Homo lattes
Do Blog Comunicação e políticaPesquisador que só ‘Lattes’ não ‘morde’
O
título do texto é, naturalmente, bastante provocador. Talvez tão
provocador quanto julgo aberrante essa lógica da produção industrial e
narcisisticamente compulsiva que ronda a academia e que quase que
obrigatoriamente acaba sugando aqueles que de alguma forma se envolvem
com ela. É a tal produção pela produção. Ou melhor, a produção para
a produção de um ‘bom’ currículo – gordinho, recheado, robusto – para o
pesquisador. O compromisso com o conhecimento, nesse caso, muitas vezes
vai pro ‘beleléu’. Aí vira essa guerra de quem publica mais, em quais
revistas que possuem quais pontuações, em parceria com quais ‘top-tops’
etc. E da guerra, infelizmente, se faz a mercantilização, o comércio.
Isso mesmo. Um comércio antiético, onde a única lei que importa é a da
quantidade pela quantidade, da infinita acumulação de capital; em suma,
uma prática extremamente ‘antiacadêmica’, se levarmos em conta o que a
academia deveria ser (para quê ela nasceu) e o que ela se tornou de
verdade (como ela está sendo ‘enterrada’).
Não
que eu esteja colocando a ‘culpa’ de tal lógica inteiramente no
capitalismo – assim eu acabaria dando espaço para me chamarem de
paranoico, raso e imprudente. No entanto, é a ele que, em última
instância, esse sistema serve atualmente – quem ele imita e por quem
ele, por tabela, se limita –, e isso considero ser razoavelmente difícil
de negar. Hannah Arendt fez um comentário bastante interessante sobre a
origem da academia na Grécia Antiga e o seu princípio motivador: “assim
como a libertação do trabalho e das preocupações com a vida eram
pressupostos necessários para a liberdade da coisa política, a
libertação da política tornou-se pressuposto necessário para a liberdade
da coisa acadêmica” (O que é política, p. 63); neste caso, “ao
mundo das opiniões mentirosas e do falar enganador devia ser oposto um
mundo contrário da verdade e do falar adequado à verdade; à arte da
retórica, a ciência da dialética” (pp. 64-65).
Mas aqui nesse ponto eu me pergunto: será que alguma vez a academia
conseguiu ser isso que ela tanto quis ser? Acredito que não. Pelo menos,
não nesses termos.
O
fato é que de uma forma ou de outra a ‘ciência’ – de maneira bem geral –
sempre esteve atrelada a algum poder específico – religioso, político
etc. – até se tornar, ela mesma, um poder próprio por excelência, o
poder da ‘verdade’ – a verdade que leva o carimbo de ‘cientificamente
comprovada’, a verdade revelada por aqueles que compreendem o mundo
muito melhor do que os meros mortais que se deliciam com ‘as opiniões
mentirosas’ que rondam por aí e que contaminam o mundo. Mas será que já
conseguimos mesmo nos desvincular totalmente da ‘arte da retórica’ para
enfim chegar a uma verdadeira ‘ciência da dialética’, por exemplo?
Sinceramente, acho que não – ou melhor, quando isso acontece, é meio que
contra nossa vontade, quase um ‘erro de cálculo’ nos termos de
Rancière. Bakhtin já dizia que todo conhecimento já nasce para ser
superado, e que, por isso, é sempre mais interessante (dialeticamente
produtivo, digamos) possuir adversários qualificados do que estar
rodeado de ‘aliados’ medíocres – nada mais coerente.
Mas
o que dizer do evidente controle político que determinados grupos
(‘correntes de pensamento’) fazem dos seus respectivos programas para
engessar a ‘batalha dialética’ e, assim – ao boicotar ao máximo as
visões contrárias às suas –, estabelecer a sua verdade como hegemônica? O
que dizer dessa aberração que transforma a ciência em dogma, em fé?
Será que essa prática está realmente preocupada com o conhecimento em
si, ou apenas com o ego dos que obtêm o controle político da ‘verdade’
naquele determinado espaço? Outro dia ouvi um relato sobre uma
professora que em plena sala de aula (numa pós-graduação!) soltou a
seguinte pérola: “eu não sei o que é que os anarquistas e os
pós-modernos ainda estão fazendo na academia; já que eles a criticam
tanto, não deveriam estar lá”. É mole? Seria cômico se não fosse
trágico. E o pior é que está cheio de gente por aí que pensa de modo
parecido, por mais que poucos tenham coragem de falar tal aberração em
público.
A capitalização do conhecimento
E
é aqui nesse ponto que a aberração política é complementada pela
aberração mercadológica. Afinal, sinceramente, qual é a motivação
principal de um pesquisador quando faz (e publica) um artigo, por
exemplo? Idealmente, não temos dúvida de que deveria ser o compromisso
com o conhecimento, a crença de que aquilo de alguma forma trará uma
contribuição clara e efetiva para as discussões daquele campo. Mas
infelizmente sabemos que muitas vezes não é exatamente isso que
acontece. Normalmente publicamos porque temos que publicar: porque o programa ao qual estamos vinculados nos cobra (e ele quer e precisa pontuar cada
vez mais porque o governo e suas agências de financiamento também lhe
cobra isso); porque queremos e precisamos ‘fazer’, rechear, nosso
currículo para podermos ter uma boa vitrine de pesquisador quando formos
concorrer a uma vaga num concurso, por exemplo – ou para manter nossa
posição intocada em alguma instituição; e porque, claro, também é bom
para o ego saber que publicamos tantos artigos em tempo recorde nas
melhores revistas do Brasil e do mundo na nossa área – o que rapidamente
fará de nós uma ‘referência’ naquele campo do conhecimento. E é aqui
que a lógica do quê se publica se transforma na do quanto se
publica; é aqui que a qualidade acaba se vendendo ao mero aspecto
quantitativo, o que proporciona a formação de um grande mercado (às
vezes, máfia mesmo) de publicação.
Não
estou aqui criticando simplisticamente o fato de se publicar. Muito
longe disso. Afinal, como dizia Sérgio Sampaio, “um livro de poesia na
gaveta não adianta nada; lugar de poesia é na calçada”; da mesma forma,
lugar de artigos, de ideias, de descobertas científicas é nos livros,
nas revistas, e, mais ainda, idealmente, na calçada também. O problema
abordado é o como e o para quem se publica. No
primeiro caso, o grande contrassenso é justamente a ‘máfia’
inescrupulosa que muitas vezes se cria para poder publicar cada vez
mais. E minha crítica, naturalmente, está direcionada a esses casos
(absolutamente reais). Um exemplo são as panelinhas do tipo “pô, bicho,
bote meu nome aí no seu artigo, que quando eu fizer o meu eu coloco seu
nome também”. Ou então quando o cara publica o mesmo artigo
várias vezes mudando apenas algumas palavras em um ou outro parágrafo.
Ou ainda quando o cidadão se aproveita do seu título acadêmico (de
doutor, mais comumente) e apenas ‘assina’ artigos de/com outros (que não
possuem aquela qualificação exigida por tal ou qual revista) para que o
artigo possa ser aceito e publicado – muitas vezes o cara não sabe nem o
que está escrito no ‘seu’ próprio texto.
Ou
também quando o professor dá uma disciplina na faculdade, pede que cada
aluno escreva um artigo (publicável, claro) como avaliação e no final
ele ‘corrige’, assina junto com os estudantes e engorda seu Lattes em
uns 30 ou 40 quilos numa garfada só. Aí depois – o que é ainda mais
bizarro – esse cidadão vai para o MSN (hoje em dia, Facebook e Twitter) e
estampa o resultado do seu ‘sucesso’: “30 artigos publicados em 2011”.
Parabéns para você, meu caro. Mas realmente não é nesse tipo de ciência
que eu, particularmente, acredito. Só que o governo e as universidades
parecem crer e estimular isso mais que ninguém, e de maneira
extremamente superficial. Aí, no fim das contas, acabam ‘punindo’ e
ridicularizando aqueles que não seguem tanto essa lógica, colocando-lhe
uma estampa pública de ‘produção insuficiente’. Nesse caso, não importa
mais nada – rendimento em sala de aula, projetos paralelos (de extensão,
inclusive), repercussão de publicações anteriores –, pois os números
falam por si: e assim o mercado é fortalecido – capitalismo selvagem.
No
que diz respeito ao ‘para quem’ se publica, o problema não é menos
grave, já que poucas pesquisas conseguem de fato chegar às ‘calçadas’.
Ao contrário, as discussões são extremamente elitizadas, fechadas em si
mesmas, e para os mesmos poucos que debatem num ambiente quase que
privado, seleto. Até porque, a nossa grande crença (arrogância) na
academia é achar que ‘intelectual’ só pode falar com/para ‘intelectual’;
que ‘especialista’ só consegue ser compreendido devidamente por outros
‘especialistas’ – afinal, quem de nós quer perder tempo explicando
nossas teorias mirabolantes para pessoas tão mediocremente educadas? E
ponto final.
Mas
aí você vai num congresso que te cobra R$ 400 de inscrição – porque
nesses eventos o que vale mais é a sua fama e o seu apelo, assim como
quem determina o preço de uma roupa é o simbolismo da marca e não a
qualidade do produto em si – e sai de lá com a sensação de que (pensando
mercadologicamente) as discussões não valeram mais do que R$ 50, dado o
grau de repetitividade e as apresentações em escala industrial, com
pouco filtro de qualidade e quase nenhum tempo disponível para um debate
realmente qualificado – sem falar que, como o que vale mesmo é apenas
apresentar e publicar, muitas vezes o cidadão espera a sua vez, fala o
que tem que falar no seu GT e vai embora; e as coisas morrem ali mesmo;
afinal, pontuar no Lattes é o que importa. E é dessa forma, dada a
grande demanda (pois cada vez mais gente entra no ‘mercado acadêmico’),
que o negócio de congressos, colóquios e afins está em constante
crescimento, devido ao seu alto grau de lucratividade – financeira e,
claro, ‘lattesiana’, já que organizar eventos também é uma ótima forma
de ‘pontuar’.
É por isso que, na minha mera opinião, pesquisador que só ‘Lattes’
não ‘morde’ – ele apenas ‘engole’ e ‘vomita’ essa lógica. Não morde
porque já foi mordido por um sistema (perverso) que faz com que em
muitos casos o autor visto pela vitrine do Lattes pareça muito mais
competente do que o que ele é de verdade; que pareça contribuir mais
para o seu campo de estudo do que de fato contribui. Não morde, em suma,
porque suas pesquisas são meramente funcionais, feitas apenas para seu
próprio benefício, o de ter um currículo ‘invejável’, e não para de
alguma forma ajudar a melhorar o mundo, sei lá, ou por qualquer outra
motivação menos narcísica. E esse é um dos grandes problemas da academia
atualmente: em vez de estimular a qualidade das produções através do
pensamento crítico, por conta dessa lógica ela acaba contrariamente
contribuindo para o conformismo, fazendo com que o indivíduo que entra
na universidade com vontade de produzir aquilo em que ele acredita saia
preocupado apenas em ‘engordar’ o seu currículo Lattes.
Mais
uma vez – só para razoavelmente me precaver de determinadas críticas –,
não sou contra o currículo, de forma alguma – até porque é
absolutamente importante e necessário organizar, categorizar e
publicizar aquilo que a gente faz (inclusive para prestar contas para o
governo e a sociedade, que é quem nos financia): o que eu
particularmente não engulo, por mais mastigada que essa prática já
esteja, é essa lógica mercantil que se apropria cada vez mais do
currículo por meio de um uso vazio e irresponsável. Daí que, da mesma
forma que utilizamos o termo ‘academia’ para descrever o lugar que
frequentamos para malhar o corpo, acabamos, assim, mesmo que
inadvertidamente, usando a academia (através do Lattes) apenas para
‘malhar’ o ego. Não que todos sejam assim, obviamente; mas com certeza
existem muitos; muitos mais do que gostaríamos que existissem. Ou seja,
tudo isso – independente do grau de ocorrência e dos meus possíveis
exageros críticos –, portanto, não se trata de uma grande aberração?
Para mim, a resposta está mais que clara…
Thiago Rocha é
graduado em Jornalismo pela UFS e mestrando no programa de Comunicação e
Cultura Contemporâneas da UFBA. Como jornalista, foi editor e colunista
político do Caderno Municípios do Jornal Cinform e um dos 20
brasileiros selecionados pela Embaixada Americana para estudar, observar
e cobrir as eleições de 2008 através de um programa realizado pela
Universidade Estadual da Carolina do Norte. Já no campo acadêmico, tem
experiência nos estudos de comunicação política, Internet e mobilização
social, e em 2010 foi o vencedor do Prêmio Franklin Delano Roosevelt na
categoria monografia com um estudo sobre a utilização das novas mídias
por parte do movimento Organizing for America, de Barack Obama.
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