos os casos, a preferência. E chamamos tal prerrogativa como privilégio. Sociedades gerontocráticas, aristocráticas, monárquicas, oligárquicas, são regidas pelo privilégio (de condição, cargos, idade, riquezas).

2) Não é o nosso caso. A ordem jurídica e também ética a ser obedecida é democrática. Nela não existem (não deveriam existir) privilégios. As situações que o direito regulamenta reservam ordens de precedência que derivam da ordem natural (idade, enfermidades, crianças de colo de qualquer adulto seja mulher seja homem, etc). Os idosos têm filas especiais com base em semelhante direito. Não se trata de privilégio e, portanto, ele não pode ser exercido sem condições, em qualquer situação. Se a senhora tivesse um número de pacotes, digamos, similar ao seu, seria uma gentileza, também regulada pelo decoro, que o lugar lhe fosse cedido. Mas jamais seria um direito dela.

3) Como vemos o contrário na vida social, especialmente na brasileira (jovens que passam à frente de idosos, homens que empurram mulheres e crianças, pessoas saudáveis e jovens que tomam o lugar de enfermos ou idosos nos estacionamentos, etc), quem tem boa índole e correta educação tende, não raro, a "compensar" injustiças com injustiças em sentido oposto, ou seja, abrindo mão de direitos certos, em situações em que tal comportamento não é nem deve ser efetuado. Exemplo: quando na fila do banco idosos levam pilhas de documentos a pagar (muitas e muitas vezes, tarifas de vários usuários de agua, eletricidade, IPTU, etc), evidenciando que não usam seu direito em função própria, mas para garantir aos parentes e vizinhos (pode-se aventar a possibilidade de serem pagos por tal "serviço", ou retribuidos pela "simpatia"dos oportunistas), isto deveria ser criticado pelos demais clientes e normatizado pelos bancos. Do tipo: o idoso usa a filha preferencial, mas o número de documentos não pode ser mais de um por espécie.

4) Sempre levando em conta o relatado em sua mensagem: a senhora, ao lhe ver passar para uma fila menor, e ao seguir para a mesma fila, deixou o seu direito de atendimento preferencial e se colocou na condição democrática de pessoa igual em direitos. Se ela tivesse, repito, um número de pacotes similar ao seu, seria gentileza dar-lhe passagem. Como não era o caso, ela não queria um direito, mas um privilégio. Se estivessemos numa sociedade gerontocrática....etc etc.


5) O comportamento decoroso e bem educado (polido, diria Hegel, para indicar a igualdade de todos perante o Universal, retirados os defeitos dos espelhos que são os indivíduos) é sempre um cálculo muito difícil. Ascham, gramático e estilista do Renascimento, exemplifica com a própria vida regulada pelo privilégio, o da corte real.

Se uma duquesa vai ao baile da rainha e exibe mais jóias e roupas mais caras do que a soberana, a duquesa é indecorosa. Se ela for menos bem vestida do que as suas iguais, as outras duquesas e princesas, ela também é indecorosa. O decoro evidencia o respeito aos direitos (ou privilégios, numa ordem societária e estatal de privilégios) alheios e de respeito próprio. É preciso conhecer a nossa situação e a dos outros, os lugares, a liturgia que regulamenta a vida em todos os planos e lugares. O que supõe toda uma cultura, uma educação. Na universidade, embora existam reitores que não mereçam o título, o correto é sempre designá-los como "Magnífico", pois tal atributo não é dele, mas da comunidade que ele representa, bem ou mal. Assim os "Excelentíssimos", etc. Quando queremos insultar uma pessoa que dirige o coletivo, universidade, quartel, diocese, república, monarquia, devemos recordar : enquanto ela não for destituída ou impedida, a comunidade é representada por ela. Cabe à comunidade, se tiver honra e respeito próprio, destituir o péssimo representante, a "persona"do cargo. Assim também na vida social. O nosso caipira é exemplo magnífico de estrito decoro. Ele nunca se dirige como "tu"a alguém que respeita ou de quem não é intimo. O "Vosmicê"é sagrado para definir distâncias, sem as quais todos são sufocados e perdem a dignidade.

6) Costumo, pois sou caipira, chamar as pessoas de senhor e senhora, mesmo que indecorosos de todo naipe repliquem que "senhor (a) está no céu". Respondo sempre que o tratamento define meu respeito à sua cidadania. Quando entro num bar e peço café à atendente ou ao atendente, também os chamo de senhor e senhora. A "intimidade" e a "informalidade" servem apenas para negar ao outro o respeito devido. Conheço muita gente "informal"que não hesita em meter o berro e a mão (ou pés) na mesa, quando julga que seu "direito"está sendo negado pelo "inferior". Juízes que abrem a carteira e gritam "sou magistrado" em qualquer situação difícil para sua subjetividade, são em primeiro lugar indecorosos. Colegas meus que se deixam tratar de "tu"ou "você", não raro usam seu cargo para humilhar funcionários, alunos, colegas mais novos ou menos poderosos. São indecorosos.

7) Os gregos, ah, os gregos ! tinham uma técnica boa para saber se estamos agindo de maneira indecorosa. Tal técnica é ainda recomendada por I. Kant : quando temos vergonha (Aidós) do que fizemos. Se agimos com arrogância e sem respeitar o direito alheio, e mesmo assim não sentimos vergonha (Aidós), descemos abaixo da humanidade, o nosso lugar está na selvageria, nunca na sociedade.

8) Assim, se o seu relato é veraz, a cara feia da senhora é tirania, falta de respeito aos direitos alheios. É exigência de privilégio, ausência do essencial decorum democrático.

Um abraço!

Roberto Romano